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Não é mais aceitável que se coloque a culpa na chuva ou na população

Há instrumentos abundantes no Brasil para impedir tragédias. Os governantes têm que ter um mínimo de responsabilidade

Créditos: PLAUCHEUR / AFP
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De tanto tomarmos chuva nos Morros de Santos no final dos anos 1990, a equipe técnica da Regional dos Morros sabia aferir quantos milímetros chovia de cabeça, ou melhor, na cabeça. Se molhava, mesmo com capa de chuva, a classificação era de moderada a forte – cuidado! Nós éramos uma equipe interdisciplinar preparada e respeitada nas áreas de risco, com grande conhecimento dos problemas locais.

Nossa presença constante em vistorias e nas reuniões trazia confiança para os moradores, porém, no começo não era assim. Como ninguém da prefeitura subia os morros fora de eleições, os moradores estranhavam e aproveitavam as reuniões para deitar bronca secular para as autoridades que nunca subiram para ouvi-los. Paciência! Eu dizia para a equipe: essa raiva não é para nós. Logo vão descobrir que somos aliados e tudo vai se ajeitar. Demorou, mas assim foi.

Andávamos sempre acompanhados pelos membros do Núcleo Comunitário de Defesa Civil (Nudec), formado por moradores voluntários recrutados em reuniões de conscientização sobre os riscos geológicos. Esses Núcleos de Defesa Civil buscavam ser representativos de cada mancha de moradias em risco nos diversos morros da cidade. Chegou-se a ter na equipe 100 pessoas preparadas, formadas e prontas para agir na prevenção dos riscos de escorregamentos. Cada um conhecia bem a situação de perigo no seu morro. Para agir, recebiam um equipamento mínimo: bota, enxada, pá e padiola para transportar feridos e a cada chuva mais intensa saíam a fazer vistoria nos pontos previamente conhecidos. Procurava-se manifestações das encostas tais como rachaduras, degraus no solo, pontos de concentração de águas, ou outros sinais que pudessem indicar a iminência de ocorrer o fenômeno.

Um morador que recebe formação sobre os perigos existentes nunca mais esquece e passa a ser uma referência para a vizinhança na hora da chuva intensa. É também porta-voz da comunidade nas discussões de obras e medidas para corrigir riscos e nos programas habitacionais.  

Durante a chuva, são os olhos e sensores das manifestações das encostas, da obstrução das drenagens, do lixo acumulado nos taludes e outros fatores que podem induzir um escorregamento.

Um Plano Preventivo que o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto Geológico – atualmente incorporado ao Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) do estado de São Paulo – elaboraram, sob a coordenação da Defesa Civil, ousou indicar a maneira de agir durante o período mais chuvoso para minimizar danos e mortes.

Previu o período em que eram mais frequentes os escorregamentos no litoral paulista. Isto com um bom mapeamento de risco de casa a casa e palmo a palmo das encostas fazia surgir, de forma pioneira, uma boa receita para se enfrentar os riscos geológicos!

Mas se o risco é mapeável, se as encostas emitem sinais antes dos escorregamentos, se não é qualquer chuva que derruba casas, se é possível prever quanto de chuva precipitará em tal ou qual local, então como os prefeitos, governadores e presidentes vão agora culpar o povo, São Pedro e o excesso de chuva pelas tragédias? 

A produção de conhecimento científico acerca dos desastres naturais no Brasil avançou muito desde a tragédia da região serrana do Rio de Janeiro de 2011. Houve passos largos de avanço: O Centro de Monitoramento de Alerta de Desastres (Cemaden) foi criado e o Serviço Geológico do Brasil passou a fazer mapeamento de riscos de escorregamentos para os municípios. Por meio da Lei nº 12.608/12, foi instituída a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. Pela primeira vez de forma padronizada, o Ministério das Cidades propiciou uma metodologia de mapeamento de riscos e financiou os planos municipais de redução de riscos, além de financiar obras de prevenção e correção. Porém, infelizmente, os passos largos foram barrados desde 2016.  Retrocedeu-se muito. 

Os institutos de pesquisa do estado de São Paulo, criadores dos planos preventivos, estão à míngua e desprestigiados. O Cemaden, de tanto corte de verbas, não consegue sequer manter os pluviômetros, apesar de manter um quadro de pesquisadores de excelência internacional. A Lei nº 12.608/12 nunca foi regulamentada e o Ministério das Cidades faleceu. 

Voltamos a ver o “efeito urubu”, quando os governantes sobrevoam escombros de helicóptero (raros são os que sujam seu sapatênis no barro para abraçar uma vítima) e compungidos colocam a culpa nas próprias vítimas, ou no campeonato de dados de chuva. Esses estão “sempre batendo recordes”, de acordo com as conveniências de ocasião. 

É possível nos anteciparmos aos eventos de escorregamentos e minimizar as perdas, mas, para isso, é necessário que as três esferas da federação trabalhem em sintonia, cada uma fazendo seu papel. 

É imprescindível que a população que mora nessas condições de perigo sejam incluídas na resolução do problema. Não como sujeitos passivos, mas como agentes que determinam as ações que vão dizer o futuro de suas vidas e de suas famílias e vizinhos.

Pois é, ações simples como um plano preventivo de Defesa Civil podem poupar muitas vidas, mas para isso é necessário um investimento mínimo: ter uma previsão meteorológica confiável, investir em abrigos públicos para se fazer remoções preventivas durante os estados de alerta e manter uma equipe técnica interdisciplinar voltada permanentemente para atender essa população. 

Não é mais aceitável que se coloque a culpa na chuva ou na população. Há ciência para prevenir! Há experiências exitosas! Há que se construir casas. 

Há instrumentos abundantes no Brasil para impedir tragédias. Os governantes têm que ter um mínimo de responsabilidade e devem usar todos esses instrumentos e parar com a covardia de se esconder em dados pluviométricos para se escudar de sua inoperância. A crise climática está instalada e as situações de perigo tendem a crescer e muito.

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