Sociedade

A plenitude da escalada repressiva

Tratar greves e demais movimentos políticos de natureza reivindicatória como casos de polícia é retroceder na história, diz professor de Direito

O professor de Direito da USP Jorge Luiz Souto Maior. Foto: Reprodução/Debate Jornal Brasil de Fato
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Na gestão Grandino Rodas, a escalada repressiva na maior universidade do País chegou à sua plenitude. A afirmação é do juiz Jorge Luiz Souto Maior, professor livre docente da Faculdade de Direito da USP.

Um dos mais combativos críticos do atual reitor, Souto Maior fez uma análise, a pedido da reportagem, sobre o momento de tensão vivido hoje na universidade, com a presença da PM no campus, perseguição a funcionários e o avanço de cursos privados no ambiente público.

“Se considerarmos a vontade expressa pelos eleitores da lista tríplice, o Sr. Grandino Rodas, que não tinha maiores ligações com projetos institucionais da Universidade, aparece mesmo como uma espécie de interventor, para desenvolver na Universidade a vontade política do governo tucano”, afirma.

Souto Maior é doutor em Direito pela USP e especialista em Direito do Trabalho e Direitos Humanos.

 

CartaCapital: Muitos classificam a gestão Grandino Rodas como autoritária. O sr. concorda com essa avaliação?

Jorge Luiz Souto Maior: O que sei é que o atual reitor da universidade, já nos tempos em que foi diretor da Faculdade de Direito, em 21 de agosto de 2007, chamou a Polícia Militar – sem ordem judicial, tendo sido prontamente atendido – para entrar na faculdade, fato que não ocorreu nem nos tempos da ditadura militar, e promoveu a retirada à força, do pátio da faculdade, de representantes de movimentos sociais que, junto com alunos, participavam da “Jornada Nacional de Luta em Defesa da Educação Pública”, uma manifestação simbólica e pacífica.

Em 2008, patrocinou a ideia de colocação de catracas e câmeras na faculdade, o que somente foi evitado após decisão da Congregação, em setembro do mesmo ano, acatando a mobilização dos alunos.

Em 2009, na calada da noite, determinou a retirada dos livros (um acervo histórico) das bibliotecas departamentais da faculdade, encaminhando-os sem o menor cuidado de transporte e armazenamento a um prédio próximo, ainda sem as condições mínimas para abrigar uma biblioteca pública. O dano ao patrimônio foi enorme e a atitude se inseria no propósito de liberação de espaço para aumento do número das salas de aula, acompanhado do projeto de “modernização” das salas, sendo que algumas delas chegaram a ser reformadas por entidades privadas com a contrapartida de que recebessem, cada uma deles, o nome do respectivo doador. Isso foi feito sem a realização de licitação para tanto.

Em 2010, com a revelação dos contratos secretos que deram origem à reforma das salas e diante da nova mobilização de estudantes e professores, a Congregação da Faculdade de Direito deliberou pela retirada dos nomes dos doadores das salas de aula. Um deles ingressou com ação na Justiça contra a universidade para reaver o dinheiro investido. Em sentença de primeiro grau proferida em abril de 2012 a USP foi condenada a devolver ao autor 1 milhão de reais.

Depois, em 2011, na qualidade de reitor, agiu da mesma forma para enfrentar estudantes que ocupavam a reitoria em ato político de natureza reivindicatória. Alunos que, antes do ato de ocupação, estavam se sentindo agredidos física e moralmente pela presença ostensiva da Polícia Militar no campus, o que se concretizou após a formação de um convênio entre a direção da universidade e a Polícia Militar.

Pode-se dizer, no segundo caso, que a direção apenas efetivou a propositura da ação judicial de reintegração (o que não houve no primeiro caso) e que a ordem de desocupação foi judicial e não sua, mas a iniciativa da propositura da ação, judicializando a política, se fez antes de ser iniciado qualquer processo de diálogo com os estudantes. Com a obtenção da decisão liminar a reitoria condicionou toda discussão ao cumprimento da decisão.

Na sequência, a reitoria instaurou vários processos administrativos, buscando a punição máxima de “eliminação” de todos aqueles que se envolveram em atos políticos de natureza reivindicatória na universidade, atingindo, sobretudo, os servidores sindicalizados. Hoje praticamente todos os dirigentes do Sintusp (o Sindicato dos Trabalhadores da USP) respondem a processos administrativos.

Os diretores da Associação dos Professores, a Adusp, todos eles indistintamente, foram indicados como réus em processo de interpelação criminal, ou como se expôs na petição inicial, “pedido de explicações”, decorrente de ação movida pela direção da universidade, tendo por base declaração que supostamente um dos membros da Adusp teria expressado em entrevista a um jornal. O fato gerou uma moção de repúdio da congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, FFLCH, em 22 de março de 2012.

Não bastasse isso, foi criada, junto à diretoria da universidade, uma denominada “sala de crise”, sob a coordenação do sr. Ronaldo Pena, ex-investigador de polícia e que na época exercia a função de diretor da Divisão Técnica de Operações e Vigilância e que depois, em 30 de março de 2012, foi nomeado Assessor Técnico de Gabinete, junto à Superintendência de Relações Institucionais. A função da “sala de crise” é investigar as condutas de estudantes, professores e servidores no âmbito da universidade, com elaboração de relatórios típicos de espionagem.

Há, portanto, um clima de repressão que é totalmente contrário ao diálogo que deve nortear uma universidade.

CC: Há uma concentração de decisões nas mãos da reitoria? Mais que em outras gestões?

JLSM: De fato, o atual estado de coisas é resultado de um processo histórico de natureza repressiva aos opositores da política privatizante da universidade. Não se pode esquecer que, presentemente, atuam na universidade cerca de 30 fundações de direito privado, com a designação USP, oferecendo consultorias e cursos pagos, além de um processo crescente de terceirização que teve início com a Guarda Universitária, gerando inclusive os problemas de segurança que mais tarde se vislumbrou resolver com a Polícia Militar.

Quanto às fundações privadas, no âmbito da USP, oportuno recordar que em 2001 os estudantes, em protesto contra a possibilidade de aprovação de uma regulamentação que ampliaria, ilimitadamente, o recurso às fundações, ocuparam a reitoria e, depois, adentraram a sala do Conselho Universitário, tendo obtido, à época, a suspensão da regulamentação. Foi uma vitória do movimento, embora alguns anos depois, em 2003, oito daqueles estudantes tenham sido punidos com suspensões de 15 a 45 dias.

De todo modo, do movimento resultou uma reunião, em 21 de novembro 2001, na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), para tratar das fundações privadas na USP, tendo sido destacado o elevado valor movimentado pelas fundações, incluindo repasses públicos, e a total ausência de controle da entidade pública sobre as fundações, além da ausência da realização de concurso público para contratação de seus trabalhadores, sem falar na acumulação de cargos de direção e conflitos de interesses na atuação acadêmica.

A Adusp, Associação dos Professores, desde então se posicionou contra as fundações, elaborando estudos demonstrando a ilegalidade traduzida pela promíscua relação entre o público e privado e trazendo uma estimativa de que 25 dessas instituições privadas movimentaram, em 2001, 458 milhões de reais, equivalente a 36% do orçamento da USP naquele ano.

Em dezembro de 2002, a Adusp ofereceu uma representação junto à Promotoria de Cidadania da Capital, requerendo que se instaurasse um inquérito para apurar as violações constitucionais acarretadas pelo oferecimento de cursos pagos na USP, bem como a atuação na universidade de fundações ditas “de apoio”, que culminou com uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público questionando os cursos pagos na USP. O problema ainda está presente, crescendo, favorecendo a terceirização em atividades típicas de servidores públicos, e, portanto, sem solução, o que demonstra a relevância de se manterem abertas as vias democráticas de contestação na universidade, para uma efetiva defesa da coisa pública.

(Leia aqui: )

É possível perceber uma escalada repressiva, que encontra no atual reitor a sua plenitude. Todavia, os problemas de democracia na universidade transcendem a figura do reitor, sendo certo que a estrutura administrativa da universidade como um todo é recheada de deficiências nesta área. Há uma organização quase estamental, em que professores titulares possuem maior fruição de representação que os demais professores. A escolha da lista tríplice para reitor é feita por corpo muito restrito da universidade e a nomeação ainda se submete à vontade do governador. É um modelo, portanto, que favorece a uma concentração de poderes e a impotência daqueles que são afastados das estruturas deliberativas.

CC: Apesar dos recentes conflitos, o reitor está disposto a dialogar?

JLSM: Mesmo com os conflitos se intensificando, o reitor não parece disposto ao diálogo, muito pelo contrário. Como visto acima, têm sido intensificadas as estruturas de repressão e as estratégias de enfraquecimento dos movimentos de contestação, como o anúncio, em fevereiro de 2012, de que seriam premiados com “Ipads, laptops e viagens” os professores com melhor produção acadêmica e bom comportamento.

Para os servidores, ainda a partir de agosto de 2011, foi criado o Proade (Programa de Acompanhamento de Desenvolvimento Funcional), que vincula a progressão a partir de avaliações periódicas que concluam, por exemplo, que o servidor é “produtivo” ou se adapta aos critérios de “competência técnica e comportamental”, servindo o tal programa, portanto, sobretudo diante do clima instaurado na universidade, visto por outro ângulo, como uma forma de punir o envolvimento em ações políticas, como a greve, favorecendo igualmente à difusão do assédio moral no ambiente de trabalho.

Essa postura do reitor se deve ao fato de que a sua nomeação fora feita exatamente para isso, funcionando a falência democrática, institucionalizada na universidade, em seu favor.

CC: Isso tem a ver com a forma com que o reitor foi escolhido?

JLSM: Certamente. Quando a origem do poder não está ligada a um processo democrático, o “escolhido” não possui compromisso com a lógica democrática, tendendo naturalmente a preservar a estrutura que o conduziu ao poder e que lhe permite reprimir contestadores.

A forma da escolha do reitor é antidemocrática e precisa ser alterada urgentemente, independentemente da avaliação meritória que se faça do ocupante do cargo.

Neste contexto, não é de pouca importância destacar que em meio a tudo isso, em outubro de 2011, aparece na universidade uma placa indicativa da construção de um “Monumento em Homenagem a Mortos e Cassados na Revolução de 1964” – grifou-se.

CC:  O sr. sente que existe um clima de intimidação sobre funcionários, estudantes e professores devido aos conflitos recentes?

JLSM: Certamente, como demonstrado acima. A situação, inclusive, chegou ao ponto de o reitor, por intermédio de um jornal interno (USP Destaques, edição de 09/03/12), ameaçar a todos os membros da universidade com a propositura de processos criminais caso alguma manifestação fosse considerada caluniosa. É bem verdade que calúnia é crime e que o caluniado tem todo o direito de defender o seu interesse, mas não se pode deixar de verificar que uma ameaça dessa natureza, vinda do poder central, já é, primeiro, reveladora de sua própria ilegitimidade e, segundo, o quanto repercute negativamente junto a estudantes, servidores e professores, sobretudo de outras áreas do conhecimento, que se sentem amedrontados quanto às possibilidades de manifestação. É evidente que o clima que se instaura é um clima de intimação e não do diálogo.

A seguinte passagem do referido jornal é suficiente para esclarecer esta e várias outras questões: “Protestos extraordinários são cabíveis em um Estado democrático de direito, como o Brasil, por meio de demonstrações etc., mas nunca com a utilização de atos que sejam considerados como crime pelo direito penal, como vem acontecendo há décadas na USP. Por outro lado, comentários e críticas fazem parte da democracia e são aceitáveis. Entretanto, acusar alguém de conduta criminosa, sem prova concreta, pode acarretar a responsabilização, inclusive penal, de quem o fez. É interessante verificar que nos últimos anos no Brasil somente minorias da USP, além de outros poucos grupos extremistas, têm usado sistematicamente a violência física e a destruição de bens públicos como meio de protestar.

Nos processos administrativos instaurados, ademais, é possível perceber a vontade de se chegar à pena máxima, da eliminação e demissão por justa causa, passando por cima das demais punições possíveis, advertência, repreensão e suspensão, conforme previsto no próprio decreto n. 52.906/72, já referido. As penas máximas de eliminação, no caso de estudantes, e de demissão por justa causa, no caso de servidores, tem sido utilizadas sem qualquer dosagem, exatamente para servir como exemplo aos demais membros da universidade, o que constitui, por certo, a demonstração clara de uma política de intolerância, plenamente perniciosa à lógica democrática.

CC: Quase um ano após o início do convênio com a PM, qual a avaliação que o sr. faz hoje sobre o policiamento no campus?

JLSM: A presença ostensiva da Polícia Militar, originada a partir de um convênio firmado com a estrutura de poder tende elevar a sensação de poder. Foi essa sensação, aliás, que provocou um grande número de abordagens, muitas delas em tons discriminatórios, junto aos estudantes, e que culminou com o confronto em 2011.

Lembre-se que mesmo depois de todo esse confronto, com todos de olho com o que ocorria na USP, houve o caso da agressão a um estudante no início de 2012.

De todo modo, é imperativo preservar o princípio de que uma universidade deve ser capaz de solucionar seus problemas internos de segurança com Polícia Universitária apta a lidar também com as ações políticas que naturalmente tendem a ocorrer no meio estudantil e acadêmico.

Tratar greves e demais movimentos políticos de natureza reivindicatória como casos de polícia é retroceder na história. Um exemplo desastroso como este não pode ser dado dentro de uma universidade pública.

CC: Como sr. imagina a universidade num futuro próximo, caso as tensões entre reitoria e estudantes na USP continuem? Há quem diga que existe um processo de sucateamento dos serviços (exposto pela tensão com os funcionários) e uma porta aberta para a iniciativa privada. É um temor plausível?

JLSM: O caminho em direção da democratização da universidade já começou a ser percorrido e diante da organização conjunta neste sentido, de estudantes, professores e servidores, que ora se verifica, trata-se de um percurso sem volta.

Quanto à privatização da universidade parece-me que há nessa proposição que de fato existe uma incoerência intrínseca, pois uma universidade pública não pode atender por encomenda a finalidades privadas. O esforço de uma universidade pública é produzir saberes que sirvam à sociedade como um todo, sobrepujando interesses particulares. Há um notório conflito de interesses em produções de uma universidade pública em favor exclusivo de entidades privadas.

As repressões ao movimento de democratização e as resistências ao processo de privatização fazem prever uma tensão futura, mas necessária, no âmbito da universidade.

 

Na gestão Grandino Rodas, a escalada repressiva na maior universidade do País chegou à sua plenitude. A afirmação é do juiz Jorge Luiz Souto Maior, professor livre docente da Faculdade de Direito da USP.

Um dos mais combativos críticos do atual reitor, Souto Maior fez uma análise, a pedido da reportagem, sobre o momento de tensão vivido hoje na universidade, com a presença da PM no campus, perseguição a funcionários e o avanço de cursos privados no ambiente público.

“Se considerarmos a vontade expressa pelos eleitores da lista tríplice, o Sr. Grandino Rodas, que não tinha maiores ligações com projetos institucionais da Universidade, aparece mesmo como uma espécie de interventor, para desenvolver na Universidade a vontade política do governo tucano”, afirma.

Souto Maior é doutor em Direito pela USP e especialista em Direito do Trabalho e Direitos Humanos.

 

CartaCapital: Muitos classificam a gestão Grandino Rodas como autoritária. O sr. concorda com essa avaliação?

Jorge Luiz Souto Maior: O que sei é que o atual reitor da universidade, já nos tempos em que foi diretor da Faculdade de Direito, em 21 de agosto de 2007, chamou a Polícia Militar – sem ordem judicial, tendo sido prontamente atendido – para entrar na faculdade, fato que não ocorreu nem nos tempos da ditadura militar, e promoveu a retirada à força, do pátio da faculdade, de representantes de movimentos sociais que, junto com alunos, participavam da “Jornada Nacional de Luta em Defesa da Educação Pública”, uma manifestação simbólica e pacífica.

Em 2008, patrocinou a ideia de colocação de catracas e câmeras na faculdade, o que somente foi evitado após decisão da Congregação, em setembro do mesmo ano, acatando a mobilização dos alunos.

Em 2009, na calada da noite, determinou a retirada dos livros (um acervo histórico) das bibliotecas departamentais da faculdade, encaminhando-os sem o menor cuidado de transporte e armazenamento a um prédio próximo, ainda sem as condições mínimas para abrigar uma biblioteca pública. O dano ao patrimônio foi enorme e a atitude se inseria no propósito de liberação de espaço para aumento do número das salas de aula, acompanhado do projeto de “modernização” das salas, sendo que algumas delas chegaram a ser reformadas por entidades privadas com a contrapartida de que recebessem, cada uma deles, o nome do respectivo doador. Isso foi feito sem a realização de licitação para tanto.

Em 2010, com a revelação dos contratos secretos que deram origem à reforma das salas e diante da nova mobilização de estudantes e professores, a Congregação da Faculdade de Direito deliberou pela retirada dos nomes dos doadores das salas de aula. Um deles ingressou com ação na Justiça contra a universidade para reaver o dinheiro investido. Em sentença de primeiro grau proferida em abril de 2012 a USP foi condenada a devolver ao autor 1 milhão de reais.

Depois, em 2011, na qualidade de reitor, agiu da mesma forma para enfrentar estudantes que ocupavam a reitoria em ato político de natureza reivindicatória. Alunos que, antes do ato de ocupação, estavam se sentindo agredidos física e moralmente pela presença ostensiva da Polícia Militar no campus, o que se concretizou após a formação de um convênio entre a direção da universidade e a Polícia Militar.

Pode-se dizer, no segundo caso, que a direção apenas efetivou a propositura da ação judicial de reintegração (o que não houve no primeiro caso) e que a ordem de desocupação foi judicial e não sua, mas a iniciativa da propositura da ação, judicializando a política, se fez antes de ser iniciado qualquer processo de diálogo com os estudantes. Com a obtenção da decisão liminar a reitoria condicionou toda discussão ao cumprimento da decisão.

Na sequência, a reitoria instaurou vários processos administrativos, buscando a punição máxima de “eliminação” de todos aqueles que se envolveram em atos políticos de natureza reivindicatória na universidade, atingindo, sobretudo, os servidores sindicalizados. Hoje praticamente todos os dirigentes do Sintusp (o Sindicato dos Trabalhadores da USP) respondem a processos administrativos.

Os diretores da Associação dos Professores, a Adusp, todos eles indistintamente, foram indicados como réus em processo de interpelação criminal, ou como se expôs na petição inicial, “pedido de explicações”, decorrente de ação movida pela direção da universidade, tendo por base declaração que supostamente um dos membros da Adusp teria expressado em entrevista a um jornal. O fato gerou uma moção de repúdio da congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, FFLCH, em 22 de março de 2012.

Não bastasse isso, foi criada, junto à diretoria da universidade, uma denominada “sala de crise”, sob a coordenação do sr. Ronaldo Pena, ex-investigador de polícia e que na época exercia a função de diretor da Divisão Técnica de Operações e Vigilância e que depois, em 30 de março de 2012, foi nomeado Assessor Técnico de Gabinete, junto à Superintendência de Relações Institucionais. A função da “sala de crise” é investigar as condutas de estudantes, professores e servidores no âmbito da universidade, com elaboração de relatórios típicos de espionagem.

Há, portanto, um clima de repressão que é totalmente contrário ao diálogo que deve nortear uma universidade.

CC: Há uma concentração de decisões nas mãos da reitoria? Mais que em outras gestões?

JLSM: De fato, o atual estado de coisas é resultado de um processo histórico de natureza repressiva aos opositores da política privatizante da universidade. Não se pode esquecer que, presentemente, atuam na universidade cerca de 30 fundações de direito privado, com a designação USP, oferecendo consultorias e cursos pagos, além de um processo crescente de terceirização que teve início com a Guarda Universitária, gerando inclusive os problemas de segurança que mais tarde se vislumbrou resolver com a Polícia Militar.

Quanto às fundações privadas, no âmbito da USP, oportuno recordar que em 2001 os estudantes, em protesto contra a possibilidade de aprovação de uma regulamentação que ampliaria, ilimitadamente, o recurso às fundações, ocuparam a reitoria e, depois, adentraram a sala do Conselho Universitário, tendo obtido, à época, a suspensão da regulamentação. Foi uma vitória do movimento, embora alguns anos depois, em 2003, oito daqueles estudantes tenham sido punidos com suspensões de 15 a 45 dias.

De todo modo, do movimento resultou uma reunião, em 21 de novembro 2001, na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), para tratar das fundações privadas na USP, tendo sido destacado o elevado valor movimentado pelas fundações, incluindo repasses públicos, e a total ausência de controle da entidade pública sobre as fundações, além da ausência da realização de concurso público para contratação de seus trabalhadores, sem falar na acumulação de cargos de direção e conflitos de interesses na atuação acadêmica.

A Adusp, Associação dos Professores, desde então se posicionou contra as fundações, elaborando estudos demonstrando a ilegalidade traduzida pela promíscua relação entre o público e privado e trazendo uma estimativa de que 25 dessas instituições privadas movimentaram, em 2001, 458 milhões de reais, equivalente a 36% do orçamento da USP naquele ano.

Em dezembro de 2002, a Adusp ofereceu uma representação junto à Promotoria de Cidadania da Capital, requerendo que se instaurasse um inquérito para apurar as violações constitucionais acarretadas pelo oferecimento de cursos pagos na USP, bem como a atuação na universidade de fundações ditas “de apoio”, que culminou com uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público questionando os cursos pagos na USP. O problema ainda está presente, crescendo, favorecendo a terceirização em atividades típicas de servidores públicos, e, portanto, sem solução, o que demonstra a relevância de se manterem abertas as vias democráticas de contestação na universidade, para uma efetiva defesa da coisa pública.

(Leia aqui: )

É possível perceber uma escalada repressiva, que encontra no atual reitor a sua plenitude. Todavia, os problemas de democracia na universidade transcendem a figura do reitor, sendo certo que a estrutura administrativa da universidade como um todo é recheada de deficiências nesta área. Há uma organização quase estamental, em que professores titulares possuem maior fruição de representação que os demais professores. A escolha da lista tríplice para reitor é feita por corpo muito restrito da universidade e a nomeação ainda se submete à vontade do governador. É um modelo, portanto, que favorece a uma concentração de poderes e a impotência daqueles que são afastados das estruturas deliberativas.

CC: Apesar dos recentes conflitos, o reitor está disposto a dialogar?

JLSM: Mesmo com os conflitos se intensificando, o reitor não parece disposto ao diálogo, muito pelo contrário. Como visto acima, têm sido intensificadas as estruturas de repressão e as estratégias de enfraquecimento dos movimentos de contestação, como o anúncio, em fevereiro de 2012, de que seriam premiados com “Ipads, laptops e viagens” os professores com melhor produção acadêmica e bom comportamento.

Para os servidores, ainda a partir de agosto de 2011, foi criado o Proade (Programa de Acompanhamento de Desenvolvimento Funcional), que vincula a progressão a partir de avaliações periódicas que concluam, por exemplo, que o servidor é “produtivo” ou se adapta aos critérios de “competência técnica e comportamental”, servindo o tal programa, portanto, sobretudo diante do clima instaurado na universidade, visto por outro ângulo, como uma forma de punir o envolvimento em ações políticas, como a greve, favorecendo igualmente à difusão do assédio moral no ambiente de trabalho.

Essa postura do reitor se deve ao fato de que a sua nomeação fora feita exatamente para isso, funcionando a falência democrática, institucionalizada na universidade, em seu favor.

CC: Isso tem a ver com a forma com que o reitor foi escolhido?

JLSM: Certamente. Quando a origem do poder não está ligada a um processo democrático, o “escolhido” não possui compromisso com a lógica democrática, tendendo naturalmente a preservar a estrutura que o conduziu ao poder e que lhe permite reprimir contestadores.

A forma da escolha do reitor é antidemocrática e precisa ser alterada urgentemente, independentemente da avaliação meritória que se faça do ocupante do cargo.

Neste contexto, não é de pouca importância destacar que em meio a tudo isso, em outubro de 2011, aparece na universidade uma placa indicativa da construção de um “Monumento em Homenagem a Mortos e Cassados na Revolução de 1964” – grifou-se.

CC:  O sr. sente que existe um clima de intimidação sobre funcionários, estudantes e professores devido aos conflitos recentes?

JLSM: Certamente, como demonstrado acima. A situação, inclusive, chegou ao ponto de o reitor, por intermédio de um jornal interno (USP Destaques, edição de 09/03/12), ameaçar a todos os membros da universidade com a propositura de processos criminais caso alguma manifestação fosse considerada caluniosa. É bem verdade que calúnia é crime e que o caluniado tem todo o direito de defender o seu interesse, mas não se pode deixar de verificar que uma ameaça dessa natureza, vinda do poder central, já é, primeiro, reveladora de sua própria ilegitimidade e, segundo, o quanto repercute negativamente junto a estudantes, servidores e professores, sobretudo de outras áreas do conhecimento, que se sentem amedrontados quanto às possibilidades de manifestação. É evidente que o clima que se instaura é um clima de intimação e não do diálogo.

A seguinte passagem do referido jornal é suficiente para esclarecer esta e várias outras questões: “Protestos extraordinários são cabíveis em um Estado democrático de direito, como o Brasil, por meio de demonstrações etc., mas nunca com a utilização de atos que sejam considerados como crime pelo direito penal, como vem acontecendo há décadas na USP. Por outro lado, comentários e críticas fazem parte da democracia e são aceitáveis. Entretanto, acusar alguém de conduta criminosa, sem prova concreta, pode acarretar a responsabilização, inclusive penal, de quem o fez. É interessante verificar que nos últimos anos no Brasil somente minorias da USP, além de outros poucos grupos extremistas, têm usado sistematicamente a violência física e a destruição de bens públicos como meio de protestar.

Nos processos administrativos instaurados, ademais, é possível perceber a vontade de se chegar à pena máxima, da eliminação e demissão por justa causa, passando por cima das demais punições possíveis, advertência, repreensão e suspensão, conforme previsto no próprio decreto n. 52.906/72, já referido. As penas máximas de eliminação, no caso de estudantes, e de demissão por justa causa, no caso de servidores, tem sido utilizadas sem qualquer dosagem, exatamente para servir como exemplo aos demais membros da universidade, o que constitui, por certo, a demonstração clara de uma política de intolerância, plenamente perniciosa à lógica democrática.

CC: Quase um ano após o início do convênio com a PM, qual a avaliação que o sr. faz hoje sobre o policiamento no campus?

JLSM: A presença ostensiva da Polícia Militar, originada a partir de um convênio firmado com a estrutura de poder tende elevar a sensação de poder. Foi essa sensação, aliás, que provocou um grande número de abordagens, muitas delas em tons discriminatórios, junto aos estudantes, e que culminou com o confronto em 2011.

Lembre-se que mesmo depois de todo esse confronto, com todos de olho com o que ocorria na USP, houve o caso da agressão a um estudante no início de 2012.

De todo modo, é imperativo preservar o princípio de que uma universidade deve ser capaz de solucionar seus problemas internos de segurança com Polícia Universitária apta a lidar também com as ações políticas que naturalmente tendem a ocorrer no meio estudantil e acadêmico.

Tratar greves e demais movimentos políticos de natureza reivindicatória como casos de polícia é retroceder na história. Um exemplo desastroso como este não pode ser dado dentro de uma universidade pública.

CC: Como sr. imagina a universidade num futuro próximo, caso as tensões entre reitoria e estudantes na USP continuem? Há quem diga que existe um processo de sucateamento dos serviços (exposto pela tensão com os funcionários) e uma porta aberta para a iniciativa privada. É um temor plausível?

JLSM: O caminho em direção da democratização da universidade já começou a ser percorrido e diante da organização conjunta neste sentido, de estudantes, professores e servidores, que ora se verifica, trata-se de um percurso sem volta.

Quanto à privatização da universidade parece-me que há nessa proposição que de fato existe uma incoerência intrínseca, pois uma universidade pública não pode atender por encomenda a finalidades privadas. O esforço de uma universidade pública é produzir saberes que sirvam à sociedade como um todo, sobrepujando interesses particulares. Há um notório conflito de interesses em produções de uma universidade pública em favor exclusivo de entidades privadas.

As repressões ao movimento de democratização e as resistências ao processo de privatização fazem prever uma tensão futura, mas necessária, no âmbito da universidade.

 

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