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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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Cidades têm a chave para a recuperação da democracia no Brasil

Por que a esquerda se afastou dos bairros populares? Por que os partidos progressistas foram engolidos pela institucionalidade?

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O tempo ruim vai passar, é só uma fase (Racionais MCs)


Em discurso durante as eleições do ano passado, o rapper Mano Brown disse que o Partido dos Trabalhadores havia virado as costas para a periferia. Talvez tenha sido apenas ali, às vésperas do pleito presidencial, que a esquerda tenha se dado conta de um dos seus principais erros nos últimos anos, mas para aquelas eleições já era tarde. Brown estava certo! Precisamos ouvir novamente as vozes que vêm das periferias com o intuito de retomar o caminho em direção à construção de cidades mais democráticas.

Por que essa esquerda se afastou dos bairros populares? Por que os partidos progressistas foram engolidos pela institucionalidade? Por que o poder local – ou as cidades – perdeu a importância na agenda política nacional? Como explicar a regressão nas condições de vida urbana no século XXI: aumento exponencial do preço da moradia e dos aluguéis, aumento do peso do custo do transporte no orçamento familiar superando o gasto com alimentação – exatamente quando o governo federal retoma o investimento nas cidades, com recursos substanciais, seguindo um tipo de plano desenvolvimentista keynesiano, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e PMCMV? E o que dizer da violência que faz parte do dia a dia dos bairros populares? Alguém acredita que são casos isolados as mortes de jovens e crianças em Paraisópolis e no Rio?

Meu amigo André Singer me chamou atenção para a importância das eleições na vida política brasileira. Ele buscava me trazer à realidade quando eu, agora, na terceira idade, retomava a utopia de ver, como única saída para Brasil, a construção capilarizada de uma sociedade informada, politizada e antirracista. Eu, certamente, não viveria para ver essa utopia realizada. Mas não via outro caminho após acompanhar a história das cidades brasileiras nos últimos 48 anos, alguns deles passados em governos (municipal e federal), outros vividos como assessora de comunidades nas periferias de São Paulo e mais de 40 anos na universidade. Mas, se meu amigo André tem razão, é mais do que chegada a hora de abraçar a tarefa. E eu não tenho a menor dúvida de que a redemocratização do país passará pelas cidades ou não acontecerá.

A importância das próximas eleições municipais é crucial. Temos um ano para preparar propostas e boa parte da sociedade civil já está mobilizada nesse sentido como é o caso da rede BrCidades – Um projeto para as cidades do Brasil da Frente Brasil Popular. Trata-se de direcionar nossas energias para repensar a vida urbana, reaglutinar as forças democráticas, construir novas maiorias populares e recolocar horizontes visando cidades mais justas e mais sustentáveis.

Por outro lado, as cidades parecem constituir um campo à parte e invisível nas análises que tentam explicar a espalhafatosa regressão política que a sociedade brasileira vive a partir do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. As recentes revoltas populares em vários países do mundo têm algo a nos dizer: no Chile, o aluno exemplar do neoliberalismo, o fator detonador das revoltas foi o aumento nos transportes. No Equador, foi o aumento da gasolina. No Líbano, foi um imposto sobre o WhatsApp. Até na França, os coletes amarelos irromperam pelo aumento nos combustíveis.

Apenas para dar uma ideia da tragédia da mobilidade urbana entre nós, vamos lembrar que na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) a viagem intermunicipal – já que 70% do emprego fica no centro expandido do município de São Paulo – custa, mensalmente, quase meio salário-mínimo ao trabalhador quando o patrão não paga o transporte. A maioria das empregadas domésticas (mulheres negras) não são registradas e constitui um mistério como custeiam seu transporte com os salários que recebem. Não é por outro motivo que as viagens a pé estão crescendo como modo de transporte.

O sistema de transporte na maioria das regiões metropolitanas brasileiras é uma “balbúrdia” – para usar a palavra da moda –, cuja aplicação aqui se justifica. Não há sistema integrado dos modais de mobilidade e muito menos tarifa integrada. Quem mora nas periferias da RMSP, além de pagar caro e gastar mais, passa mais de duas horas e meia nos transportes para se deslocar. Dá para entender, embora haja muitos pensadores que não entendam, por que essa população não se mobiliza para defender o precioso patrimônio nacional, público e social que é o pré-sal, ou contra a captura de vultosos recursos públicos via pagamento de juros da dívida pública, ou contra perder direitos trabalhistas e previdenciários, ou contra os ataques ao meio ambiente, ou contra as injustiças e arbitrariedades da Operação Lava Jato.

Claro, a massacrante e onipresente dominação da narrativa midiática pró neoliberalismo é, sem dúvida, a principal causa dessa aparente passividade. A ocupação do espaço nas periferias pelas igrejas pentecostais (presença forte nas TVs), pelo crime organizado e pelas milícias na substituição do Estado também deve ser considerada. A quebra da indústria nacional, a crescente informalidade no emprego (hoje marcando a vida de quase metade da população economicamente ativa) acompanhada da ideologia do individualismo competitivo também tem importância estrutural nesse quadro. Sobreviver está difícil para metade da população brasileira – 104 milhões de pessoas – que vivem com apenas 413 reais per capita.

Praticamente 85% de toda a população mora nas cidades e enfrenta graves problemas de mobilidade, inclusive nas cidades pequenas e especialmente nas zonas rurais. A maior parte da população trabalhadora está às voltas com as dificuldades da vida diária. O cotidiano transformou-se numa corrida de obstáculos. E nunca é demais lembrar: distribuição de renda é fundamental para a qualidade de vida dos mais pobres (maioria do povo brasileiro), mas não substitui as políticas públicas urbanas, especialmente as relacionadas ao controle sobre o uso do solo, que implica na função social da terra e combate à especulação imobiliária predatória que subordinou nossas cidades e alavancou o preço dos alugueis a partir de 2009.

Em 25 anos de Plano Real, a inflação subiu 23% e a habitação 82%. Segundo o IBGE, habitação foi o item que mais subiu na composição do IPCA no período. Um dos grandes problemas praticados nas Câmaras Municipais, especialmente nas cidades médias, foi a ampliação do perímetro urbano: incluir vastas extensões de terras rurais no uso urbano impacta fortemente o preço da terra. Essa medida, prevista em lei (Estatuto da Cidade), não poderia ser aprovada sem um plano que a justifique, mas a maior parte das Câmaras Municipais, seguindo lobbies, de proprietários fundiários e capitais ligados à construção, ignoraram a lei. Há exemplos por todo o país. Essa medida se deu em resposta aos vultosos investimentos do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e teve como consequência a localização de milhares de moradias e conjuntos habitacionais fora das áreas urbanas consolidadas impactando e aumentando o preço da terra e dos imóveis.

Vivi a década de 1970 nas periferias metropolitanas ajudando a construir a proposta de Reforma Urbana. Ao lado do sindicalismo forte, oriundo da indústria de máquinas e de bens de consumo durável, surgiam, com expressão inédita, os movimentos sociais urbanos nas metrópoles do país. O Brasil se tornou predominantemente urbano a partir da década de 60 do século passado. Portanto, nossa população é majoritariamente urbana há aproximadamente seis décadas, o que é muito pouco para a história de uma nação. Vivemos 388 anos sob mão de obra escrava e bem mais de 400 anos sob hegemonia agrário-exportadora.

Essa industrialização tardia é sucedida por uma desindustrialização precoce, a partir dos anos 1980 e, novamente, pela hegemonia agrário-exportadora impactando fortemente a ocupação do território, os fluxos migratórios, o meio ambiente, o processo de urbanização, a vida das classes trabalhadoras, apenas para citar os aspectos que nos interessam aqui. Enquanto nos países do capitalismo central os pilares que construíram o welfare state perdiam força (partidos de esquerda ou sociais democráticos, sindicatos, movimentos pelos direitos humanos), no Brasil a esquerda remava na contramão, ganhando força e avançando na reconquista da democracia. Para tanto, a eleição de prefeitos oriundos dos movimentos sociais foi um passo decisivo.

Com o fim (formal) da ditadura, em 1985, e a conquista de eleição direta para prefeitos nas capitais do país, teve início um ciclo de “prefeituras democráticas e populares” cujos feitos inovadores ficaram conhecidos no mundo todo. O programa de maior repercussão internacional do ciclo virtuoso foi o Orçamento Participativo, instrumento mais importante da administração democrática, replicado em mais de 2.800 cidades do mundo todo. Mas não foi o único. O “Corredor de Ônibus”, ou BRT – Bus Rapid Transit, como foi apelidado nos meios da consultoria internacional, replicado até em Oslo, na Noruega – também nasceu nesse período criado pela engenharia curitibana. O Brasil brilhou na Conferência Habitat II da ONU, em 1996, com os feitos das prefeituras democráticas e participativas.

As cidades, ou os poderes locais, começaram a ganhar importância e nelas os bairros populares, negros e periféricos, construídos sem Estado e sem mercado, passaram a ter visibilidade com um protagonismo inédito das mães de família. Essa construção capilar levou as forças democráticas e de esquerda a ganharem as eleições federais, com o feito inédito e surpreendente para um país persistentemente desigual, de eleger um operário para presidente da República.

Os Racionais MCs de Mano Brown já fizeram 30 anos, mas sua passagem continua a inspirar autoestima e rebeldia. Há muita novidade no ativismo das periferias. A Coalizão Negra por Direitos, assim como a rede de cursinhos pré-vestibulares gratuitos aponta para o empoderamento dos pretos, pretas e pardos que constituem a maior parte da população brasileira (52%).

Muitos são os desafios: habitação, transporte, saneamento, saúde, educação… o que não falta são propostas adequadas e competência técnica. Além do mais, é hora das lideranças seniors abrirem espaço para os jovens e as jovens que surgiram a partir do ativismo cultural, antirracista e de gênero. Precisamos parar de apenas reverberar com tanta intensidade os absurdos que vêm de Brasília e focar na realidade próxima. Precisamos pensar e projetar cidades justas, econômicas e sustentáveis.

É hora de nos prepararmos para as eleições de 2020, construindo na sociedade e propondo, aos candidatos e candidatas a Prefeitura e Câmara dos Vereadores, um novo projeto para as cidades, um projeto que combata a desigualdade e contribua para a construção de uma cidade onde todos possam viver em paz com dignidade. Mas não basta eleger pessoas com sensibilidade social e competência. É preciso exercer o controle social sobre elas o que implica em acompanhar os investimentos e a aplicação das leis. É por meio do poder local – nos bairros, nas escolas, nas praças, nas igrejas, nas ruas- que a democracia brasileira será reconstruída.

Nada como um dia após o outro dia, como diz a letra dos Racionais.

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