BrCidades

A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

BrCidades

Memória da resistência: a criminalização das lideranças da moradia

O Comitê dos Movimentos Populares retomará sua luta em 2020 até que não haja mais qualquer processo ou investigação contra lideranças

Entrada do prédio do antigo hotel Cambridge, o centro de São Paulo. Hoje, ocupado por movimento que luta por moradia (Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas)
Apoie Siga-nos no

A segunda-feira do dia 24 de junho de 2019 foi, sem sombra de dúvidas, um dos dias mais tenebrosos para os Movimentos de Moradia em São Paulo. Eram sete horas da manhã quando recebi um telefonema do Manoel, companheiro da Wellita, liderança do Movimento Sem Teto. Sua voz estava trêmula do outro lado linha e dizia: “Dito, a polícia está aqui na Ocupação, dentro de nosso apartamento. Estão levando a Wellita”. Assustado, indaguei: “O que Manoel?”. Ele repetiu: “A polícia está prendendo a Wellita”. Pedi calma e perguntei se ele saberia informar para onde ela estava sendo levada. Em seguida, liguei para outras duas lideranças que me disseram: “A polícia está em diversas ocupações. Estão prendendo as nossas lideranças”.

A Marluci, minha companheira, que estava ao meu lado ouvindo e vendo o desenrolar dos acontecimentos, disse: “Estes caras virão te buscar também!”.

Minha cabeça estava a mil. Nos meus pensamentos, ainda de forma embaralhada, apareciam várias pessoas: “Vão prender todo mundo!”

Falei novamente com as lideranças e decidi ir para o Deic (Departamento de Investigações Criminais) para ver o que estava acontecendo por lá. Neste momento, a notícia já se espalhava como um rastilho de pólvora pelas redes sociais.

Quando entrei naquele local, um prédio frio de concreto próximo ao antigo presídio do Carandiru na zona norte de SP, era por volta de 9 horas da manhã. Lembro-me que havia algumas lideranças na porta, muitos policiais e diversas lideranças que estavam sendo conduzidas para uma espécie de sala de interrogatórios.

Manifestação após prisão de lideranças da luta por moradia em São Paulo (Foto: Divulgação)

O delegado teria pedido as prisões baseado em interceptações telefônicas, supostas cartas anônimas e testemunhos de alguns moradores que teriam sido vítimas de extorsão para o pagamento de aluguéis em ocupações.

Naquele dia em entrevista a dezenas de órgãos de imprensa, o referido delegado teve enorme dificuldade de justificar a manutenção das prisões devido a generalizações, falta de objetividade, individualização das acusações e escassez de especificação sobre o que na prática estava sendo investigado.

Uma farsa, um absurdo! Estava em curso uma das maiores tramas e armadilhas judiciais contra os movimentos de moradia na cidade de São Paulo. As lideranças eram levadas em grupos. Grande parte eram amontoadas em uma pequena sala do Deic – a maioria mulheres negras.

A sala do Deic era um verdadeiro navio negreiro! Realmente, assim são prisões no Brasil: navios negreiros!

Vale a pena lembrar que desde o incêndio do Edifício Wilton Paes de Almeida, a “Torre de Vidro” do Largo do Paiçandu, em 1º de maio de 2018, as lideranças das Ocupações não tiveram mais um dia em que não fossem perseguidas, intimadas e intimidadas. No entanto, sempre que foram chamadas para prestar esclarecimentos, nunca deixaram de comparecer.

Mesmo assim, as prisões temporárias foram autorizadas contra nove pessoas, das quais quatro acabaram presas naquele dia 24/06: Angélica dos Santos Lima, Sidney Ferreira Silva, Ednalva Silva Ferreira e Janice Ferreira Silva, a artista Preta Ferreira, apresentadora do Boletim Lula Livre.

Durante todo o dia, dezenas de lideranças, entidades, artistas, estudantes, professores, parlamentares, religiosos, passaram pelo Deic. Muitos se reuniram com o delegado para tentar entender o absurdo de toda aquela situação, ou manifestar suas indignação com aquelas prisões.

O delegado declarava que “possivelmente as prisões nem seriam mantidas, em face da enorme repercussão”. Segundo ele, nada de anormal teria sido encontrado nas Ocupações. Naquele mesmo dia, não somente foram mantidas as prisões temporárias, como também, na mesma semana, foram transformadas em prisões preventivas e estendidas para outras lideranças do movimento de moradia.

Dezenas de organizações populares, com suas lideranças ainda perplexas pelo desenrolar dos fatos, se reuniram naquela mesma noite do dia 24 de junho para organizar a resistência e articular os Comitê dos Movimentos Populares com dois objetivos: mobilizar a sociedade contra as prisões e articular a defesa das pessoas presas, processadas ou investigadas.

Duas frentes de mobilização se sucederam: uma na Ocupação 9 de Julho, articulando centenas de intelectuais, artistas e militantes; e outra com centenas de entidades no Comitê de Defesa dos Movimentos Populares, cujas reuniões ocorreram na Ocupação São João, 588.

Foram centenas de eventos, iniciativas, visitas, manifestações, dentro e fora do país pela libertação da Angélica, Sidney Ferreira, Ednalva Franco, Preta Ferreira, e a suspensão dos mandados de prisão das demais lideranças.

Foram realizadas dezenas de visitas por artistas, intelectuais, parlamentares, defensores e defensoras de direitos humanos, para as mulheres que ficaram presas. Elas ficaram primeiramente num presidio da capital, depois foram transferidas para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Feminino de Franco da Rocha, em seguida para a Penitenciária Feminina de Santana e o Sidnei para o CDP de Pinheiros.

Foram também realizadas diversas manifestações, mobilizações em frente ao Fórum da Barra Funda, Marchas e Passeatas ao Ministério Público e ao Tribunal de Justiça, além de centenas de manifestações artísticas culturais, dentro e fora do Brasil.

Após muita mobilização popular e jurídica, o primeiro Habeas Corpus (HC) deferido foi para a libertação de Angélica, que ficou 70 dias encarcerada. Depois de 39 dias foram deferidos pelo Tribunal de Justiça o HC da Preta Ferreira e do Sidnei, que foram libertados no dia 10 de outubro após passarem 109 dias presos. Ednalva Franco foi a última a ser libertada do presídio feminino de Santana. Ela ficou presa por 115 dias, sendo libertada no dia 17 outubro de 2019.

Nesta luta pela libertação das lideranças da moradia, dentre as dezenas de ações realizadas pelo Comitê, uma das mais importantes foi a Missão Emergencial da Relatoria Plataforma Dhesca, coordenada pela Professora Lúcia Moraes em conjunto com os Relatores Nelson Saule Júnior e Denise Carreira, entre os dias 7 e 9 de outubro, para apurar a situação de criminalização contra as lideranças populares em São Paulo.

A Plataforma Dhesca publicou um relatório apresentando as diversas dimensões dos processos de criminalização das lideranças da moradia, numa conjuntura de estado policial e forte repressão às lutas sociais com perseguição às lideranças e aos defensores de direitos humanos.

O posicionamento da relatoria e as suas recomendações serão uma ferramenta importante para denunciar nos organismos nacionais e internacionais a violência que neste momento está sendo praticada no Brasil contra as lideranças dos Movimentos Populares.

O Comitê dos Movimentos Populares retomará sua luta em 2020 até que não haja mais qualquer processo ou investigação contra as lideranças da Moradia.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.