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Análise: Reforma administrativa não passa de uma reforma de recursos humanos

‘Proposta pouco trata da organização das funções de governo’, escrevem Walfrido Warde Jr. e Valdir Simão

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag. Brasil Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Ag. Brasil
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Por Walfrido Jorge Warde Junior e Valdir Simão*

Enfim, o governo federal enviou ao Congresso a tão esperada proposta de reforma administrativa. Sem modéstia, a Proposta de Emenda à Constituição foi apelidada de PEC da Nova Administração Pública, mas não passa de uma reforma de recursos humanos que altera a disciplina de contratação de servidores e empregados públicos e a gestão das respectivas carreiras.

A proposta pouco trata da organização administrativa das funções de governo e está desconectada da melhoria da qualidade da prestação dos serviços públicos, justificativa do Ministério da Economia para a sua aprovação. É evidente que a principal preocupação é o elevado custo da folha de pagamento de pessoal para o orçamento público, cada vez mais engessado e difícil de ser manejado.

De fato, a PEC corrige distorções inexistentes na esfera federal há mais de 20 anos, mas que persistem em várias administrações públicas estaduais e municipais. São exemplos a licença-prêmio de três meses a cada cinco anos de serviço e o anuênio, adicional de tempo de serviço que aumenta o salário do servidor em 1% por ano. Alguns aspectos merecem, porém, reflexão profunda, para evitar que a administração pública brasileira seja fragilizada a ponto de causar dano irreparável aos milhões de brasileiros que dependem da atenção do Estado para sobreviver.

O primeiro ponto é a remuneração das carreiras de elite do setor público, comparativamente mais alta que a dos trabalhadores do setor privado. Embora a remuneração de ingresso seja menor, essas carreiras são demasiadamente curtas. O servidor chega ao topo em pouco tempo. Em poucos anos, a remuneração de certos servidores alcança o teto constitucional. Que estímulo terá o servidor público ao chegar rapidamente ao topo da carreira, tendo de permanecer no cargo por 30 anos ou mais até a aposentadoria? A resposta lógica é que as carreiras devem ser alongadas, ajustando-se a remuneração de entrada e respeitando-se o teto constitucional. De toda forma, causa perplexidade a declaração do ministro da Economia, de que cargos do alto escalão do funcionalismo pagam pouco.

Outra questão é a estabilidade que, segundo o governo, dificulta o desligamento de maus servidores públicos. Esse é um falso problema. A estabilidade é essencial para preservar a atuação independente de algumas funções de Estado, como polícia e auditoria. Pelas regras atuais, o servidor público adquire estabilidade após três anos de exercício e avaliação especial de desempenho. Na condição de estável, perderá o cargo somente por decisão judicial transitada em julgado, processo administrativo disciplinar ou desempenho insuficiente detectado em avaliação periódica. O verdadeiro problema é que a avaliação de desempenho até hoje não foi regulamentada.

A PEC reserva a estabilidade aos cargos típicos de Estado, que serão definidos em lei. Os demais servidores contratados por prazo indeterminado poderão ser demitidos pelo chefe. A estabilidade virá apenas após um ano de exercício no cargo típico de Estado. Antes, como etapa do concurso público, o servidor será submetido a dois anos de experiência e somente os mais bem avaliados serão efetivados. A pergunta óbvia é: são necessários dois anos para avaliar se o candidato tem as aptidões necessárias para a função? E se não for efetivado, como ficam os atos administrativos praticados nesse período? Ou o servidor não exercerá funções em que tenha de tomar decisões?

Outro aspecto estranho é a vedação de desligamento de servidores por motivação político-partidária, que não alcança os cargos de liderança e assessoramento, destinados às atribuições estratégicas, gerenciais e técnicas. Esses cargos poderão servir a interesses de partidos? Da mesma forma, preocupa a proposta de dar ao presidente competência para extinguir órgãos, como ministérios, autarquias e fundações, sem a necessidade de projeto de lei.

A PEC é a primeira fase da reforma. Ainda serão apresentados projetos de lei tratando de gestão de desempenho, diretrizes de carreiras e cargos, funções e gratificações (segunda fase da reforma) e o projeto de lei complementar do Novo Serviço Público, que introduzirá um marco regulatório das carreiras, governança remuneratória e direitos e deveres da administração pública (terceira fase). Esses projetos ainda não são conhecidos, o que causa inquietação e insegurança.

Reformar a administração pública é legítimo e necessário, desde que sejam dadas garantias de que os serviços públicos não serão ainda mais precarizados. O que a sociedade espera é que o governo seja capaz de organizar melhor suas estruturas administrativas, reduzir custos, motivar as pessoas que se dedicam à missão de oferecer serviços públicos com respeito, acessibilidade e qualidade.

*Valdir Simão é advogado e ex-ministro-chefe da Controladoria-Geral da União (CGU).

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