A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Ainda sobre a Flip: talvez o mundo realmente esteja mudando

A efervescência intelectual da última edição do evento literário mais importante do país traduz em cifras para onde o mercado vai

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Na noite de sexta-feira, 12 de julho, uma corrente de água separava duas ideologias políticas. De um lado do rio, em torno de mil pessoas esperavam a fala de Glenn Greenwald na Flipei, uma das casas paralelas da Festa Literária Internacional de Paraty. Do outro, algumas dezenas de protestantes soltavam rojões e foguetes, gritavam, tocavam uma versão remixada do Hino Nacional e bradavam bandeiras do Brasil.

Em 2014, foi publicado o novo livro de Christiane F., que teve coautoria de uma jornalista. Era Sonja Vukovic, que me falou via Skype sobre um projeto seu que foi premiado: Pequena Berlim era uma análise de uma comunidade de menos de 100 habitantes que foi separada pelo divisão da Alemanha. Uma versão microscópica do que havia no país inteiro.

A noite da última sexta podia trazer o mesmo tipo de epifania, uma representação em pequeníssima escala do Brasil de hoje.

A Flip não é, contudo, sobre política. Ao menos não como mote principal. A Flip é um evento cultural que acontece há 17 anos em Paraty, uma cidade história do Rio de Janeiro onde ainda vive um herdeiro da monarquia, no chamado sobrado do príncipe.

A tomada da cidade por uma elite progressista coloca em evidência as disparidades sociais vividas na própria cidade. Enquanto as mesas discutindo alta literatura lotavam, com fila de espera, crianças indígenas de pés descalços caminhavam pelos paralelepípedos pedindo dinheiro, poetas locais tentavam chamar a atenção dos turistas e eram em grande parte ignorados, e as ruas eram tomadas por ambulantes expondo seus produtos sobre toalhas no chão.

A quantidade de dinheiro movimentada pela cidade nesse período levanta a questão: para onde ele vai?

Tento duas vezes ir a palestras de Conceição Evaristo, chegando com meia hora ou mais de antecedência, e encontro filas de centenas de pessoas. Dois anos antes, em 2016, eu a vi falar para uma sala cujos lugares não estavam todos ocupados. O que isso nos mostra sobre a situação atual do país? Avançamos?

A programação paralela, muito mais diversa que a principal, não tem amarras ou medo de colocar o dedo na ferida: a Casa TAG, um dos pontos altos do evento, trouxe discussões sobre feminismo (em uma mesa mediada por mim, com Kristen Roupenian, autora de Cat Person), racismo (com Djamila Ribeiro, Ayòbámi Adébáyò e mediação de Fernanda Bastos) e política. 

A mediação dessas casas, aliás, merece um aplauso extra: enquanto muitas vezes na programação principal parecíamos encontrar um bate-bola em que o entrevistador perguntava uma hora para um e na outra para outro autor, na programação paralela encontramos mediadoras incríveis que criavam solo comum entre as obras dos autores e faziam questões complexas e pertinentes incitadas por essa intersecção (destaque para Fernanda Bastos, que levantou o debate sobre ancestralidade de forma profunda e abrangente).

É curioso pensar sobre uma festa literária e seus significados: enquanto uma série de escritores esperançosos carregavam manuscritos e, segundo relatos, procuravam editores até em banheiros, alguns outros já publicados levavam a cidade (e o evento) como seus. Em uma mesa chamada “Terapia para editores”, ainda na quarta-feira, profissionais de editoras independentes levantavam questões, sonhos e decepções sobre o mercado.

Com a crise da Saraiva e da Cultura (que, ainda por cima, sofreu denúncias sérias sobre práticas trabalhistas abusivas), o monopólio da Amazon e a profissão do livreiro cada vez mais precarizada, como se pode pensar em sistema de livros?

A Livraria da Travessa, parceira oficial do evento, estava sempre lotada. Na fila do caixa, além de livros, os turistas levavam uma série de lembranças literárias como ecobags, lápis e canecas. Em algum momento me pergunto se algum desses turistas gasta, em um ano, com livros, o equivalente que investiu nessa viagem. Eu, que tento ler em torno de 50 livros por ano, ainda não.

É inegável a importância da Flip para formação e fomentação cultural de uma parte (privilegiada) da sociedade, e o sucesso dessa última edição, com as mesas e os restaurantes lotados, é mais uma prova inquestionável disso. Os encontros com autores, o mergulho literário e todos os questionamentos são sempre positivos. 

Uma pesquisa já famosa de 2014 falou que 94% dos escritores brasileiros são brancos e 73% homens. Cinco anos depois, a efervescência intelectual da última edição do evento literário mais importante do país traduz em cifras para onde o mercado vai: dos cinco livros mais vendidos na semana, um é de um escritor indígena, dois foram escritos por homens negros e os outros dois por mulheres negras.

Talvez o mundo realmente esteja mudando.

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