Blog do Sócio

O neoliberalismo não é uma inevitabilidade da natureza

Os mais aptos são recompensados materialmente exclusivamente por seus méritos. E os pobres são punidos pelas suas inadequações

moeda_Real (Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil)
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A grande deficiência da economia clássica, como já apontava Marx em seus escritos econômicos, era sua falta de perspectiva histórica. A produção é uma atividade social, que se apresenta de vários modos, a depender da forma de organização da sociedade e de suas respectivas técnicas de produção.

A sociedade europeia, berço do capitalismo industrial, em outras épocas históricas, havia se organizado de formas distintas, como na sociedade escravista e na sociedade feudal. O capitalismo, portanto, é um fato histórico, e não natural. Por conseguinte, não há leis naturais em economia. O que há são políticas econômicas decorrentes de decisões humanas. Mas os neoliberais, inspirados nos economistas clássicos do século 18 e 19, querem nos persuadir de que a economia é regida por leis naturais.

Segundo a retórica neoliberal, a concentração da renda e da riqueza, por exemplo, seria algo natural e plenamente justificável por meio de leis econômicas imutáveis no tempo e no espaço. De acordo com essa tese, os mais aptos são recompensados materialmente exclusivamente por seus méritos. E os pobres são punidos pelas suas inadequações. E não há o que se possa fazer a esse respeito.

Um claro retorno ao ideário de Malthus. Um fato econômico depende de escolhas humanas. É contingente. E a ciência econômica ortodoxa é uma narrativa, dentre muitas outras possíveis. Não é ciência exata. Como será o futuro dependerá das nossas escolhas. Humanas. E como narraremos essas escolhas.

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Hoje, a narrativa dominante em países como o Brasil é o discurso neoliberal. Políticos, economistas, jornalistas, formadores de opinião, todos se apropriaram dessa narrativa, de um mundo regido livremente pelos mercados, e a transformaram em realidade natural.

Naturalizam o comportamento dos agentes econômicos, como se houvesse leis naturais regendo cada decisão econômica. Tudo racionalmente estruturado e perfeitamente equilibrado.

Segundo essa ideologia, não há alternativa a não ser se adaptar às leis de mercado. Uma vez identificados e compreendidos o funcionamento dos mercados, só nos resta viver de acordo com suas leis. Porém, nada que integra essa narrativa é “natural”, “inevitável”, “irreversível”. Tampouco científico. Não se trata de nenhum processo natural.

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Privatização, desregulamentação, precarização, terceirização, globalização, austeridade fiscal, abertura de mercados, salários discrepantes, câmbios flutuantes, juros delirantes etc. Nada disso é natural. São apenas escolhas humanas. Escolhas feitas por aqueles que mais se beneficiam delas. Decisões interessadas. São discursos retóricos que não traduzem o mundo real e sim interesses previamente definidos. Estudados. Escolhidos.

Ainda assim, a ortodoxia da ciência econômica dominante vai em direção oposta. Defende uma ciência econômica pura, capaz de capturar o fenômeno econômico em sua essência e matematizá-lo. Em termos de credo ideológico, também é inegável a influência do individualismo dos clássicos, acentuados e distorcidos pelo ideário neoliberal.

Vivemos num mundo regido pelo mercado. Os efeitos sociais mais devastadores são a degradação ambiental, a concentração de renda e o individualismo extremo. Uma sociedade instrumental que se comporta como um circuito integrado na busca incansável de reproduzir a si mesma. Uma lógica que monetiza os valores éticos, precifica as relações, calcula os custos, analisa os benefícios e contabiliza os resultados.

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Viver é consumir. Consumir é viver. O medo do fracasso econômico e a esperança de sucesso material vivem em constante tensão. Os meios determinam os fins. E os fins justificam tudo. Sociedade brutalizada. Indivíduo isolado. Ninguém escapa ileso.

Nossas essências são neutralizadas. O comportamento individualista se naturaliza. A competição desenfreada, a corrida cotidiana por acumular o quer que seja, a indiferença em relação a tudo que não nos dê um retorno quantificável, o consumismo de bens e pessoas, a descartabilidade das relações, tudo isso acreditamos ser parte da natureza humana. Somos assim. Convencemo-nos disso. É cada um por si e todos por nenhum.

A violência do individualismo está por toda parte. E contrariar o cânone econômico vigente, em termos acadêmicos, equivale a uma heresia digna dos tempos de inquisição. Um economista heterodoxo não ganha prêmio Nobel, tem mais dificuldades na obtenção de recursos para pesquisas acadêmicas, não tem espaço na mídia especializada, dificilmente é convidado para seminários e pode até mesmo ser vaiado em lugares públicos.

Viver na heterodoxia econômica equivale a viver nas trevas. Mas ao contrário da física pré-científica, cujos efeitos práticos eram inofensivos, os impactos reais dos modelos econômicos ortodoxos não são tão inocentes quanto teorizar sobre estrelas fixas no céu ou planetas que giram harmonicamente em volta da Terra.

As teorias econômicas ortodoxas, quando saem dos livros-texto de economia, justificam e estimulam a adoção de políticas públicas perversas. Assim, uma ciência pretensamente descritiva e neutra torna-se normativa e dogmática. E a despeito dos fatos, vira verdade. Por trás de uma suposta neutralidade científica, escondem-se os interesses ideológicos de setores ligados ao capital financeiro e à comunidade empresarial. Os efeitos são reais. Os impactos mensuráveis. Os resultados observáveis.

Quando a teoria descrita no modelo é aplicada à realidade, a exatidão de um modelo matemático se transmuta em horror. A elegância se materializa em miséria. A precisão se transforma em desequilíbrio. A harmonia vira conflito. E a beleza se converte em dor.

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