Sociedade

Uma frase para a posteridade

O que você diria ao mundo em sua última frase? No memorial de Santos, a lápide de uma mulher deixou o recado: ‘Estou ótima’

Lápide de mulher morta em 2007, em Santos: "Estou ótima".
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Em uma pauta no memorial de Santos, o repórter Willian Vieira viu e a fotógrafa Olga Vlahou registrou a lápide de uma senhora morta em 2007, aos 69 anos, que dizia aos visitantes: “Estou ótima”.

Ao ver a foto na internet, uma amiga comentou: “pois a minha será ‘Aqui jaz, sob protesto'”.

Foi só a deixa para que eu passasse uma noite em claro imaginando que mensagem deixaria para a posteridade quando me restasse só um fio de lucidez. O que me levou a uma conclusão: preciso deixar pronta uma frase-feita antes que o facão da morte me pegue desprevenido.

Foi um parto. Tudo o que pensei já tinha dono: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”, “Nem só de pão vive o homem”; “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”; “Há algo de podre no reino da Dinamarca”; “A felicidade é uma arma quente”, “A dureza do prélio não tarda”…

Por coincidência, tinha ido a um restaurante dias atrás e me deparado com o mesmo drama de não ter nada de interessante a dizer nesta vida (menos ainda na outra). Sabendo da vocação (ou mania) humana de deixar suas marcas por onde passa, o dono do lugar pintou de verde as paredes do banheiro e deixou uma coleção de giz à disposição do cliente para escrever o que quisesse. Foi como dar doce para criança: as palavras se acotovelavam num espaço diminuto gritando o recado de seus donos. E, para a minha surpresa, 90% das mensagens eram variações de um mesmo grito: “Vai Curintia” (assim mesmo, com “u”, sem “h” nem “s”).

Leia outras crônicas:

Está certo que giz de escola não é exatamente a matéria prima adequada para uma mensagem à posteridade, mas a tentativa me pareceu louvável.

Certa vez, Manuel Bandeira descreveu a angústia (era essa a palavra) de João Guimarães Rosa ao assumir uma coluna em um jornal diário. Angústia compreensível, segundo Bandeira, já que, para um jornalista de vocação, escrever não era obrigação, mas uma necessidade. Nada a ver com o autor de “Grande Sertão: Veredas”. “Escrever para jornal é como escrever na areia. Rosa grava na pedra. Para a eternidade”, resumiu Bandeira.

Óbvio que o Rosa colunista não daria certo, mas seu “Grande Sertão” segue lá, eterno feito uma lápide com suas caudalosas quinhentas e poucas páginas.

Por sorte, ou azar, nem Rosa nem Bandeira viram a era dos pensamentos enxutos em 140 caracteres, em que a capilaridade do que se diz é medida em poucos instantes e depois se perde para nunca mais. A Luiza, que estava no Canadá e não era Riobaldo nem Diadorim, levou menos de uma semana para ser esquecida; e ai de quem ouse fazer hoje referência à velha piada num meio que pede o novo sempre.

De toda forma, dá para imaginar que nesse mundo novo, admirável ou não, a possibilidade de escrever o que se pensa num veículo de alcance ilimitado pode ter arrefecido vocações ao perigo de alguns amigos pichadores (pichadores mesmo, porque aquilo não era grafite) que fiz na adolescência. Um deles se arriscou a escrever seu nome de guerra no alto de um edifício em construção de nossa cidade. No dia seguinte, contava as desventuras: o medo do escuro, de tropeçar em alçapões invisíveis, de cair em linha reta, de ser pego pela polícia ou algum segurança. Valeu a pena? “Ô! Quando você olha lá embaixo e sabe que todo mundo tá lendo seu nome, é uma emoção”.

Sem querer, meu amigo pichador acabava de resumir o anseio de todo humano demasiado humano: ser notado numa multidão disforme – drama que vem sendo resolvido desde os desenhos das cavernas até os adesivos de automóveis.

Ainda hoje, na falta de adesivos ou cavernas, tentamos deixar nossas marcas em paredes de banheiro ou do metrô, onde Simon e Garfunkel diziam estar as palavras dos verdadeiros profetas (e, com isso, faziam mais uma frase para novas paredes de metrô). Na era virtual, sobreviveram apenas os mais aptos nas ruas. Vai ver é por isso as frases à la Gentileza têm ficado mais comuns nos muros das grandes cidades. Dia desses, fez sucesso pela internet uma frase também captada por uma lente atenta: “Bacon é importante, porra”. Homer Simpson e Paulo César Pereio ficariam orgulhosos.

Mas nada supera uma frase que li há muitos anos e que me deixa intrigado até hoje. Foi escrita na porta do banheiro da faculdade: “É de um heretismo imprene”. Nunca soube se as palavras de fato existiam (nunca procurei no Houaiss para não perder a graça, mas o alerta vermelho do corretor do Word me dá uma pista). Mesmo assim, para encerrar um lamento, muitas vezes repeti e ainda repito a inscrição misteriosa quando quero terminar um assunto: “Pois essa vida é mesmo de um heretismo imprene”. Sempre funciona, e a resposta do interlocutor é quase sempre a mesma: “E não é?”.

De um tempo pra cá, os canetões de paredes migraram para Nicks de msn em que se vê de tudo. Dos simples e diretos “Feliz!!!” (leia-se “não falem comigo”) e “Triste… (“quero atenção”) às citações brilhantes jamais escritas pelo autor (na internet, já vi a mesma frase ser atribuída a Shakespeare, Mario Quintana, Luis Fernando Veríssimo e Charles Chaplin, e não era exatamente nessa ordem).

Para o autor (pelo menos os que sobreviveram), deve ser de doer: não bastasse a luta diária contra a fugacidade das palavras e o esquecimento, ainda se corre o risco de ser lembrado por algo que não disse nem concorda. Haja errata. Mais sorte tiveram artistas e demais celebridades, que não perdem tempo com giz, canetões, paredes ou folhas de livro impresso. E vão direto para as lentes da televisão.

Pelé, mais esperto que todos nós juntos, não esperou sua lápide e decidiu deixar seu recado para a posteridade no auge da carreira, ao marcar o milésimo gol em 1969: “Pelo amor de Deus, cuidem das criancinhas”.

Alguns, que esperavam arroubos do nível “chupa, Argentina”, estranharam a menção. E riram. Pois até hoje, sabedor das maldades protagonizadas pelas crianças daquele tempo que hoje somam mais de 40 anos, Pelé se garante: “Eu avisei”.

Há ainda as gafes ditas do modo certo na hora errada e que ficam para sempre impregnadas em seu autor, como a do apresentador que homenageou os garis quando ainda estava no ar ou o piadista que soltou ao vivo o tal “Comia ela e o bebê”.

Mas isso é outra conversa, e ainda não é certo que Boris Casoy e Rafinha Bastos levarão as pérolas para a pedra definitiva. Fato é que, depois do Youtube, as câmeras também viraram lápides e as frases malditas jamais abandonam seus donos. O mais seguro mesmo é deixar o que tem de ser dito para a hora derradeira, quando o silêncio impera e já não se pode mais ser atacado. Nessa, não conheço melhor frase do que a de Álvares de Azevedo, em cuja lápide está escrito: “Foi poeta – sonhou – e amou na vida”.

Bem aventurados os que foram poetas até na hora do silência eterno.

Em uma pauta no memorial de Santos, o repórter Willian Vieira viu e a fotógrafa Olga Vlahou registrou a lápide de uma senhora morta em 2007, aos 69 anos, que dizia aos visitantes: “Estou ótima”.

Ao ver a foto na internet, uma amiga comentou: “pois a minha será ‘Aqui jaz, sob protesto'”.

Foi só a deixa para que eu passasse uma noite em claro imaginando que mensagem deixaria para a posteridade quando me restasse só um fio de lucidez. O que me levou a uma conclusão: preciso deixar pronta uma frase-feita antes que o facão da morte me pegue desprevenido.

Foi um parto. Tudo o que pensei já tinha dono: “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás”, “Nem só de pão vive o homem”; “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”; “Há algo de podre no reino da Dinamarca”; “A felicidade é uma arma quente”, “A dureza do prélio não tarda”…

Por coincidência, tinha ido a um restaurante dias atrás e me deparado com o mesmo drama de não ter nada de interessante a dizer nesta vida (menos ainda na outra). Sabendo da vocação (ou mania) humana de deixar suas marcas por onde passa, o dono do lugar pintou de verde as paredes do banheiro e deixou uma coleção de giz à disposição do cliente para escrever o que quisesse. Foi como dar doce para criança: as palavras se acotovelavam num espaço diminuto gritando o recado de seus donos. E, para a minha surpresa, 90% das mensagens eram variações de um mesmo grito: “Vai Curintia” (assim mesmo, com “u”, sem “h” nem “s”).

Leia outras crônicas:

Está certo que giz de escola não é exatamente a matéria prima adequada para uma mensagem à posteridade, mas a tentativa me pareceu louvável.

Certa vez, Manuel Bandeira descreveu a angústia (era essa a palavra) de João Guimarães Rosa ao assumir uma coluna em um jornal diário. Angústia compreensível, segundo Bandeira, já que, para um jornalista de vocação, escrever não era obrigação, mas uma necessidade. Nada a ver com o autor de “Grande Sertão: Veredas”. “Escrever para jornal é como escrever na areia. Rosa grava na pedra. Para a eternidade”, resumiu Bandeira.

Óbvio que o Rosa colunista não daria certo, mas seu “Grande Sertão” segue lá, eterno feito uma lápide com suas caudalosas quinhentas e poucas páginas.

Por sorte, ou azar, nem Rosa nem Bandeira viram a era dos pensamentos enxutos em 140 caracteres, em que a capilaridade do que se diz é medida em poucos instantes e depois se perde para nunca mais. A Luiza, que estava no Canadá e não era Riobaldo nem Diadorim, levou menos de uma semana para ser esquecida; e ai de quem ouse fazer hoje referência à velha piada num meio que pede o novo sempre.

De toda forma, dá para imaginar que nesse mundo novo, admirável ou não, a possibilidade de escrever o que se pensa num veículo de alcance ilimitado pode ter arrefecido vocações ao perigo de alguns amigos pichadores (pichadores mesmo, porque aquilo não era grafite) que fiz na adolescência. Um deles se arriscou a escrever seu nome de guerra no alto de um edifício em construção de nossa cidade. No dia seguinte, contava as desventuras: o medo do escuro, de tropeçar em alçapões invisíveis, de cair em linha reta, de ser pego pela polícia ou algum segurança. Valeu a pena? “Ô! Quando você olha lá embaixo e sabe que todo mundo tá lendo seu nome, é uma emoção”.

Sem querer, meu amigo pichador acabava de resumir o anseio de todo humano demasiado humano: ser notado numa multidão disforme – drama que vem sendo resolvido desde os desenhos das cavernas até os adesivos de automóveis.

Ainda hoje, na falta de adesivos ou cavernas, tentamos deixar nossas marcas em paredes de banheiro ou do metrô, onde Simon e Garfunkel diziam estar as palavras dos verdadeiros profetas (e, com isso, faziam mais uma frase para novas paredes de metrô). Na era virtual, sobreviveram apenas os mais aptos nas ruas. Vai ver é por isso as frases à la Gentileza têm ficado mais comuns nos muros das grandes cidades. Dia desses, fez sucesso pela internet uma frase também captada por uma lente atenta: “Bacon é importante, porra”. Homer Simpson e Paulo César Pereio ficariam orgulhosos.

Mas nada supera uma frase que li há muitos anos e que me deixa intrigado até hoje. Foi escrita na porta do banheiro da faculdade: “É de um heretismo imprene”. Nunca soube se as palavras de fato existiam (nunca procurei no Houaiss para não perder a graça, mas o alerta vermelho do corretor do Word me dá uma pista). Mesmo assim, para encerrar um lamento, muitas vezes repeti e ainda repito a inscrição misteriosa quando quero terminar um assunto: “Pois essa vida é mesmo de um heretismo imprene”. Sempre funciona, e a resposta do interlocutor é quase sempre a mesma: “E não é?”.

De um tempo pra cá, os canetões de paredes migraram para Nicks de msn em que se vê de tudo. Dos simples e diretos “Feliz!!!” (leia-se “não falem comigo”) e “Triste… (“quero atenção”) às citações brilhantes jamais escritas pelo autor (na internet, já vi a mesma frase ser atribuída a Shakespeare, Mario Quintana, Luis Fernando Veríssimo e Charles Chaplin, e não era exatamente nessa ordem).

Para o autor (pelo menos os que sobreviveram), deve ser de doer: não bastasse a luta diária contra a fugacidade das palavras e o esquecimento, ainda se corre o risco de ser lembrado por algo que não disse nem concorda. Haja errata. Mais sorte tiveram artistas e demais celebridades, que não perdem tempo com giz, canetões, paredes ou folhas de livro impresso. E vão direto para as lentes da televisão.

Pelé, mais esperto que todos nós juntos, não esperou sua lápide e decidiu deixar seu recado para a posteridade no auge da carreira, ao marcar o milésimo gol em 1969: “Pelo amor de Deus, cuidem das criancinhas”.

Alguns, que esperavam arroubos do nível “chupa, Argentina”, estranharam a menção. E riram. Pois até hoje, sabedor das maldades protagonizadas pelas crianças daquele tempo que hoje somam mais de 40 anos, Pelé se garante: “Eu avisei”.

Há ainda as gafes ditas do modo certo na hora errada e que ficam para sempre impregnadas em seu autor, como a do apresentador que homenageou os garis quando ainda estava no ar ou o piadista que soltou ao vivo o tal “Comia ela e o bebê”.

Mas isso é outra conversa, e ainda não é certo que Boris Casoy e Rafinha Bastos levarão as pérolas para a pedra definitiva. Fato é que, depois do Youtube, as câmeras também viraram lápides e as frases malditas jamais abandonam seus donos. O mais seguro mesmo é deixar o que tem de ser dito para a hora derradeira, quando o silêncio impera e já não se pode mais ser atacado. Nessa, não conheço melhor frase do que a de Álvares de Azevedo, em cuja lápide está escrito: “Foi poeta – sonhou – e amou na vida”.

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