Tecnologia

Quando o pessoal da internet serve como censor

Não podemos confiar no YouTube e Cia. para defender a liberdade de expressão

Imagem mostra a página inicial do Facebook. Foto: Loic Venance / AFP
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Por John Naughton

O primeiro pensamento que ocorre a qualquer pessoa que encontre no YouTube o hoje infame vídeo Inocência dos Muçulmanos, sem saber nada sobre ele, provavelmente seria que ele faz A Vida de Brian, do Monty Python, parecer um trabalho de uma produtora B. É tosco, amadorístico além da conta e, bem, totalmente estranho. Por isso, a ideia de que uma produção tão tola pudesse provocar chacinas em partes distantes do mundo parece absurda.

Mas foi o que aconteceu. No processo, o vídeo criou muitas dores de cabeça para um governo americano que luta para lidar com a parte mais turbulenta do mundo. Mas também levantou algumas perguntas delicadas sobre o papel das empresas comerciais na regulamentação da livre expressão em um mundo conectado em rede – perguntas que permanecerão muito depois que A Inocência dos Muçulmanos for esquecido.

Comentaristas europeus observaram com prazer que a confusão mostra quão pouco o mundo árabe entende a ideia da liberdade de expressão. Na verdade, mostra o abismo que separa os Estados Unidos do resto do mundo, incluindo a Europa. Se o vídeo tivesse aparecido em um site de hospedagem baseado no Reino Unido, por exemplo, teria sido retirado por incitação ao ódio religioso.


Mas a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos provê um tipo diferente de ambiente jurídico. O governo Obama não estava, portanto, em condições de proibir o vídeo, por isso tomou o caminho de tentar convencer a Google, dona do YouTube, de que ele violava as regras do site. A Google recusou o pedido dez dias atrás, dizendo que o vídeo não violava suas condições de utilização referentes ao livre discurso. O vídeo continuaria online porque era contrário à religião islâmica, mas não aos muçulmanos.

Até aí, tudo bem. Mas então a Google pareceu minar seu próprio argumento, ao anunciar que tinha bloqueado o acesso ao vídeo em alguns países. O acesso foi negado na Índia e na Indonésia porque violava leis locais, mas também foi bloqueado no Egito e na Líbia, não porque violasse suas leis mas por causa da “situação delicada”.

Nessa altura, mesmo os que não são advogados constitucionais começam a farejar um rato. Temos aí uma empresa comercial efetivamente fazendo julgamentos editoriais. Se a Google fosse uma editora, como por exemplo The New York Times, a questão de se deveria ou não publicar o vídeo poderia ser descartada através de um canal estabelecido – os tribunais. Mas a Google não é uma editora: é algo totalmente diferente – um intermediário –, uma espécie de entidade cada vez mais comum hoje em dia e que inclui Facebook, Twitter e, estranhamente, a Amazon.

Portanto, estamos agora em território não mapeado, muito bem descrito por um acadêmico de direito, Eoin O’Dell, em seu blog: “Primeiro, no mundo online, onde a maioria das pessoas acessa a internet através de uma série de intermediários, a censura do governo não precisa necessariamente visar o discurso reprovável; basta visar os intermediários. Muito poucas empresas dos EUA se sentiriam capazes de recusar um pedido como esse da Casa Branca, e a Google deve ser elogiada por se manter firme nessas circunstâncias. Segundo, esses intermediários hoje têm um grande poder prático sobre a expressão online; não apenas podem ser cooptados pelo governo como agentes de censura estatal, como também têm a capacidade de agir como censores por conta própria, como fez a Google em sua ação unilateral de bloquear o acesso no Oriente Médio”.

Estranhamente, essa questão surgiu primeiro em relação à Amazon, que a maioria das pessoas considera apenas uma loja online, mas que também fornece serviços de computação em nuvem que a tornam um intermediário. Durante a controvérsia do “Cablegate”, quando o WikiLeaks enfrentou um constante ciberataque, o site foi transferido para o serviço de nuvem EC2 da Amazon, sob a explicação de que a infraestrutura da companhia poderia suportar qualquer nível de ataque. Mas o alívio oferecido foi temporário, porque a Amazon expulsou sumariamente o WikiLeaks de seus servidores depois de declarações furiosas de alguns políticos americanos, notadamente o senador Joe Lieberman e o vice-presidente Biden. A Amazon alegou que expulsou o WikiLeaks simplesmente porque violava seus termos e condições de serviço.

Ah, é? O governo Obama sabia que uma ordem direta para a Amazon não teria sobrevivido ao desafio da Primeira Emenda. Mas eles adivinharam que o mesmo efeito poderia ser alcançado através de uma declaração pública de uma autoridade, executada por ação “voluntária” de uma empresa privada.

O que isso significa, como indicou o acadêmico de direito Yochai Benkler, é que as salvaguardas da livre expressão garantidas pela Primeira Emenda da Constituição americana não contariam muito em uma esfera pública construída totalmente de infraestrutura de propriedade particular. O Facebook ou o Twitter podem parecer espaços públicos, mas quando se vai ao cerne eles não oferecem mais liberdade de expressão que um shopping center comum.

Por John Naughton

O primeiro pensamento que ocorre a qualquer pessoa que encontre no YouTube o hoje infame vídeo Inocência dos Muçulmanos, sem saber nada sobre ele, provavelmente seria que ele faz A Vida de Brian, do Monty Python, parecer um trabalho de uma produtora B. É tosco, amadorístico além da conta e, bem, totalmente estranho. Por isso, a ideia de que uma produção tão tola pudesse provocar chacinas em partes distantes do mundo parece absurda.

Mas foi o que aconteceu. No processo, o vídeo criou muitas dores de cabeça para um governo americano que luta para lidar com a parte mais turbulenta do mundo. Mas também levantou algumas perguntas delicadas sobre o papel das empresas comerciais na regulamentação da livre expressão em um mundo conectado em rede – perguntas que permanecerão muito depois que A Inocência dos Muçulmanos for esquecido.

Comentaristas europeus observaram com prazer que a confusão mostra quão pouco o mundo árabe entende a ideia da liberdade de expressão. Na verdade, mostra o abismo que separa os Estados Unidos do resto do mundo, incluindo a Europa. Se o vídeo tivesse aparecido em um site de hospedagem baseado no Reino Unido, por exemplo, teria sido retirado por incitação ao ódio religioso.


Mas a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos provê um tipo diferente de ambiente jurídico. O governo Obama não estava, portanto, em condições de proibir o vídeo, por isso tomou o caminho de tentar convencer a Google, dona do YouTube, de que ele violava as regras do site. A Google recusou o pedido dez dias atrás, dizendo que o vídeo não violava suas condições de utilização referentes ao livre discurso. O vídeo continuaria online porque era contrário à religião islâmica, mas não aos muçulmanos.

Até aí, tudo bem. Mas então a Google pareceu minar seu próprio argumento, ao anunciar que tinha bloqueado o acesso ao vídeo em alguns países. O acesso foi negado na Índia e na Indonésia porque violava leis locais, mas também foi bloqueado no Egito e na Líbia, não porque violasse suas leis mas por causa da “situação delicada”.

Nessa altura, mesmo os que não são advogados constitucionais começam a farejar um rato. Temos aí uma empresa comercial efetivamente fazendo julgamentos editoriais. Se a Google fosse uma editora, como por exemplo The New York Times, a questão de se deveria ou não publicar o vídeo poderia ser descartada através de um canal estabelecido – os tribunais. Mas a Google não é uma editora: é algo totalmente diferente – um intermediário –, uma espécie de entidade cada vez mais comum hoje em dia e que inclui Facebook, Twitter e, estranhamente, a Amazon.

Portanto, estamos agora em território não mapeado, muito bem descrito por um acadêmico de direito, Eoin O’Dell, em seu blog: “Primeiro, no mundo online, onde a maioria das pessoas acessa a internet através de uma série de intermediários, a censura do governo não precisa necessariamente visar o discurso reprovável; basta visar os intermediários. Muito poucas empresas dos EUA se sentiriam capazes de recusar um pedido como esse da Casa Branca, e a Google deve ser elogiada por se manter firme nessas circunstâncias. Segundo, esses intermediários hoje têm um grande poder prático sobre a expressão online; não apenas podem ser cooptados pelo governo como agentes de censura estatal, como também têm a capacidade de agir como censores por conta própria, como fez a Google em sua ação unilateral de bloquear o acesso no Oriente Médio”.

Estranhamente, essa questão surgiu primeiro em relação à Amazon, que a maioria das pessoas considera apenas uma loja online, mas que também fornece serviços de computação em nuvem que a tornam um intermediário. Durante a controvérsia do “Cablegate”, quando o WikiLeaks enfrentou um constante ciberataque, o site foi transferido para o serviço de nuvem EC2 da Amazon, sob a explicação de que a infraestrutura da companhia poderia suportar qualquer nível de ataque. Mas o alívio oferecido foi temporário, porque a Amazon expulsou sumariamente o WikiLeaks de seus servidores depois de declarações furiosas de alguns políticos americanos, notadamente o senador Joe Lieberman e o vice-presidente Biden. A Amazon alegou que expulsou o WikiLeaks simplesmente porque violava seus termos e condições de serviço.

Ah, é? O governo Obama sabia que uma ordem direta para a Amazon não teria sobrevivido ao desafio da Primeira Emenda. Mas eles adivinharam que o mesmo efeito poderia ser alcançado através de uma declaração pública de uma autoridade, executada por ação “voluntária” de uma empresa privada.

O que isso significa, como indicou o acadêmico de direito Yochai Benkler, é que as salvaguardas da livre expressão garantidas pela Primeira Emenda da Constituição americana não contariam muito em uma esfera pública construída totalmente de infraestrutura de propriedade particular. O Facebook ou o Twitter podem parecer espaços públicos, mas quando se vai ao cerne eles não oferecem mais liberdade de expressão que um shopping center comum.

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