Sociedade

Uma Nota sobre a Análise de Indicadores de Produção de Segurança Pública

O número decrescente de prisões não diz nada depreciativo acerca da efetividade do trabalho policial

A violência descrita por autor paraense parece longe, mas é a mesma dos morros cariocas e da periferia de São Paulo. Só muda o sotaque e o som. Foto: Fábio Motta/AE
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Por Daniel Cerqueira

 

No VI encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram travados inúmeros e frutíferos debates. Nas discussões sobre as análises de indicadores de segurança pública e de emprego da força e da letalidade policial, um argumento, em particular, me chamou a atenção, o que me motivou a escrever esta nota. Argumentou-se que a análise sobre o nível de letalidade perpetrada por policiais deveria ser relativizada, levando em conta o número de intervenções policiais, como abordagens, respostas de chamadas, prisões, etc.

Ou seja, em ambientes complexos como grandes centros urbanos e onde há uma alta prevalência de violência, uma elevada taxa de letalidade policial seria aceitável, da mesma forma em que no processo produtivo de uma empresa industrial alguns produtos poderiam ter “não conformidade”, desde que dentro de certos parâmetros do controle de qualidade.

Para tornar mais palpável o argumento, vamos imaginar um exemplo hipotético.

Suponha que:

1) uma força policial de uma determinada cidade tivesse um nível intenso de atividade que se daria em cinco tipos de intervenções (ou interações sociais) diferentes;

2) o número de “operações” realizadas no ano para cada uma dessas atividades equivalesse a 20% do número de habitantes dessa cidade;

3) o número de mortes perpetradas por policiais equivalesse a 0,1% da população. Pelo argumento da “não conformidade”, do total de intervenções policiais, haveria apenas 0,1% de “não conformidade”, ou um controle de qualidade acima de 2 desvios padrões, aceitável para a maioria dos processos produtivos.

Para a análise da produção de segurança pública, o argumento obviamente é equivocado. Se 0,1% da população tivesse sido morta pela polícia, a taxa de letalidade por cem mil habitantes seria de 1.000, ou cerca de 8.300 vezes maior do que a taxa de letalidade policial nos EUA; e cerca de 145 vezes maior do que a taxa verificada no Rio de Janeiro, onde reconhecidamente o emprego da força letal pela polícia é absolutamente discrepante em relação às nações democráticas.

Para entender onde está o erro do raciocínio, é importante discernirmos o que os economistas chamam de inputs e outputs, para um determinado processo produtivo e, em particular, para a produção de segurança pública.

Os outputs se referem à quantidade de bens ou serviços que são produzidos, ao passo que os inputs se referem aos recursos utilizados para produzir tais bens e serviços.

Assim a produção de segurança pública poderia ser medida pelo inverso do número de crimes; pela percepção de segurança pela população; ou pelo inverso do número de incidentes letais ocasionados pela ação da polícia, por exemplo. Já os inputs poderiam ser mensurados pelo efetivo policial, número de viaturas, ou ainda pelo número de intervenções feitas pela polícia.

Num mundo ideal, não haveria crimes e não haveria polícia, sendo que os recursos que seriam utilizados pela força policial, nessa situação, estariam sendo empregados em outras atividades econômicas que fariam aumentar o nível de satisfação dos indivíduos e o bem-estar da sociedade.

Contudo, no mundo real, sempre haverá crimes e, por conseguinte, sempre haverá polícia. Portanto, o foco das análises se desloca para dois atributos importantes para a análise da política pública: eficácia e eficiência. A eficácia se refere à efetividade para produzir um determinado nível de segurança pública, ou, dito de outro modo, para mitigar o problema do crime e da violência na sociedade, mantendo-o dentro de determinados padrões.

Por exemplo, atingir uma taxa de homicídios abaixo de 10 por cem mil habitantes. Eficiência se refere à intensidade do uso de recursos para atingir determinada produção de segurança pública. Mais eficiente (e racional) será o processo, quanto menos recursos se utilizar para atingir um determinado nível de produção de segurança pública.

Ter claros esses conceitos e, sobretudo, a distinção de inputs e outputs é importante para não se fazer análises que podem direcionar a política pública para caminhos equivocados. Por exemplo, muitas vezes os gestores da polícia tomam como medida de produtividade policial o número de prisões efetuadas. Deste modo, quando o número de prisões diminui, a inferência que se faz é que a produtividade policial diminuiu.

Obviamente é um erro colossal. O número de prisões é um input e não output e, portanto não pode ser critério de produtividade. Por exemplo, imagine numa cidade em que o número de intervenções policiais tivesse sido altamente efetivo por anos.

Ao longo do tempo a tendência é que o número de crimes e de prisões venha a diminuir a partir do efeito dissuasão de potenciais entrantes no mercado de crime e de incapacitação pelo aprisionamento dos criminosos já estabelecidos no mercado. Nesse caso o número decrescente de prisões não diz nada depreciativo acerca da efetividade do trabalho policial.

Outro erro é balizar a análise do grau de letalidade policial tomando como referência o número de interações policiais (ou de inputs), para inferir uma baixa taxa de letalidade policial relativa. Primeiro porque a discussão relevante quanto a esse tema não se refere à eficiência, mas a eficácia. Ou seja, quanto a esse quesito existe um limite de produção de segurança pública minimamente aceitável, ou dito de outro modo, uma taxa de letalidade policial máxima aceitável (em relação à população, obviamente) para uma nação democrática. Em segundo lugar, ainda que se quisesse medir a produtividade da segurança pública levando em consideração o total de abordagens, esse indicador de produtividade seria tanto pior quanto maior fosse o total de abordagens, exatamente ao contrário do que se gostaria de apregoar com esse tipo de análise. Isso ocorreria porque produtividade é sempre o resultado da divisão do output sobre o input.

No caso, o denominador aumentaria com o total de intervenções, fazendo diminuir a produtividade.

Numa linguagem de engenharia, o importante seria a quantidade de serviço produzido e não a energia utilizada para produzi-lo. Mas se se quisesse avaliar a eficiência do mecanismo empregado, para um dado volume de serviço produzido, um maior gasto energético empregado revelaria apenas a ineficiência do mecanismo, possivelmente porque boa parte da energia tenha gerado muito calor, mas poucos resultados efetivos.

Por Daniel Cerqueira

 

No VI encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram travados inúmeros e frutíferos debates. Nas discussões sobre as análises de indicadores de segurança pública e de emprego da força e da letalidade policial, um argumento, em particular, me chamou a atenção, o que me motivou a escrever esta nota. Argumentou-se que a análise sobre o nível de letalidade perpetrada por policiais deveria ser relativizada, levando em conta o número de intervenções policiais, como abordagens, respostas de chamadas, prisões, etc.

Ou seja, em ambientes complexos como grandes centros urbanos e onde há uma alta prevalência de violência, uma elevada taxa de letalidade policial seria aceitável, da mesma forma em que no processo produtivo de uma empresa industrial alguns produtos poderiam ter “não conformidade”, desde que dentro de certos parâmetros do controle de qualidade.

Para tornar mais palpável o argumento, vamos imaginar um exemplo hipotético.

Suponha que:

1) uma força policial de uma determinada cidade tivesse um nível intenso de atividade que se daria em cinco tipos de intervenções (ou interações sociais) diferentes;

2) o número de “operações” realizadas no ano para cada uma dessas atividades equivalesse a 20% do número de habitantes dessa cidade;

3) o número de mortes perpetradas por policiais equivalesse a 0,1% da população. Pelo argumento da “não conformidade”, do total de intervenções policiais, haveria apenas 0,1% de “não conformidade”, ou um controle de qualidade acima de 2 desvios padrões, aceitável para a maioria dos processos produtivos.

Para a análise da produção de segurança pública, o argumento obviamente é equivocado. Se 0,1% da população tivesse sido morta pela polícia, a taxa de letalidade por cem mil habitantes seria de 1.000, ou cerca de 8.300 vezes maior do que a taxa de letalidade policial nos EUA; e cerca de 145 vezes maior do que a taxa verificada no Rio de Janeiro, onde reconhecidamente o emprego da força letal pela polícia é absolutamente discrepante em relação às nações democráticas.

Para entender onde está o erro do raciocínio, é importante discernirmos o que os economistas chamam de inputs e outputs, para um determinado processo produtivo e, em particular, para a produção de segurança pública.

Os outputs se referem à quantidade de bens ou serviços que são produzidos, ao passo que os inputs se referem aos recursos utilizados para produzir tais bens e serviços.

Assim a produção de segurança pública poderia ser medida pelo inverso do número de crimes; pela percepção de segurança pela população; ou pelo inverso do número de incidentes letais ocasionados pela ação da polícia, por exemplo. Já os inputs poderiam ser mensurados pelo efetivo policial, número de viaturas, ou ainda pelo número de intervenções feitas pela polícia.

Num mundo ideal, não haveria crimes e não haveria polícia, sendo que os recursos que seriam utilizados pela força policial, nessa situação, estariam sendo empregados em outras atividades econômicas que fariam aumentar o nível de satisfação dos indivíduos e o bem-estar da sociedade.

Contudo, no mundo real, sempre haverá crimes e, por conseguinte, sempre haverá polícia. Portanto, o foco das análises se desloca para dois atributos importantes para a análise da política pública: eficácia e eficiência. A eficácia se refere à efetividade para produzir um determinado nível de segurança pública, ou, dito de outro modo, para mitigar o problema do crime e da violência na sociedade, mantendo-o dentro de determinados padrões.

Por exemplo, atingir uma taxa de homicídios abaixo de 10 por cem mil habitantes. Eficiência se refere à intensidade do uso de recursos para atingir determinada produção de segurança pública. Mais eficiente (e racional) será o processo, quanto menos recursos se utilizar para atingir um determinado nível de produção de segurança pública.

Ter claros esses conceitos e, sobretudo, a distinção de inputs e outputs é importante para não se fazer análises que podem direcionar a política pública para caminhos equivocados. Por exemplo, muitas vezes os gestores da polícia tomam como medida de produtividade policial o número de prisões efetuadas. Deste modo, quando o número de prisões diminui, a inferência que se faz é que a produtividade policial diminuiu.

Obviamente é um erro colossal. O número de prisões é um input e não output e, portanto não pode ser critério de produtividade. Por exemplo, imagine numa cidade em que o número de intervenções policiais tivesse sido altamente efetivo por anos.

Ao longo do tempo a tendência é que o número de crimes e de prisões venha a diminuir a partir do efeito dissuasão de potenciais entrantes no mercado de crime e de incapacitação pelo aprisionamento dos criminosos já estabelecidos no mercado. Nesse caso o número decrescente de prisões não diz nada depreciativo acerca da efetividade do trabalho policial.

Outro erro é balizar a análise do grau de letalidade policial tomando como referência o número de interações policiais (ou de inputs), para inferir uma baixa taxa de letalidade policial relativa. Primeiro porque a discussão relevante quanto a esse tema não se refere à eficiência, mas a eficácia. Ou seja, quanto a esse quesito existe um limite de produção de segurança pública minimamente aceitável, ou dito de outro modo, uma taxa de letalidade policial máxima aceitável (em relação à população, obviamente) para uma nação democrática. Em segundo lugar, ainda que se quisesse medir a produtividade da segurança pública levando em consideração o total de abordagens, esse indicador de produtividade seria tanto pior quanto maior fosse o total de abordagens, exatamente ao contrário do que se gostaria de apregoar com esse tipo de análise. Isso ocorreria porque produtividade é sempre o resultado da divisão do output sobre o input.

No caso, o denominador aumentaria com o total de intervenções, fazendo diminuir a produtividade.

Numa linguagem de engenharia, o importante seria a quantidade de serviço produzido e não a energia utilizada para produzi-lo. Mas se se quisesse avaliar a eficiência do mecanismo empregado, para um dado volume de serviço produzido, um maior gasto energético empregado revelaria apenas a ineficiência do mecanismo, possivelmente porque boa parte da energia tenha gerado muito calor, mas poucos resultados efetivos.

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