Artigo

Quais memórias levaremos junto a nós no ciclo que se inicia?  

Ciclos de injustiça são rompidos quando as memórias permanecem nas lembranças do que foi vivido e transmitido.

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Os Adinkras são um conjunto de símbolos ideográficos dos povos Acã, da África Ocidental. O Sankofa, dentre eles é o que mais amo. É a imagem de uma ave que tem a cabeça voltada para trás, simbolizando que para construir o futuro é preciso olhar para as memórias do passado e resinificar o presente.

O silenciamento das memórias é uma estratégia secular utilizada desde a colonização, para que povos africanos fossem destituídos de saberes necessários diante das insurgências que o futuro exigiria, pois após a travessia do Atlântico, a memória ancestral deveria ficar para trás. Estratégia que ainda hoje está presente. Como escreveu (POLLAK, 1992, p. 200-212)

“Ora, se é um fenômeno construído individual e socialmente, e o outro faz parte desta construção, é natural o conflito entre a memória individual e a memória alheia; assim, “a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos”

O ano 2020 dilacerou muitas vidas, contudo o que vivemos não pode ser esquecido, silenciado ou enterrado. Aquilo que é colocado sob a terra, encontra uma forma de renascer. Ao iniciarmos um novo ciclo em 2021, a memória que é a senhora de quem hoje somos, sempre estará entre nós e se há uma disputa entre o que será lembrado e o que será silenciado, quais as memórias que preservaremos? Quais estaremos atentas para que não sejam silenciadas em tempos de negacionismo e ataques a democracia?

Faço a você um convite para trilhar o caminho de volta e valorizar o passado. Buscar fortemente a “África que em você habita”, frase do documentário Sankofa, sobre as viagens do fotografo César Fraga e do escritor Maurício de Barros, feitas ao redor da África.

Retorne. Olhe para trás e certamente compreenderá melhor o presente e a importância de rompermos com ciclos de injustiças, para que não se repitam no futuro. O presente só pode ser resinificado se as memórias forem incorporadas.

 

Na última viagem que fiz para a cidade dos meus avós, Araruna no Paraná, revisitei o estádio de futebol existente, que recebeu o nome do meu avô, José 14 e enxerguei o que antes não via, porque está apagado. Por toda parte há registros do meu avô como um premiado técnico de futebol.

Desta vez percebi que não havia registros de quando ele criança, fugiu das cordas que o amarravam a um forno a lenha de uma fazenda.  Após a fuga, ganhou seu sustento como carroceiro. A carroça era a de número 14, daí a origem do apelido. Soube disto quando meu tio Pedro, único irmão do meu pai que ainda vive me contou a história. A violência sofrida e a luta do meu avô foram silenciadas, mas agora ficará aqui gravada.

Pude compreender o orgulho que meu avô sentia do apelido. Entendi porque meu Pai Fernando, se vangloriava por ter sustentado 6 filhos dirigindo o próprio caminhão e porque se emocionou profundamente quando assistiu a cerimonia de conclusão do meu primeiro curso superior. Ele sempre dizia as pessoas com o peito inflado, que eu era professora e que ensinar e aprender era ofício de sua filha. Hoje sei que meu avô, meu pai e eu, rompemos ciclos de iniquidade.

Ciclos de injustiça são rompidos quando as memórias permanecem nas lembranças do que foi vivido e transmitido, possibilitando que o passado possa ser reinterpretado.  A exemplo do movimento Vidas Negras Importam, que dentre muitas ações, derrubou a estátua de um traficante de escravos, na cidade de Bristol na Inglaterra, substituindo pela da manifestante Jen Reid, ampliando o debate sobre a exclusão/substituição de símbolos do passado colonial.

É preciso que esteja vivo na memória que a criação do SUS foi uma revolução na história da medicina brasileira, pois nenhum país no mundo com mais de 200 milhões de habitantes ousou dizer que a saúde é um direito de todos, embora o Brasil, atualmente ser um dos com mais números de mortos causadas pela COVID e as vítimas só fazem aumentar enquanto escrevo este artigo.

Na memória da história deve estar que o Brasil, foi pioneiro na incorporação de vacinas no Calendário do SUS, ofertando de maneira universal.  No entanto, a população brasileira hoje assiste dezenas de países iniciarem o processo de vacinação contra COVID, esperançosa de que a vacina chegue também, aos braços dos brasileiros.

Não podemos permitir que silenciem os dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública ao projetar que o feminicídio deixa mais de dois mil órfãos no país todos os anos, pois a mãe é assassinada e o pai preso. Neste último Natal, seis mulheres que viviam suas vidas, agora se encontram nas estatísticas do feminicídio no Brasil, dentre elas Loni Priebe de Almeida, de 74 anos. Todas mortas por ex companheiros.

Neste período em que vivenciamos simbolicamente, o encerramento de um ciclo e o início de outro, eu desejo fortemente que tenhamos a coragem de fazer o que o Adinkra Sankofa nos provoca: “Voltar para trás e pegar.” Um Feliz novo ciclo, só será novo e mais feliz, se estivermos também olhando fixamente para o que vivemos, mesmo que doa. Que possamos manter as experiências vivas na memória e na história.

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