A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Carola Saavedra: ‘Eu não sei o livro, o livro é que me sabe’

Com armas sonolentas, romance mais recente de Carola Saavedra, é o melhor livro nacional dos últimos tempos. A profundidade narrativa, as camadas de discussão sobre o lugar do indivíduo no mundo, os elementos oníricos e a competência extraordinária da autora, que quebra barreiras geográficas e […]

A escritora chilena Carola Saavedra (Divulgação)
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Com armas sonolentas, romance mais recente de Carola Saavedra, é o melhor livro nacional dos últimos tempos. A profundidade narrativa, as camadas de discussão sobre o lugar do indivíduo no mundo, os elementos oníricos e a competência extraordinária da autora, que quebra barreiras geográficas e literárias, fizeram nascer um romance que todo mundo – todo mundo – deve ler, para finalmente se perguntar, nas palavras de Carola, “O que há de verdadeiro nesta vida que estamos vivendo?”

Acompanhe abaixo a entrevista com a autora.

A Redoma de Livros – Uma grande coisa do romance é o sentimento de não pertencimento, que vai desde a crise existencial da Maike e a certeza de uma vida diferente da Anna até a avó de Maike que se sente fisicamente rejeitada em ambientes de gente rica. Esse aspecto me chamou muito atenção: é difícil traduzir em romance toda uma estrutura opressora que se manifesta de diferentes formas. Como foi a criação dessa narrativa especificamente?

Carola Saavedra – Eu acho que a literatura surge de uma necessidade, a necessidade de dizer algo, de pôr um sentimento em palavras, a literatura surge a partir daquilo que nos toca, que nos atravessa, que nos angustia, ou seja o tema não é realmente uma escolha, ele é uma urgência. Nesse sentido, eu não escolhi o tema porque me parecia importante (e ele é!), mas por ser algo que sempre atravessou a minha vida, seja a sensação de ser estrangeiro em todos os lugares (o que hoje em dia não é mais algo que me angustie), seja essa busca de si mesmo, do próprio desejo num mundo que nos oprime e silencia das mais diversas formas (algo que nunca deixará de me angustiar). Para mim esse é o tema que permeia o livro, a espinha dorsal: essa busca de uma identidade, não a identidade dada pelos pais ou pela sociedade ou pela mídia, mas a “verdadeira” identidade, aquilo que realmente somos. É claro que se trata de uma ilusão, já que não existe uma “verdadeira” identidade, mas uma serie de desejos às vezes ocultos, outras desvirtuados, outras silenciados. No fundo eu queria falar sobre isso, como é esse processo de tornar-se sujeito, de virar adulto (por isso o romance de formação), e principalmente, como é isso para a mulher? Para a mulher de classe média, mas também para a mulher pobre, para aquela que é explorada de todas as formas possíveis. Vivemos numa sociedade racista e patriarcal que diz às mulheres desde o nascimento quem elas devem ser: deve brincar de boneca e vestir rosa (definição de gênero), depois deve ser magra e loura (definição de beleza e todo o racismo e crueldade que isso implica), depois deve ter e desejar um homem (a heteronormatividade), deve ser mãe, se engravidar, deve desejar esse filho e sacrificar-se por ele, pela família, muitas vezes suportando abusos e violências do marido. Em outras palavras, ouvimos desde muito cedo como e quem devemos ser, mas um dia nos olhamos no espelho e nos perguntamos se queremos mesmo tudo isso, se essas escolhas são mesmo nossas, começamos a nos perguntar, o que há de verdadeiro nesta vida que estamos vivendo? Todas as personagens do livro em algum momento se fazem essa pergunta, sendo que cada uma encontra uma resposta diferente: a avó é a personagem mais trágica do romance porque ela, devido à pobreza, é a que menos armas possui (talvez sua única arma de sobrevivência seja a loucura); Anna encontra na arte (no teatro) uma forma de repensar a própria história e por isso acaba se tornando (na segunda parte) uma mulher muito mais consciente e interessante do que era na juventude, e Maike é na minha opinião quem consegue adentrar mais profundamente nessa busca, e é quem sofre a transformação mais radical.

ARL – Você falou em entrevista que, para você, os melhores romances são aqueles que têm algo de inacessível. Esse inacessível foi citado na experiência da leitura. Como funciona na escrita? Você tem acesso a todas as verdades não faladas?

CS – Não, nunca, se eu tivesse seriam verdades rasas, verdades de botequim, uma tentativa (sempre fracassada) de manipular o leitor. Porque a verdade, se é que existe, é inacessível de forma direta. A verdade está na ambiguidade, na contradição, na dúvida, na metáfora, na literatura, no sonho, no sintoma. O que eu quero dizer com isso? Que a verdade não é um objeto que você segura com as mãos, ela não é fechada, nem estática. Por isso “o poema é maior do que o poeta”, ou seja, o texto literário quando funciona, se desdobra, diz mais do que o autor quis dizer, do que ele acha que disse. O que eu fiz no “Com armas sonolentas” foi assumir isso desde o início, e usar esse não-saber quase como um Leitmotiv, me guiando muito mais pela intuição, pelo inconsciente do que pela técnica. Eu já disse isso outras vezes, mas é o que melhor define esse processo: eu não sei o livro, o livro é que me sabe.

ARL – Como surgiu o título do livro?

CS – O título é um verso de um poema de Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), uma figura que sempre me fascinou. Se fosse homem teria a reputação de um Padre Antonio Vieira, mas como se trata de uma mulher, só muito aos poucos o seu nome vai se tornando mais conhecido. De certa forma ela é considerada a primeira intelectual da América Latina, e também a primeira feminista (numa época, claro, em que esse termo não existia). Ela foi uma freira que em pleno século XVII teve a “audácia” de escrever cartas eróticas à esposa do vice rei, criticar homens importantes como o próprio Padre Antonio Vieira e escrever versos como: “Homens néscios que acusais / a mulher sem razão, / sem ver que sois a causa / do mesmo que culpais. ”

Eu queria que ela fosse uma espécie de “primeira mulher” no meu livro, uma origem na qual todas as demais, as que vieram depois pudessem se espelhar. Penso muito nisso, e foi uma preocupação nesse livro, estabelecer genealogias ficcionais (de certa forma, toda genealogia é ficcional). Assim, ela é uma figura central, aparece no título, na figura da Inês (não por acaso o mesmo nome) vestida de freira no Carnaval, e nas leituras de duas personagens importantes: a entidade/espírito que acompanha a avó, e Lupe, a namorada mexicana de Maike. Curiosamente, as personagens-leitoras de Sor Juana são justamente as mulheres mais próximas de si mesmas, de certa verdade pessoal. “Com armas sonolentas” é um verso do poema Primero Sueño, que fala sobre essa outra forma de conhecimento, que não passa pela razão, mas por esse saber que ela chamava de místico e que nós poderíamos chamar de inconsciente ou de um saber do corpo.

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ARL – Como funciona seu processo criativo? As vozes narrativas são definidas previamente ou um pedido dos personagens? Você estrutura antes ou depois do texto mais ou menos delineado ou até pronto? 

CS – Este livro foi muito diferente dos anteriores. Até o “Inventário das coisas ausentes”, eu sempre trabalhei com grande controle do texto e da história (dentro do possível, claro). Só começava a escrever depois de ter o básico muito bem definido: narrador, personagens, etc. Com o “Armas” o processo foi outro, quando comecei a escrever a única coisa que eu sabia é que seria uma história sobre mães e filhas, nada mais. Na medida em que o livro foi se escrevendo eu fui fazendo certas escolhas ou refazendo escolhas anteriores. Acho que isso veio com certo amadurecimento, como escritora, mas também como pessoa, como tempo fui me tornando mais capaz de sustentar o não-saber, suportar esse descontrole das coisas, tipo, não sei ainda, mas tudo bem, vamos em frente.

ARL – Em “Com armas sonolentas”, como foi definir o fim de cada voz, separar em duas partes, descobrir o ponto final?

CS – Foi muito intuitivo. Como disse anteriormente, minhas escolhas foram guiadas pelo inconsciente, eu não sabia para onde estava indo, o que iria surgir dali, mas acho que isso só foi possível porque é meu quinto romance, então a técnica já estava bastante incorporada. Se comparo com a escrita do “Toda terça”, meu primeiro livro, naquela época eu precisava prestar muita atenção à técnica, aos espelhamentos, diversas vozes narrativas, em como construí-las, era um jogo bem cansativo de tentativa e erro, já no “Armas” isso foi algo muito natural, a construção da máquina, seu funcionamento, então pude me concentrar em outras coisas, ir por outros caminhos.

ARL – “Com armas sonolentas” discute claramente questões de gênero e de classe, mesmo que não seja (ou é?) seu tema principal. Você acha que a literatura deve ter função social? Você acredita em um potencial revolucionário da literatura?

CS – Totalmente, se não acreditasse não escreveria. Não me refiro a uma literatura panfletária, que tenta dar ao leitor uma visão de mundo já pronta, uma ideologia. A literatura jamais é ideológica. Ou seja, a literatura não é uma ferramenta da macropolítica, mas uma arma da micropolítica. O que eu quero dizer com isso? A literatura tem o poder de transformar a visão que temos do mundo a de nós mesmos, não porque ela nos dê respostas, mas porque ela nos ajuda a criar novas perguntas, novos questionamentos, e assim, ela nos ensina a pensar, a repensar. Eu não consigo imaginar nada mais revolucionário do que isso (aliás não é por acaso que regimes totalitários têm tanto ódio dos artistas, professores e intelectuais). E como o pessoal é sempre político, em algum momento a transformação micropolítica vai dar frutos na esfera macropolítica também, e vice-versa.

ARL – A figura da fita de moebius, inspirada na Lygia Clark, pode ser considerada uma metáfora para a história?

CS – Sim, com certeza. A fita de Moebius sempre me interessou, tanto que ela já aparece no “Toda terça”. A ideia principal (também usada por Lacan) é que não há essa dicotomia dentro/fora, sujeito/inconsciente, na realidade um permeia o outro. Por isso, na história há a casa amarela, onde o lado de dentro é o lado de fora, nas palavras de Max. Aliás o próprio Max é isso, ele é o duplo de Maike, parecem personagens separados, mas no fim percebemos que são lados de uma fita de Moebius. Ou seja, são a mesma pessoa. Maike quando desperta está no apartamento de Max, usa o mesmo roupão que ele usava, sob a mesa, o manuscrito de um romance, Max dizia que estava escrevendo um romance que publicaria com pseudônimo feminino e cervantino, uma referência a mim mesma, a autora. Enfim, o livro todo está estruturado segundo a fita de Moebius. Na performance da Lygia Clark, “Caminhando”, há um outro aspecto interessante, ela em vez de cortar a fita ao meio (resultando em duas fitas iguais), corta criando a cada volta um pequeno deslizamento, resultando numa fita em permanente transformação, que é a trajetória da minhas personagens. Curiosamente, alguns meses depois de ter lançado o Armas, me deparei com o livro da Suely Rolnik, “Esferas da Insurreição” (recomendo muitíssimo) no qual ela fala justamente sobre esse aspecto do “Caminhando”.

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ARL – O seu livro brinca com o conceito de realidade e loucura, confundindo personagens e leitores em relação ao que é real, se há mágica ou insanidade, enfim. Por que trazer todo esse teor onírico para a narrativa?

CS – Eu venho de dez anos de análise, uso o verbo vir porque é isso mesmo, a escritora que sou hoje surge a partir dessa experiência. Tenho algumas teorias sobre isso, uma delas é que antes a construção muito racional dos meus livros era uma necessidade minha de construção de mundo, algo que me sustentava. Depois, com a análise, eu fui aprendendo a me sustentar em mim mesma, ou seja, no nada, no vazio, e daí pude partir para outros tipos de narrativa. Em outras palavras, antes eu precisava do realismo, dessa organização de mundo, depois senti uma espécie de liberdade, e também a compreensão de que (no meu caso) o realismo já não era suficiente para explicar o mais profundo, o mais místico da existência. Veio a compreensão de que o sonho, a alucinação, a loucura são aspectos tão válidos quanto o chamado “mundo real”. Os sonhos dizem verdades insuportáveis sobre nós, os sintomas também são uma linguagem, uma mensagem na garrafa, há uma linguagem que desprezamos muitas vezes, que é a linguagem do corpo, que é também do espírito, porque ambos são lados da mesma fita (de Moebius), de certa forma, tudo é literatura, o corpo, a doença, a repetição, tudo está aí para ter lido. E isso é ao mesmo tempo lindo e assustador.

ARL – A questão do realismo mágico é clássica na literatura latino-americana em língua espanhola e não tanto na brasileira. Como foi trabalhar isso aqui?

CS – Foi algo que aconteceu naturalmente, eu não tinha planejado. Ao contrário, quando comecei a escrever o livro achei que seria uma história realista, como foram os meus romances anteriores. Eu comecei pela história da Anna, mas quando cheguei na cena em que ela abandona o bebê no parque (eu não ligo pra spoiler), pensei, e agora, como escrevo isso sem que fique melodramático, exagerado, mas passando para o leitor toda a dramaticidade do acontecimento? Eu fiquei um bom tempo empacada nessa cena, nada funcionava, até que surgiu a capivara, e eu pensei, claro, a capivara vai falar com Anna e se oferecer para ficar com a criança. E foi um longo processo fazer com que a capivara falasse, com que ela falasse naturalmente. Enfim, chegou um momento em que o realismo já não dava mais conta, e quando eu compreendi isso, o livro se tornou outra coisa. De certa forma, a trajetória que o leitor faz durante a leitura é a mesma que eu fiz no processo de escrita, e isso foi um aspecto importante para mim, que ele fizesse essa “descoberta” junto comigo.

ARL – Como você se descobriu escritora e que dica daria pra quem está começando?

CS – Eu me descobri escritora quando aprendi a ler, foi amor à primeira vista. Eu fui uma criança muito tímida, muito melancólica, e os livros eram para mim a prova de que havia outros mundos possíveis. Para quem está começando: todo escritor é antes de tudo um bom leitor, leitor de literatura, mas também leitor do mundo, das pessoas, e principalmente, de si mesmo. Fora isso, além da técnica (ou seja trabalho, muito trabalho), é necessário coragem, muita coragem, e desejo, um desejo intenso, constante e insistente.

Serviço:

Com arma sonolentas, Carola Saavedra

Companhia das Letras, 2018

272 páginas

54,90 reais

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