Sociedade

Tragédias não são ‘barbaridades específicas’

A violência encontra caminho livre nos EUA e em SP. Mas falar em ‘cultura de armas’ ou ‘militarização’ da polícia virou clichê

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Deixe-me ver se entendi: o sujeito de 24 anos 6.000 balas para duas pistolas Glock e um rifle AR-15 adquiridos em lojas legalizadas do Colorado – que, com saldões promocionais, ajudam a armar 3 em cada 10 pessoas dos Estados Unidos. Entra num cinema e atira a esmo, matando 12 pessoas e ferindo outras dezenas. E o clichê é dizer que existe uma “cultura de armas” no país que já assistiu a atentados semelhantes em Virginia Tech, Columbine e na Base do Exército no Texas.

Em São Paulo, a PM persegue e mata um empresário por confundir um celular com uma arma. Caso isolado? Erro individual? Conta essa para as 2.262 pessoas mortas em supostos confrontos com a polícia entre 2006 e 2010 – números que levam a PM paulista a ostentar o índice de 5,5 mortos a cada 100 mil habitantes, desempenho nove vezes superior à letalidade registrada em todo o território americano (o cálculo é da Folha de S.Paulo). E o clichê, conforme artigo publicado nesta segunda-feira no mesmo jornal, é culpar a “militarização da polícia”.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, diria outro clichê. Entre a tragédia americana e a atual crise de segurança em São Paulo há um fosso de explicações específicas, muitas de fato em aberto. Mas nenhuma delas está dissociada à constatação de que a psicopatia e a liberdade para matar andam em linhas paralelas. Um indivíduo doente desarmado é só um indivíduo doente desarmado; um indivíduo armado numa sociedade doente (e alimentada, sim, pela cultura do armamento) faz o que se viu na sexta-feira no cinema de Aurora. Ou seja: entre um indivíduo com tendências homicidas e um atirador real a distância pode ser medida simplesmente pela capacidade de obter seu armamento.

Da mesma forma, um policial com carta branca para atirar não é um ponto fora da curva: é um policial com carta branca para atirar. O desequilíbrio parece claro num período de acirramento que, nos cinco primeiros meses do ano, produziu uma estatística macabra: 26 policiais mortos em dias de folga (em serviço foram outros 7). Números de uma guerra declarada, e não de um clima de segurança supostamente apoiado na queda recente das taxas de homicídios. O que os fabricantes de clichês não fazem é dizer que a explicação para a paz aparentemente quebrada talvez tenha menos a ver com eficiência do que com outro pacto – algo como “você ali e eu aqui”. A bandidagem também tem suas ordens de recolher. Quando a “ordem” é quebrada, o enfrentamento é inevitável. O que não pode é, diante da tensão, sobrar tiro aos civis (leia mais sobre este equilíbrio precário clicando ).

Não há clima de segurança quando todos são suspeitos até segunda ordem – e essa tensão não é resultado de escolhas individuais, mas de anos de despreparo exposto por quem confunde segurança pública com serviço de bedel, como o fazem as mesmíssimas autoridades responsáveis pela militarização do campus da USP.

“Traços da população”, como a imigração citada no artigo, passam longe de assinalar “explicações das tendências mais gerais coletivas” quando a tensão é alimentada no cerne do próprio Estado. O clichê é mais embaixo.

Há quem prefira, no entanto, acreditar que está tudo certo. E confunde exemplos salientes de um processo contínuo com casos supostamente isolados. É a lógica de quem enxerga a segurança pública com a lógica de mercado, com metas, índices e produtividade (leia mais sobre o assunto ).

Sob tortura, qualquer estatística prova qualquer teoria, ensina outro clichê. O mesmo vale para “picaretagens”. Mas é a distância da realidade que transforma tragédias cíclicas em “barbaridades específicas”.

Isso vale tanto para os Estados Unidos quanto para o estado de São Paulo. Prova disso é que a queda na criminalidade em tempos de crise econômica, num caso, não salvou as 12 vítimas de um atirador que encontrou terreno livre para cometer seu massacre. Da mesma forma, a melhora recente dos números da violência em São Paulo não impediu a morte em “confronto” de mais um inocente. Nem minimizou a vulnerabilidade dos próprios policiais expostos a uma outra realidade – a realidade das ruas.

 

Deixe-me ver se entendi: o sujeito de 24 anos 6.000 balas para duas pistolas Glock e um rifle AR-15 adquiridos em lojas legalizadas do Colorado – que, com saldões promocionais, ajudam a armar 3 em cada 10 pessoas dos Estados Unidos. Entra num cinema e atira a esmo, matando 12 pessoas e ferindo outras dezenas. E o clichê é dizer que existe uma “cultura de armas” no país que já assistiu a atentados semelhantes em Virginia Tech, Columbine e na Base do Exército no Texas.

Em São Paulo, a PM persegue e mata um empresário por confundir um celular com uma arma. Caso isolado? Erro individual? Conta essa para as 2.262 pessoas mortas em supostos confrontos com a polícia entre 2006 e 2010 – números que levam a PM paulista a ostentar o índice de 5,5 mortos a cada 100 mil habitantes, desempenho nove vezes superior à letalidade registrada em todo o território americano (o cálculo é da Folha de S.Paulo). E o clichê, conforme artigo publicado nesta segunda-feira no mesmo jornal, é culpar a “militarização da polícia”.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, diria outro clichê. Entre a tragédia americana e a atual crise de segurança em São Paulo há um fosso de explicações específicas, muitas de fato em aberto. Mas nenhuma delas está dissociada à constatação de que a psicopatia e a liberdade para matar andam em linhas paralelas. Um indivíduo doente desarmado é só um indivíduo doente desarmado; um indivíduo armado numa sociedade doente (e alimentada, sim, pela cultura do armamento) faz o que se viu na sexta-feira no cinema de Aurora. Ou seja: entre um indivíduo com tendências homicidas e um atirador real a distância pode ser medida simplesmente pela capacidade de obter seu armamento.

Da mesma forma, um policial com carta branca para atirar não é um ponto fora da curva: é um policial com carta branca para atirar. O desequilíbrio parece claro num período de acirramento que, nos cinco primeiros meses do ano, produziu uma estatística macabra: 26 policiais mortos em dias de folga (em serviço foram outros 7). Números de uma guerra declarada, e não de um clima de segurança supostamente apoiado na queda recente das taxas de homicídios. O que os fabricantes de clichês não fazem é dizer que a explicação para a paz aparentemente quebrada talvez tenha menos a ver com eficiência do que com outro pacto – algo como “você ali e eu aqui”. A bandidagem também tem suas ordens de recolher. Quando a “ordem” é quebrada, o enfrentamento é inevitável. O que não pode é, diante da tensão, sobrar tiro aos civis (leia mais sobre este equilíbrio precário clicando ).

Não há clima de segurança quando todos são suspeitos até segunda ordem – e essa tensão não é resultado de escolhas individuais, mas de anos de despreparo exposto por quem confunde segurança pública com serviço de bedel, como o fazem as mesmíssimas autoridades responsáveis pela militarização do campus da USP.

“Traços da população”, como a imigração citada no artigo, passam longe de assinalar “explicações das tendências mais gerais coletivas” quando a tensão é alimentada no cerne do próprio Estado. O clichê é mais embaixo.

Há quem prefira, no entanto, acreditar que está tudo certo. E confunde exemplos salientes de um processo contínuo com casos supostamente isolados. É a lógica de quem enxerga a segurança pública com a lógica de mercado, com metas, índices e produtividade (leia mais sobre o assunto ).

Sob tortura, qualquer estatística prova qualquer teoria, ensina outro clichê. O mesmo vale para “picaretagens”. Mas é a distância da realidade que transforma tragédias cíclicas em “barbaridades específicas”.

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