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Com o governo Bolsonaro, política urbana está à deriva

O primeiro semestre do governo atual segue marcado pelo esvaziamento da Constituição Federal e dos direitos sociais ali elencados

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A política urbana no Brasil sofreu grandes modificações nos últimos três anos: esvaziamento da política habitacional do Programa Minha Casa Minha Vida com a contenção de recursos e paralisação de diversas obras, reestruturação do mercado formal de terras com a Lei 13.465, de 2017 – também chamada de lei da grilagem por facilitar os critérios de titulação inclusive legalizando a grilagem, ao alterar o regime jurídico da regularização fundiária urbana e rural. Porém, nada se compara ao desmonte das garantias e direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988 relacionados à política de desenvolvimento urbano e no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001).

A política de desenvolvimento urbano brasileira é inovadora por prever diretrizes gerais cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes (art. 183 da Constituição Federal). Dentre as diretrizes podemos mencionar a cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, além da gestão democrática da cidade por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade.

A política de desenvolvimento urbano por um fio

O ano de 2019 se iniciou com a extinção do Ministério das Cidades. A pasta foi criada em maio de 2003 com a finalidade de tratar da política de desenvolvimento urbano, concentrando políticas setoriais urbanas como Habitação, Saneamento, Infraestrutura, Planejamento Urbano e Ordenamento Territorial, bem como a política nacional de trânsito. Antes mesmo da extinção ser efetivada, as reações de órgãos de classe, como de arquitetos e de gestores públicos, organizados como a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), emitiu nota reforçando a necessidade da articulação interfederativa exercida pelo Ministério das Cidades, pasta responsável por projetos prioritários dos municípios como moradia e saneamento, e a importância de compromissos como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e as metas do Acordo de Paris (as quais o governo eleito também sinalizou a intenção de abandonar).

Cumpre mencionar que em um modelo federativo complexo como o brasileiro, o Ministério das Cidades não apenas era o órgão responsável pela articulação institucional com Estados e municípios e pela implementação da política urbana em nível nacional, mas também era o principal responsável pela capacitação técnica de agentes públicos e sociais para as políticas públicas urbanas integradas, através de programas como o Programa Nacional de Capacitação das Cidades (PNCC) e a elaboração de material formativo.

Três meses depois foi a vez de cerca de 250 órgãos colegiados, comitês, conselhos e outras instâncias de participação democrática que foram extintos com o Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019. Dentre eles, foi extinto o Conselho das Cidades (Concidades) criado em 2006 pelo Decreto nº 5.790. O conselho tinha por finalidade estudar e propor as diretrizes para a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, bem como acompanhar e avaliar a sua execução.

Os compromissos firmados pelo Brasil ao que se refere à política urbana e sua sustentabilidade (diretriz constitucional prevista no Estatuto da Cidade) também se encontram à deriva: recentemente o governo federal resolveu não apresentar na sabatina do Fórum Político de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável, os Relatórios Nacionais Voluntários no âmbito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas, onde dentre os 17 objetivos o de número 11 é o de “Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”, ou seja, são compromissos com o propósito de melhorar qualidade de vida das cidades e da população.

Horizonte da política habitacional

O fechamento dos espaços de participação democrática se soma ao desamparo da proteção social no que se refere ao acesso à moradia e à cidade, visto que programas de habitação como o Minha Casa Minha Vida passam por remodelagem no atual Ministério de Desenvolvimento Regional, que aponta para a substituição do financiamento habitacional de faixa 1,5 (com renda familiar de 1.800 até 2.600 reais) a locação imobiliária.

O direito à moradia plena também se vê ameaçado com o projeto de regulação da chamada hipoteca reversa, que vem sendo estudado pela equipe econômica do governo federal. Nesta modalidade de hipoteca, o imóvel é dado em garantia para instituições financeiras que pagam um valor mensal ao proprietário e com sua morte ficam com o imóvel. Medida que aparece com a narrativa de crédito para idoso ou “complementação de extra de renda” pode ser tida como uma cruel forma de abertura ao mercado securitizador e imobiliário frente à mitigação de garantias previdenciárias e de seguridade social.

A abertura de mercado e a tentativa de liberalização da economia do governo federal vão na contramão de pensamentos heterodoxos como o da teoria anticíclica keynesiana, que sugere o aumento dos gastos públicos em períodos de depressão, gerando demanda agregada e estimulando investimentos e novos postos de emprego. Isto porque o governo, na busca por impulsionar a economia, se propõe a liberar os saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) ou mesmo acabar com o Fundo de Infraestrutura do FGTS (FI-FGTS), decisões cujas consequências positivas no curto prazo (aumento do consumo) podem não compensar a redução de investimentos em habitação, saneamento ou infraestrutura, setores necessários ao desenvolvimento urbano e cujo fundo é a fonte mais importante de financiamento.

Por fim, outro projeto legislativo, porém de autoria coletiva e liderada pelo senador Flávio Bolsonaro, também promete abalar direitos e garantias constitucionais complementando o já mencionado desmonte da política urbana brasileira: é a proposta de Emenda Constitucional nº 80 de 2019, cujo objetivo é modificar a “função social da propriedade urbana e rural”. Essa proposta vai na contramão do objetivo de pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, desconsiderando a política de desenvolvimento urbano e os Planos Diretores Municipais, esses sim, responsáveis por estabelecer se as propriedades atendem ou não à função social às quais se obrigam, através de um plexo de regras e instrumentos urbanísticos (como a PEUC ou IPTU progressivo).

A PEC se encontra repleta de inconstitucionalidades como a supressão da autoexecutoriedade dos atos de poder de polícia administrativa municipal ou a premiação daqueles cujas propriedades não atenderem a sua função social, violações analisadas em robusta nota técnica produzida pela Ordem dos Advogados do Brasil, o Instituto de Arquitetos do Brasil e o Instituto de Direito Urbanístico.

Em meio a tantas afirmações e imediatas contra afirmações, o primeiro semestre do governo segue marcado pelo esvaziamento da Constituição Federal e dos direitos sociais ali elencados, ficando cada vez mais distante os objetivos cidades justas, democráticas e sustentáveis.

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