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A luta de quem tem a casa invadida pelos alagamentos em SP

Como moradores de áreas que sempre alagam na capital paulista adaptam suas casas (e suas vidas) para evitar perdas e transtornos?

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[Este é o blog do 32xSP. O site completo você acessa aqui]

Todo começo de ano, a Vila Itaim, no Jardim Helena, extremo da zona leste de São Paulo, vira manchete nos noticiários por conta das enchentes que castigam os moradores da região.

“É um inferno na terra. Já é ruim quando chove e alaga a casa, mas depois ainda temos que passar pela água podre todo dia para ir ao mercado ou para levar as crianças na escola. Olha, é desumano”, desabafa Josefa Maria da Silva, 53.

Segundo o estudo “População em Área de Risco no Brasil”, divulgado no segundo semestre de 2018 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o município de São Paulo tem 674 mil habitantes (6% de sua população total) vivendo em áreas sujeitas a enchentes e deslizamentos de terra.

A equipe do 32xSP foi até outros três pontos da cidade conversar com pessoas que residem em ruas e bairros que sempre alagam em períodos de chuvas e saber quais soluções elas criaram para tentar minimizar os estragos causados pelas enchentes.

Um metro e quarenta
(Tremembé, Zona Norte)

Dona Araci na porta de sua casa, protegida por uma comporta contra enchentes (Foto: 32xSP)

Quando o céu fica cinza na Travessa Correntinos, dona Araci dos Anjos, 92, vai até o segundo andar do sobrado onde mora e se debruça na janela com um terço em mãos. “Eu rezo para Deus não mandar tanta chuva, que é para não entrar dentro de casa, sabe?”, conta.

A rua extensa e apertada, onde todas as casas possuem dois andares, fica no distrito do Tremembé, zona norte de São Paulo. Antigamente, ali tudo era mato com uma grande quantidade de riachos e lagos. Boa parte da região era composta por fazendas. Por conta disso, até hoje é apelidada de Fazendinha.

Atualmente, o cenário no local é outro: não há mais árvores na rua e o percurso do rio foi asfaltado. Aos poucos, a Correntinos se transformou em mais uma rua urbanizada da capital paulista que provavelmente passaria despercebida.

“Você quer saber se ainda alaga aqui? Ah, não alaga não… Só quando chove mesmo”, é provavelmente a resposta debochada dada por qualquer morador sobre as enchentes corriqueiras na região. É também a explicação para as casas da rua serem diferentes.

Dona Araci dos Anjos nasceu e cresceu no bairro. Ela conta com precisão sobre a primeira enchente vista ali, em 1960. A memória não falha e ela lembra até do tapete da sala da vizinha boiando na água.

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Entrar em qualquer casa da travessa é perceber que você possivelmente teve a sorte de nunca pensar em organização e decoração de ambientes como aqueles moradores.

“Você viu minha geladeira como é? Foi o meu benzão que me deu! Depois a gente teve que fazer uma adaptaçãozinha nela”, comenta dona Araci. O benzão é o falecido marido dela. A “adaptaçãozinha” são grandes pedaços de madeira colocados nos pés da geladeira para a água da chuva não estragar o eletrodoméstico.

Curiosamente, a geladeira fica próxima a um armário com pés, para ser instalado no chão, mas dona Araci e sua filha Maria Cristina Ottoboni, 64, decidiram que seria melhor deixá-lo pendurado na parede.

“Aqui na cozinha tudo que é de plástico fica na parte de baixo dos armários, porque aí depois que a água da enchente baixar, é só lavar”
Maria Cristina Ottoboni, manicure

Maria é manicure. Faz unhas na garagem de sua casa. Quando um cliente chega, ela sobe o portão de ferro, se acomoda na cadeira e começa o trabalho.

É na parede em frente onde ela desempenha a função que está um detalhe curioso: marcas e números foram escritos a mão com caneta permanente na parede de azulejos. Na anotação mais alta lê-se “10 de janeiro de 2011 = 1.40mt”. Logo abaixo, outra escrita: “9 de abril de 2005 = 1.30mt”.

Em 2011, a enchente atingiu um metro e quarenta centímetros na casa (Foto: 32xSP)

“Eu comecei a anotar na parede até onde a água chega e as datas. Quando tem enchente, eu espero a água baixar, vejo até onde ficou a marca da lama na parede e marco”, explica a manicure.

A marca mais baixa é de 21 de fevereiro de 2014, quando a água subiu até 80 centímetros. “Já tiveram marcações mais baixas. É que agora, se não passar disso, a gente nem considera que foi enchente”, explica Maria Cristina.

Placas de ferro

Comportas contra enchentes podem custar mais de R$ 3 mil (Foto: 32xSP)

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Logo de cara é possível observar que praticamente todas as portas da rua possuem comportas — placas de ferro vedadas tentam impedir que a água adentre as casas.

“Uma dessas simples, mais baixinhas, que pega só um pedaço da porta, custa entre R$ 700 e R$ 1 mil. Tem uma casa aqui na rua, a 171, que a frente dela fica toda fechada. Aquilo deve ter passado de uns R$ 3 mil”. Quem afirma isso é Marcos Carmona, 53, morador da travessa.

A profissão oficial dele é de administrador de uma rede de informática, mas, por necessidade, foi obrigado a aprender outro ofício: o de serralheiro.

Foi ele quem fez boa parte das comportas das casas da rua. Entre 15 e 20, que ele lembra. Aprendeu sozinho a moldar os tubos de ferro e transformá-los nesses objetos de retenção de água.

“Quer ver meu aquário?”, ele pergunta no meio da conversa. O “aquário” é uma placa de vidro colocada por ele na frente da janela da garagem.

Recebeu esse apelido carinhoso porque certa vez choveu tanto que nem essa “gambiarra”, como ele diz, foi capaz de conter a água, que ficou parada entre a placa de vidro e a janela. Formando, assim, algo parecido com um aquário.

Quem vê de fora pode até estranhar, mas os moradores da Travessa Correntino já consideram essas modificações algo natural. Aos poucos, se descobre que cada morador achou um jeito diferente e inusitado para lidar com o problema grave que há anos está sem solução.

De novembro a março

Silvio Monteiro tem a casa toda adaptada para lidar com as enchentes (Foto: 32xSP)

“Pode entrar, fica à vontade. Vamos subir para minha casa?”, diz o funcionário público Silvio Monteiro, 54. Na hora, o “subir para minha casa” não faz sentido, visto que o local também é, aparentemente, um sobrado como outro qualquer: sala, cozinha e banheiro no primeiro andar; e os quartos no segundo. Todos os cômodos formando uma casa só.

Mas não é bem assim na casa de Silvio. Ao passar pela porta e entrar na sala, a falta de móveis chama atenção. “É que agora a gente tá em fevereiro. Nessa época do ano, eu não moro na minha casa toda”, explica.

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“É que agora a gente tá em fevereiro. Nessa época do ano, eu não moro na minha casa toda”
Silvio Monteiro, funcionário público

De abril a outubro, Silvio vive normalmente nos dois andares da residência comprada com o marido. Quando a temporada de chuvas começa no final do ano, ele sobe todos os móveis e passa a morar apenas no andar de cima.

A cozinha, antigamente localizada no andar inferior, foi transferida para o segundo piso, depois de uma enchente, onde quase tudo foi perdido na casa. No térreo ficam apenas dois sofás, construídos e azulejados.

“Eu fiz isso porque sempre que alaga, a água entra e leva tudo. Aí com o sofá assim, é só lavar depois. As paredes também, viu?”, conta, apontando para a parede da sala que até uma certa altura é toda de azulejo.

Turma da enchente

Grupo no WhatsApp serve para moradores trocarem informações e avisos sobre os alagamentos no bairro (Foto: 32xSP)

Para ao menos tentar controlar o incontrolável, os moradores da Travessa Correntinos usaram a tecnologia a seu favor. Em um grupo no WhatsApp, várias pessoas da rua conversam sobre um único assunto: o tempo.

“Como tá o céu aí?”, pergunta uma moradora que estava trabalhando no centro da cidade. “Está ficando cinza, mas as nuvens não estão vindo do lado que dá aquela chuvarada toda, sabe?”, responde outro morador por mensagem.

Diariamente, nos períodos de chuva, os moradores utilizam do grupo para saber se choveu, se alagou, se eles podem voltar para casa ou se precisam esperar a água da enchente baixar.

No grupo, são compartilhadas imagens da travessa alagada e também vídeos inusitados, como o do dia em que os bombeiros precisaram usar bote para entrar na rua.

A vida dos moradores da Travessa Correntinos se moldou ao redor das enchentes. Uns aprenderam a mexer com ferro, outros viraram meteorologistas sem querer.

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As famílias dessa rua têm uma regra em comum: nunca deixar a casa sozinha. Sempre é necessário que pelo menos um morador permaneça no imóvel quando começa a época de chuva.

Todas essas medidas preventivas foram pensadas por essas pessoas para não perder os bens materiais. Inclusive a sujeira na rua, acumulada depois que a água baixa, acabou se tornando de responsabilidade deles.

Os moradores utilizam a própria água e se reúnem para limpar os estragos gerados pelo alagamento. A população diz ter ligado para a Defesa Civil e para a subprefeitura do Jaçanã/Tremembé, mas não recebeu respostas positivas.

Em abril de 2015, a Secretaria de Infraestrutura e Obras (SIURB) iniciou o projeto de canalização do córrego do Tremembé com o propósito de amenizar o problema. Segundo informações da Prefeitura de São Paulo, a obra, estimada em R$ 106,6 milhões, tem prazo para terminar em abril de 2020.

Por enquanto, para quem reside na Correntinos, nada mudou. Quando a chuva começa a cair, existe uma mobilização tanto virtual quanto presencial para tentar evitar danos.

A despedida dos moradores vem em forma de piada, mas também serve de alerta: “Começou a pingar, hein? Se você ficar mais um pouco vai presenciar ao vivo como é quando enche aqui”, dizem, enquanto tocam a campainha de uma vizinha idosa para perguntar se ela quer ajuda para levantar os móveis da casa.

Três dias ilhados
(Jardim Lapenna, Zona Leste)

Jardim Lapenna fica no distrito de São Miguel Paulista (Foto: 32xSP)

Por estar em uma área da várzea do rio Tietê, o Jardim Lapenna, no extremo leste de São Paulo, também sofre com constantes enchentes — seja em períodos de chuvas de verão ou não.

Quem mora na parte mais alta do bairro, ao lado da estação São Miguel Paulista da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), não precisa se preocupar com os alagamentos. Mas quem está mais abaixo, quase na divisa com a cidade de Guarulhos, precisa tomar algumas providências para evitar estragos dentro de casa.

Quanto mais próximo ao rio, mais as residências apresentam modificações. Em determinado ponto, todas elas possuem calçadas mais altas, comportas contra enchentes ou são sobrados.

Na rua Nordestina, a casa da estudante de teatro Bianca Santos Machado, 19, é uma delas. “Minha mãe chegou aqui nos anos 1990, quando eu nem era nascida. Ela tinha todos os móveis novos, aí houve uma enchente e ela perdeu, literalmente, tudo”, comenta.

“Outra vez a água atingiu uma marca próxima ao registro de luz, podendo causar um curto circuito”. Depois disso, a família dela precisou construir um segundo andar no imóvel e manter todos os objetos na parte de cima da casa. Atualmente, o térreo está abandonado.

A jovem também conta que muitas vezes tanto ela quanto os seus vizinhos não conseguem sair de casa para ir ao trabalho ou à escola.

“No ano passado, a água encheu muito e nós ficamos três dias ilhados. Só a partir do terceiro dia que a gente conseguia passar no meio do alagamento usando uma bota de chuva de cano alto”
Bianca Santos Machado, estudante de teatro

Para a família de Bianca, as botas se tornaram item indispensável em períodos chuvosos. No entanto, o cuidado não é adotado por toda a população.

De acordo com Rosarinha Pereira, 49, agente comunitária de saúde, na época de alagamentos muitos moradores vão à UBS (Unidade Básica de Saúde) Jardim Lapenna se queixando de problemas de pele, principalmente em crianças.

“Os pais passam no meio da água com as crianças sem se preocupar com doenças. Elas acabam pisando na água de chinelinho e aí acontece isso”, conta.

Rosarinha trabalha a dois quarteirões da casa de Bianca e diz passar pelos mesmos problemas causados pela enchente. “Muitas vezes a gente não consegue chegar à UBS a pé. Já tivemos que esperar um carro para fazer nosso transporte. E, para sair, é a mesma coisa”.

Em novembro de 2018, o Jardim Lapenna sediou uma audiência pública sobre o Plano Diretor Municipal. Na ocasião, os moradores criaram o primeiro plano de bairro participativo da capital paulista.

Dentre sete principais necessidades discutidas com a população e representantes do poder público, uma delas diz respeito à microdrenagem do bairro. Ao custo de R$ 450 mil, se aprovada, a obra atenderá 1,5 quilômetro e pode ser uma solução contra as enchentes.

Próximos ao córrego
(Cidade Ademar, Zona Sul)

Na Cidade Ademar, zona sul da capital paulista, contabilizar os estragos deixados pelos alagamentos já virou parte da rotina de quem mora nas proximidades dos córregos Cordeiro e Zavuvus.

Prometida para junho de 2015, a conclusão das obras dos piscinões na região aconteceu apenas em novembro do ano passado, com a entrega da terceira unidade pela Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras (Siurb).

Quase três meses após a entrega dos piscinões, moradores voltam a reclamar das constantes enchentes.

“Com as fortes chuvas, o alagamento se inicia no cruzamento entre as avenidas Cupecê e Santo Afonso, chegando até as ruas Luís Stolb e Gomes de Amorim. A água forma correntezas e invade casas e comércios”, diz o segurança Kayque Ferreira, 22.

Com medo de novas enchentes, moradores passaram a construir comportas em frente às casas na tentativa de driblar o problema.

“Algumas casas têm comportas de tijolos no portão; outras têm de aço, que são colocadas somente quando a rua está enchendo, assim como a minha. Ela é de aço, abre e fecha igual um portão; sempre funciona”
Kayque Ferreira, segurança

Problemas urbanos

Em 2017, a Prefeitura de São Paulo usou apenas 32% de seu orçamento para o combate à enchentes na cidade. Dos R$ 564,2 milhões destinados a esse fim, foram gastos apenas R$ 180,9 milhões. Em 2018, a administração municipal teve recurso orçado no valor de R$ 414,6 milhões para ações contra enchentes.

De acordo com a administração municipal, o investimento em obras de drenagem foi prejudicado por causa de falhas nos repasses federais do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Segundo informações obtidas pela GloboNews, nos últimos quatro anos, caiu o repasse de verba do Ministério das Cidades, do governo federal, para que a Prefeitura de São Paulo combatesse enchentes.

Em 2014, o valor enviado pelo governo federal para o município foi de R$ 199,4 milhões; em 2015, o número diminuiu para R$ 13,2 milhões. Em 2016 e 2017, os repasses foram de R$ 46,4 milhões e R$ 44,7 milhões, respectivamente.

O Ministério das Cidades afirmou ao veículo que, de 2011 a 2014, foram selecionadas 12 operações de obras de macrodrenagem em São Paulo no valor de repasse de R$ 2,2 bilhões.

Mas, “três operações não obtiveram êxito para serem executadas e os contratos foram cancelados pelo fato de que a Prefeitura de São Paulo não conseguiu atender aos requisitos mínimos para o levantamento das cláusulas suspensivas”.

Projetos de lei

Tramitam na Câmara Municipal de São Paulo duas propostas que buscam reduzir as enchentes na capital paulista.

O Projeto de Lei (PL) nº 114/2017, de autoria do vereador Ricardo Teixeira (PROS), determina a implantação de asfalto permeável e rede de captação das águas pluviais nas principais ruas da cidade com problemas de alagamento, incluindo estacionamentos de shopping centers, supermercados, escolas, hospitais e condomínios.

Com objetivo semelhante, o Projeto de Lei nº 118/2017, de autoria do vereador Souza Santos (PRB), estabelece a obrigatoriedade da utilização de piso drenante em calçadas novas ou quando reformadas.

O texto altera a lei nº 15.442/2011 e fixa multa de R$ 300 por metro linear caso o pavimento construído ou reformado não empregue material poroso.

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