Sociedade
Justiceiros e linchadores
O justiceiro pede a eliminação do marginal e condena a brandura da lei. Mas quando patrocina barbárie não há crime, só ‘ato impensado’
Há mais ou menos dois anos, me espremia numa fileira do Fórum de Santana, em São Paulo, para acompanhar o julgamento do casal Nardoni, à época os inimigos número 1 (e 2) da segurança nacional.
Estava perto, muito perto, dos familiares da vítima e dos acusados, e a comoção, muito além das salas da audiência (onde se concentravam os verdadeiros interessados na sentença) era perceptível nas ruas, vizinhança e casas de todo o País sintonizadas à espera de uma justiça exemplar.
Dentro e fora do tribunal do júri, ninguém parecia indiferente ao crime que anos antes havia chocado o Brasil inteiro: uma criança inocente havia sido jogada de uma janela do prédio e os principais suspeitos eram o próprio pai e a madrasta.
Terrível por si, o crime ganhou contorno de circo naqueles cinco dias de julgamento. Naquela semana, o advogado de defesa, Roberto Podval, encarou todos os males de um País impune ao tentar livrar os réus da condenação. O promotor, Francisco Cembranelli, era herói – e, de fato, quem acompanhou a guerra verbal entre acusação e defesa sabia que estava diante de um julgamento histórico.
Naquele espaço, parecia caber tudo, menos a dúvida. Todos pareciam certos de suas afirmações. Contra a defesa, havia fatos, que pareciam deixar os réus sem saída: o rasgo na rede de proteção, o formato das gotas de sangue que acusavam a altura de onde vieram, as manchas nas roupas, a inverossimilhança de um pai ao anunciar a tragédia.
Havia, sobretudo, o desconsolo de uma mãe atingida em cheio pela morte e o absurdo. Mesmo assim, quando vi de frente Alexandre Nardoni, calado num banco do júri, os óculos de grau, o rosto assustado diante daquela plateia, me perguntava: “E se…”
O “e se…” não cabe num julgamento, como em quase nada fora dali (sobre o assunto, existem dois filmaços: o recém-lançado “A Separação”, de Asghar Farhadi, e “Dúvida”, de John Patrick Shanley).
O casal foi condenado numa sexta-feira à noite. Para ouvir a sentença, centenas de jornalistas se acotovelavam no hall do fórum para finalmente escrever o relato definitivo (ao menos naquela instância) de uma tragédia.
Mal o juiz leu a condenação, e uma multidão que cercava o fórum começou a soltar bombas e vivas de uma alegria que parecia a explosão atlântica da Rosa dos Ventos. A poucos metros dali o circo estava montado: churrasco, placas, bandeiras e carros de som. Até o “Hino da Vitória”, a música que durantes anos marcou as alegrias de Ayrton Senna na Fórmula 1, foi entoada no meio da festa.
Pela comoção, era possível acreditar que o País estava, enfim, livre de todos os seus males ancestrais. Que nenhum pai ousaria levantar a mão sobre os filhos, nenhuma mulher seria agredida, nenhum corrupto ou corruptor seria capaz de exigir pedágio para destilar maldades sobre um Brasil purgado, finalmente limpo e justo.
O “Hino da Vitória”, pensei, não seria exatamente a trilha que a mãe de Isabella Nardoni ouviria quando chegasse em casa. Mas, para as pessoas que queriam ver sangue – ou bebê-lo por cinco minutos de fama (só na Copa do Mundo haveria tantas câmeras de tantos canais num mesmo espaço) – pouco importava.
Passam-se os anos e, em outro fórum, vemos um novo caso de comoção nacional ser julgado. Diferentemente do casal Nardoni, o réu Lindemberg Alves Fernandes, hoje com 25 anos, forjou provas contra ele mesmo ao promover um reality show de horrores na casa de uma ex-namorada, Eloá. Armado, o rapaz manteve a menina e os amigos dela como reféns e só saiu de lá quando a tragédia estava consumada. Quando a polícia chegou, era tarde: a menina estava morta e uma amiga, gravemente ferida.
As câmeras e intermediação dos apresentadores de tevê que conseguiram entrevistas “exclusivas” com ele em pleno local do crime não impediram o assassinato.
Após quatro dias de julgamento, Lindemberg foi condenado por 12 crimes. São quase cem anos de prisão, mas, como a pena máxima no Brasil é de 30 anos, ele poderá pedir a progressão para o regime semiaberto “já” em 2033. Vai ter tempo para pensar no que fez, segundo a própria mãe da vítima.
Justiça feita, direito de defesa cumprido, bola pra frente, certo? Não. Em pouco tempo, a patrulha justiceira voltou a vestir a fantasia do bom-mocismo e resolveu colocar as garras de fora (dessa vez para condenar quem condena). Mal a decisão saiu e já havia gente na internet relativizando o conceito de justiça nos olhos dos outros (vítimas, inclusive). Algo como: “ele cumprirá a pena por 30 anos, e ela, pela vida inteira. Isso é justo?”.
Pouco antes, havia gente indignada com o fato de o rapaz ter ganhado peso na cadeia à espera do julgamento. Indignados se perguntavam se era justo aos bolsos do contribuinte bancar a engorda de um criminoso confesso.
Com um pouquinho de corda e todos já pediam a importação de métodos chineses de fuzilamento: o criminoso é eliminado, e a família paga a bala. E finalmente todos os Lindemberg do mundo pensariam antes de agir.
Não é uma constatação científica, mas o coro nesse tempo de comoção nacional é feito quase sempre pelas mesmas pessoas que se indignam quando veem o Estado criar amarras para as próprias ações, como o direito inalienável de bater nos próprios filhos ou de expulsar à bala trabalhadores sem-terra que ocupam terras improdutivas. Para linchar um condenado (ou suspeito) é um pulo. Nesses casos, a violência é sempre justa (ou justificável) quando está a nosso favor.
Até que um dia os filhos instruídos, bem estudados e bem vestidos, resolvem aloprar e saem provocando estragos no carro emprestado dos pais. Bebem, aceleram, fazem filas de atropelados que tiveram o azar simplesmente de cruzar seus caminhos de reis entediados. No outro, arrebentam tudo o que é diferente deles por pura diversão: do homem que anda de mãos dadas com outros homens ao mendigo dormindo sob a marquise da loja de luxo.
E dá-lhe os papais metendo carteirada nas delegacias avisando que o filho fez um ato impensado, e não é marginal.
Em tempo: os exemplos não são matemáticos, mas servem para mostrar que todos estão sujeitos ao mesmo crime, seja na condição de vítima, seja na de autor.
Noves fora, é sempre mais fácil defender que a polícia prenda e arrebente os viciados em crack que me emporcalham o caminho de casa quando acredito não ter nenhum parente ou amigo envolvido num problema que imagino não me pertencer.
A ideia do marginal só faz sentido se ele estiver distante; quando está perto, ganha outros nomes ou conotações, seja para crimes passionais (Pimenta Neves que não me deixa mentir), violência doméstica ou barbárie no trânsito. Quando a bomba estoura perto, então o crime vira só desvio, ato de loucura, portanto passível de arrependimento e correção.
O “cumpra-se” só vale se estiver longe – porque nós e nossas culpas já fomos purgados nas manifestações de justiça, no “Hino da Vitória” e nas campanhas pelo linchamento. Sobre isso, Caetano Veloso já sentenciava: “A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores”.
Que a lei nos proteja de nossos próprios justiceiros.
Há mais ou menos dois anos, me espremia numa fileira do Fórum de Santana, em São Paulo, para acompanhar o julgamento do casal Nardoni, à época os inimigos número 1 (e 2) da segurança nacional.
Estava perto, muito perto, dos familiares da vítima e dos acusados, e a comoção, muito além das salas da audiência (onde se concentravam os verdadeiros interessados na sentença) era perceptível nas ruas, vizinhança e casas de todo o País sintonizadas à espera de uma justiça exemplar.
Dentro e fora do tribunal do júri, ninguém parecia indiferente ao crime que anos antes havia chocado o Brasil inteiro: uma criança inocente havia sido jogada de uma janela do prédio e os principais suspeitos eram o próprio pai e a madrasta.
Terrível por si, o crime ganhou contorno de circo naqueles cinco dias de julgamento. Naquela semana, o advogado de defesa, Roberto Podval, encarou todos os males de um País impune ao tentar livrar os réus da condenação. O promotor, Francisco Cembranelli, era herói – e, de fato, quem acompanhou a guerra verbal entre acusação e defesa sabia que estava diante de um julgamento histórico.
Naquele espaço, parecia caber tudo, menos a dúvida. Todos pareciam certos de suas afirmações. Contra a defesa, havia fatos, que pareciam deixar os réus sem saída: o rasgo na rede de proteção, o formato das gotas de sangue que acusavam a altura de onde vieram, as manchas nas roupas, a inverossimilhança de um pai ao anunciar a tragédia.
Havia, sobretudo, o desconsolo de uma mãe atingida em cheio pela morte e o absurdo. Mesmo assim, quando vi de frente Alexandre Nardoni, calado num banco do júri, os óculos de grau, o rosto assustado diante daquela plateia, me perguntava: “E se…”
O “e se…” não cabe num julgamento, como em quase nada fora dali (sobre o assunto, existem dois filmaços: o recém-lançado “A Separação”, de Asghar Farhadi, e “Dúvida”, de John Patrick Shanley).
O casal foi condenado numa sexta-feira à noite. Para ouvir a sentença, centenas de jornalistas se acotovelavam no hall do fórum para finalmente escrever o relato definitivo (ao menos naquela instância) de uma tragédia.
Mal o juiz leu a condenação, e uma multidão que cercava o fórum começou a soltar bombas e vivas de uma alegria que parecia a explosão atlântica da Rosa dos Ventos. A poucos metros dali o circo estava montado: churrasco, placas, bandeiras e carros de som. Até o “Hino da Vitória”, a música que durantes anos marcou as alegrias de Ayrton Senna na Fórmula 1, foi entoada no meio da festa.
Pela comoção, era possível acreditar que o País estava, enfim, livre de todos os seus males ancestrais. Que nenhum pai ousaria levantar a mão sobre os filhos, nenhuma mulher seria agredida, nenhum corrupto ou corruptor seria capaz de exigir pedágio para destilar maldades sobre um Brasil purgado, finalmente limpo e justo.
O “Hino da Vitória”, pensei, não seria exatamente a trilha que a mãe de Isabella Nardoni ouviria quando chegasse em casa. Mas, para as pessoas que queriam ver sangue – ou bebê-lo por cinco minutos de fama (só na Copa do Mundo haveria tantas câmeras de tantos canais num mesmo espaço) – pouco importava.
Passam-se os anos e, em outro fórum, vemos um novo caso de comoção nacional ser julgado. Diferentemente do casal Nardoni, o réu Lindemberg Alves Fernandes, hoje com 25 anos, forjou provas contra ele mesmo ao promover um reality show de horrores na casa de uma ex-namorada, Eloá. Armado, o rapaz manteve a menina e os amigos dela como reféns e só saiu de lá quando a tragédia estava consumada. Quando a polícia chegou, era tarde: a menina estava morta e uma amiga, gravemente ferida.
As câmeras e intermediação dos apresentadores de tevê que conseguiram entrevistas “exclusivas” com ele em pleno local do crime não impediram o assassinato.
Após quatro dias de julgamento, Lindemberg foi condenado por 12 crimes. São quase cem anos de prisão, mas, como a pena máxima no Brasil é de 30 anos, ele poderá pedir a progressão para o regime semiaberto “já” em 2033. Vai ter tempo para pensar no que fez, segundo a própria mãe da vítima.
Justiça feita, direito de defesa cumprido, bola pra frente, certo? Não. Em pouco tempo, a patrulha justiceira voltou a vestir a fantasia do bom-mocismo e resolveu colocar as garras de fora (dessa vez para condenar quem condena). Mal a decisão saiu e já havia gente na internet relativizando o conceito de justiça nos olhos dos outros (vítimas, inclusive). Algo como: “ele cumprirá a pena por 30 anos, e ela, pela vida inteira. Isso é justo?”.
Pouco antes, havia gente indignada com o fato de o rapaz ter ganhado peso na cadeia à espera do julgamento. Indignados se perguntavam se era justo aos bolsos do contribuinte bancar a engorda de um criminoso confesso.
Com um pouquinho de corda e todos já pediam a importação de métodos chineses de fuzilamento: o criminoso é eliminado, e a família paga a bala. E finalmente todos os Lindemberg do mundo pensariam antes de agir.
Não é uma constatação científica, mas o coro nesse tempo de comoção nacional é feito quase sempre pelas mesmas pessoas que se indignam quando veem o Estado criar amarras para as próprias ações, como o direito inalienável de bater nos próprios filhos ou de expulsar à bala trabalhadores sem-terra que ocupam terras improdutivas. Para linchar um condenado (ou suspeito) é um pulo. Nesses casos, a violência é sempre justa (ou justificável) quando está a nosso favor.
Até que um dia os filhos instruídos, bem estudados e bem vestidos, resolvem aloprar e saem provocando estragos no carro emprestado dos pais. Bebem, aceleram, fazem filas de atropelados que tiveram o azar simplesmente de cruzar seus caminhos de reis entediados. No outro, arrebentam tudo o que é diferente deles por pura diversão: do homem que anda de mãos dadas com outros homens ao mendigo dormindo sob a marquise da loja de luxo.
E dá-lhe os papais metendo carteirada nas delegacias avisando que o filho fez um ato impensado, e não é marginal.
Em tempo: os exemplos não são matemáticos, mas servem para mostrar que todos estão sujeitos ao mesmo crime, seja na condição de vítima, seja na de autor.
Noves fora, é sempre mais fácil defender que a polícia prenda e arrebente os viciados em crack que me emporcalham o caminho de casa quando acredito não ter nenhum parente ou amigo envolvido num problema que imagino não me pertencer.
A ideia do marginal só faz sentido se ele estiver distante; quando está perto, ganha outros nomes ou conotações, seja para crimes passionais (Pimenta Neves que não me deixa mentir), violência doméstica ou barbárie no trânsito. Quando a bomba estoura perto, então o crime vira só desvio, ato de loucura, portanto passível de arrependimento e correção.
O “cumpra-se” só vale se estiver longe – porque nós e nossas culpas já fomos purgados nas manifestações de justiça, no “Hino da Vitória” e nas campanhas pelo linchamento. Sobre isso, Caetano Veloso já sentenciava: “A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores”.
Que a lei nos proteja de nossos próprios justiceiros.
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