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As águas do Rio de Janeiro podem se tornar águas para poucos

Do ponto de vista da engenharia, há solução, mas são necessários recursos, prioridade e responsabilidade do Poder Público

O governador Wilson Witzel (PSC) durante visita técnica ao Guandu. (Foto: Phillipe Lima)
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*Por Clovis Nascimento


“Choveu tanto que se encheu e rebentaram as fontes”, diz relato de carta do Padre José de Anchieta, em 1575, sobre os temporais na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Apesar do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, caracterizar as recentes enchentes como “atípicas”, a História nos demonstra que há gargalos. Mesmo diante de um quadro de desigualdade social e territorial, o poder municipal reduziu 77% de seus gastos com programas de controle de enchentes nos últimos 5 anos. Para acentuar este quadro, o governo do estado consignou a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgoto) como garantia de um empréstimo à União, ou seja, atrelando à privatização da empresa. Para compreender o saneamento fluminense é preciso um olhar para o processo histórico.

Na década de 1960, quando o Rio de Janeiro ainda era Distrito Federal, tínhamos o Serviço de Água e Esgoto (SAE). Em 1961, com a transferência da capital do Brasil para Brasília, o Rio de Janeiro passou a ser o Estado da Guanabara. Nesse período, no bojo da ditadura civil-militar, foram construídas duas empresas, a Cedag (Companhia Estadual de Águas da Guanabara) e a Esag (Empresa de Saneamento da Guanabara), uma cuidava da água e a outra dos esgotos. Também foi nessa época que foi criado o BNH (Banco Nacional de Habitação), que criou duas linhas de crédito a partir do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). As empresas são obrigadas a depositar mensalmente um valor de 11% em nome do trabalhador que abriu mão da estabilidade adquirida após 10 anos de atuação no mesmo local.

A partir do FGTS, o Banco constituiu dois sistemas, um de Habitação e outro de Saneamento. O Sistema Financeiro de Saneamento tinha como regra disponibilizar recursos financeiros para a ampliação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário para atender a população. Para tanto, os estados tinham que fundar empresas públicas de economia mista de saneamento, cujas ações majoritárias eram de responsabilidade do governo do Estado. Também eram obrigadas a celebrarem convênios com os municípios.

Na prática, isso significava que os municípios precisavam se conveniar com o governo estadual para terem acesso aos recursos federais. No entanto, mesmo em plena ditadura militar, este dispositivo foi afrontado e muitos municípios se mantiveram autônomos. Hoje, nós temos no Brasil cerca de 5.570 municípios, dos quais aproximadamente 1.500 são autônomos e não se conveniaram com nenhuma empresa. Inclusive Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, tem o DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgoto), ligado à Prefeitura.

Em 1975, no Rio de Janeiro, com a fusão dos estados da Guanabara e do antigo estado do Rio de Janeiro, houve também a fusão das empresas de saneamento Cedag, Esag e Sanerj. Um registro importante a ser feito é que o município do Rio de Janeiro é o único que passou pelas três instâncias: município, estado e Distrito Federal. O primeiro sistema de esgotamento sanitário no Brasil foi implantado no Rio de Janeiro por uma empresa inglesa. Hoje, apesar de seu longo tempo decorrido desde a sua implantação, esse sistema ainda existe e está em plena operação. Sistema este que tende a apresentar problemas em face da obsolência de seus materiais. Por isso vemos vazamentos de esgotos em alguns pontos da cidade, por conta da perda de validade do sistema, e isso tende a piorar muito. Com a fusão das empresas, em 1975, foi criada a Cedae que herdou tudo. Hoje, a Cedae – cuja arrecadação conta com maioria do município do Rio de Janeiro (80%) – conta com 64 municípios conveniados, dentre os quais o maior é o Rio de Janeiro.

Outro ponto nevrálgico do sistema de abastecimento fluminense é a privatização de Niterói. Os meios de comunicação preconizam que é um caso de sucesso, mas não é verdade. É um caso de mentira. Porque Niterói tinha todo o sistema de infraestrutura de saneamento pronto. Em 20 anos, o que a privatização fez pela cidade? Construiu o sistema de abastecimento de água da região oceânica, levando água para esse território em detrimento da população mais pobre de São Gonçalo, já que não houve aumento de vazão na estação de tratamento de água do Laranjal. Por quase 10 anos, a empresa pagou R$0,01 por m³, enquanto a Cedae gastava R$0,70 por m³ para transformar água bruta em potável, ou seja, o povo do estado do Rio de Janeiro subsidiou a empresa privada de Niterói, o que é um absurdo. A Cedae conseguiu na Justiça o aumento do valor cobrado para R$0,30, embora ainda defasada, e mais recentemente foi para R$1,20 por m³ e atualmente encontra-se em um patamar de R$1,50 por m³. É uma vergonha para o governo e para a imprensa afirmarem que Niterói é um caso de sucesso.

No Brasil foram feitas várias tentativas de privatização, começando pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o que não foi possível em face do poder concedente ser municipal. O governo federal tentou cassar essa titularidade do município, mas o artigo 30 em seu inciso V da Constituição Federal prevê que serviços de interesse local são de competência municipal. Nada mais local do que o fornecimento de água. Teoricamente, o conceito de saneamento abrange os seguintes eixos: abastecimento de água, esgotamento sanitário, resíduos sólidos e drenagem urbana. Estes quatro serviços são municipais, de acordo com a competência constitucional. Em face desse imbróglio, FHC não logrou êxito na privatização. Há uma questão mais complexa que é a organização da Região Metropolitana, atendida por um único manancial, o rio Guandu. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a titularidade é compartilhada entre estado e município nas Regiões Metropolitanas, no que concerne a produção de água ao tratamento de esgoto e seu destino final.

Atualmente, o governo Bolsonaro intensificou a agenda de privatizações e incluiu a Cedae em uma lista de empresas a serem desestatizadas. O atual ministro da economia, Paulo Guedes, confirmou esse desejo ultraliberal quando afirmou que “o Brasil está à venda”, entregando nosso patrimônio e nossa soberania. Em acelerada tramitação, o Executivo aprovou na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 4.261/2019 que fere o pacto federativo, cassa a titularidade municipal e o subsídio cruzado e condiciona o acesso a recursos federais à privatização das empresas. O projeto segue na pauta do Senado, onde enfrentará a nossa resistência nas ruas e no Parlamento.

A privatização não interessa à sociedade brasileira. Isso porque os preços da tarifa serão majorados pelo lucro, aumentando as taxas e diminuindo ainda mais os serviços nas regiões onde vivem as pessoas mais pobres. Se hoje as tragédias são, cada vez mais, recorrentes, é preciso fazer uma reflexão sobre a responsabilidade do poder público que precisa tomar para si o aumento de verbas e a intensificação de programas de drenagem e controle de enchentes. Principalmente, é fundamental que a responsabilização não seja centralizada no cidadão. É da Prefeitura a responsabilidade pela drenagem, pela coleta, transporte e destino final adequado dos resíduos sólidos.

Do ponto de vista da engenharia, há solução, mas são necessários recursos, prioridade e responsabilidade do Poder Público.


*É engenheiro civil e sanitarista, pós-graduado em Políticas Públicas e Governo. Foi subsecretário de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos do Rio de Janeiro e diretor nacional de Água no Ministério das Cidades, além de presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES). Atualmente é presidente da Fisenge (Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros), vice-presidente do Senge-RJ (Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro) e integrante da coordenação do movimento SOS Brasil Soberano e parceiro do BrCidades.

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