Sociedade

“Martírio” e a tragédia imposta aos Guarani-Kaiowá

O documentário de Vincent Carelli reconstrói os abusos do Estado brasileiro e do capital contra os indígenas

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Assistam ao documentário Martírio. Estreou em São Paulo na última quinta-feira 13. Ainda que o título possa induzir, não se trata de um blockbuster de terror. Mas aterroriza. Durante duas horas e quarenta minutos, o indigenista e cineasta Vincent Carelli filma o drama dos Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, aviltados em seus trabalhos, saúde e cultura, tentando se defender de um sistema econômico, este sim selvagem, bancado por canalhices públicas e privadas.

Para realizar Martírio, Carelli e sua equipe pesquisaram mais de 100 anos da história da região, suas população e forma de colonização. Fosse entre 1864 e 1870, período da Guerra do Paraguai, estaríamos discutindo sobre área alheia.

Vitoriosa a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), coube-nos 90 mil quilômetros quadrados do país vencido, hoje 25% do território do Mato Grosso do Sul. A guerra custou aos paraguaios a perda de quase 40% de sua área total.

Sem tal reconstituição é impossível discutir os direitos dos povos indígenas da região. A não ser por malandragem ruralista.

Pesquisem em sequência: Marechal Cândido Rondon (1865-1958), herói ou vaselina? Serviço de Proteção aos Índios (SPI), criado em 1910, registros oficiais que elucidam os direitos hoje reclamados pelos Guarani-Kaiowá. Cinco milhões de hectares arrendados aos intendentes que guerrearam no Paraguai, aonde foram parar? Getúlio Vargas e a “Marcha para o Oeste”, em 1938, abertura para colonização sem controle da grilagem e demarcação. Avanço do agronegócio dos anos 1960/70 em diante. Aumento no valor dos preços das terras.

Queriam o quê? Os índios apenas pedindo apito?

“Ah, não tenho mais saco para ladainhas de minorias”. Pena. Caso suas capacidades de se indignar e comover sejam rasas como um pires, o documentário ao menos servirá para comprovar a máxima do ruralista paranaense e ministro da Justiça Osmar Serraglio, múmia em coluna de 04/04, ao dizer que terra não enche a barriga de ninguém, daí ser desnecessário demarcar as indígenas.

Nessas aldeias, passa-se fome. Pode haver aí uma divergência entre políticos ruralistas. Em suas colunas sobre “agronegociatas” na Folha de São Paulo, Ronaldo Caiado insiste em defender a livre venda de terras a estrangeiros que, compradas, logo serão demarcadas, jagunços armados as defenderão, e panças se servirão delas até o fartar.

Martírio é sobre o nosso povo. Tanto faz se minorias ou maiorias. Direitos iguais. É tudo gente, como queria o genial antropólogo e tantas coisas mais Darcy Ribeiro.

No Brasil, a questão indígena se resolve com Estado. Na Federação de Corporações, ela não se resolve. Querem ver?

Fui procurar no Google alguém mais que a discutisse. E quem encontrei? Eu mesmo. Em 25 de abril de 2014, nesta CartaCapital, escrevi “Sem pressa para a questão indígena”. A múmia de minha coluna foi outro ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, do governo Dilma Rousseff. Dizia sobre as demarcações: “Não é uma questão de tempo, é uma questão de cuidado”.

Ao que eu respondia: “Entendo. Loja de cristais mantida por dívida histórica, apropriações indébitas oficializadas em cartórios, barafundas da expansão agropecuária, sem que parte da sociedade e as três instâncias de governo atentassem ao disposto em Lei de 1973, artigo 231 da Constituição de 1988 e Decreto-Lei de 1996. Que eu saiba, estamos em 2014. E sem pressa”.

Reparem bem, há três anos, período de governo petista, se permitiu uma moratória que, hoje, golpe dado, resultou na PEC 215, que pode invalidar os 55.600 hectares a serem demarcados no Mato Grosso do Sul.

O documentário permite-nos ver, à época dos mais graves conflitos entre índios e fazendeiros na região, a ex-ministra da Agricultura, Kátia Abreu, então presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), discursar e defender produtores que “só pediam paz”. Sim, a paz dos corpos enterrados em cemitérios indígenas.

Senhores que não têm saco para ladainhas minoritárias, alerto: índios são pobres, assentados agrícolas são pobres, favelados são pobres, negros são pobres, mulheres recebem menores salários, o Brasil é um país pobre. Essa a maioria. Minoria somos nós.

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