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A função social da legalização da maconha

Precisamos garantir que os traficantes das bocas de fumo tenham o direito de participar do mercado de maconha legalizada

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* por João Henriques / Ilustração Felipe Navarro

A definição de regras para um eventual mercado de maconha legalizada não é tarefa simples e causa divergências até dentro do movimento antiproibicionista. O objetivo aqui não é apontar qual o melhor modelo a ser adotado no Brasil, mas refletir sobre a necessidade da legalização não ser uma simples página virada das décadas de letalidade gerada pela guerra às drogas.

As mortes de traficantes, policiais e inocentes sem nenhuma relação com este tipo de conflito jamais serão reparadas, mas merecem um espaço respeitável nos livros que vão contam a história do século 20. Eternizar a memória daqueles que perderam a vida por conta de uma política estúpida é uma forma de tentar evitar que o mesmo equívoco não seja repetido no futuro. Deveria ser assim com a história da escravidão e de todas as insurreições populares que foram duramente massacradas pelo Estado brasileiro da Colônia, do Império e da República. Infelizmente cuidamos mal do nosso passado.

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Uma legalização preocupada com questões sociais não pode excluir aqueles que estavam na mira dos fuzis. Vou ser direto: precisamos garantir que os traficantes das bocas de fumo tenham o direito de participar do mercado de maconha legalizada. Este lucrativo negócio não pode ser controlado por grandes corporações e/ou empreendedores abastados. Falo dos chamados “aviõezinhos” e “esticas”, jovens pobres da periferia, que muitas arriscaram a vida para garantir o prazer do usuário. É justo que recebam alguma forma de incentivo público para criar um negócio formal no milionário mercado que será constituído.

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(Foto: Pixabay)

Parte do público leitor deve estar indignado com o que escrevi acima, pensando no estereótipo do traficante assassino e armado até os dentes. Por isso, é importante registrar que a realidade do mercado negro de drogas é bem diferente. Para compreender isto, basta analisar o perfil dos presos por tráfico de drogas no Brasil.

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De acordo com uma pesquisa feita em 2018 pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro e a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, o perfil mais comum do condenado por tráfico é a pessoa sem antecedentes criminais, presa sozinha, desarmada e portando pouca quantidade de droga.

Segundo o estudo, 91,06% das pessoas acusadas pelos crimes de tráfico são do sexo masculino e 59,39% estavam sozinhas no momento da prisão. Além disso, 77,36% não tinham antecedentes criminais, sendo que 73,85% eram réus primários. Em apenas 36,56% dos casos, o acusado portava armas ou rádio transmissor.

Não é exagero dizer que muitos destes condenados por tráfico jamais realizaram o comércio ilícito. São usuários presos em situações alimentadas por uma cultura policial preconceituosa, que tratou de enquadrar todo jovem maconheiro da favela como traficante. Uma pequena porção de maconha no bolso é suficiente acabar com a vida deste que vai perder alguns anos de vida na cadeia. A pena para o crime de tráfico é de 5 a 15 anos.

A reparação de injustiças históricas são raras (provavelmente inexistentes) nas decisões políticas do nosso país. A simples legalização da maconha no Brasil já é uma tarefa bem difícil e, provavelmente, seremos um dos últimos países do mundo a acabar com essa proibição. Esperar que tal mudança venha acompanhada de uma vontade política de reparar danos gerados por ações equivocadas do Estado é só o sonho de um militante da erva.

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