Sociedade

Sobre tortura e amantes

Práticas humanamente abjetas como a tortura não devem ter outra perspectiva de debate que não seu combate

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Num artigo recente, tratei do caso de tortura de bebês pela ditadura no Brasil como exemplo da perda de referência moral por parte do autoritarismo, uma evidente psicopatia que sempre caracteriza este tipo de regime político.

A questão é saber se pode haver psicopatias nos debates de uma sociedade democrática.  A ausência insana de sentido moral pode também atingir debates livres no interior  de  uma sociedade democrática? A falta absoluta de correção moral é doença própria do autoritarismo ou pode se acostar à democracia?

A julgar por certos temas de debates ocorrentes na contemporaneidade, a resposta é que sim: os debates democráticos podem ser tomados por psicopatias, pela ausência de senso moral, pela admissão do que é consensualmente tido como mal sem culpas ou vergonha.

Nos últimos dias os órgãos de imprensa local e seus comentaristas, do psicanalista Contardo Calligaris, que admiro, à entrevista dada a uma revista semanal pelo jornalista americano Mark Bowden, passando pela opinião de outros articulistas de altíssimo valor como Vladimir Saflate e Marcelo Coelho – estes corretamente críticos ao tema e ao conteúdo do debate – têm tratado de questão importada da mídia norte-americana, qual seja a tortura em sua dimensão utilitarista, sua aptidão funcional em obter informações verdadeiras.

O assunto veio à tona por conta dos métodos inumanos de interrogatório usados em suspeitos de terrorismo pelo governo dos EUA a partir do “Patriotic  Act”. Supostamente, tal tipo de interrogatório vil teria tido uma eficácia indireta na captura e assassinato de Bin Laden.

Nos EUA é comum vermos “homens de bem”, intelectuais bem pensantes tecendo loas à tortura como método de interrogatório ao invés de questionar a morte de Bin Laden sem julgamento, sem sequer o direito a ter seus restos sepultados pela família. O grau de civilidade de uma sociedade se mede pela forma como trata seus bandidos e malfeitores. Este necessário debate, nem nos EUA nem aqui, é travado.

Me parece  pouco saudável debatermos se a prática de tortura é ou não funcional na obtenção  de informações. Em geral, as afirmações em torno do tema iniciam-se apartando os aspectos morais que lhe são inerentes. É humanamente digno tratar do tema sem levar em conta, constantemente, sua dimensão moral?

Dissociar a funcionalidade da tortura como método investigativo do juízo moral a seu respeito é uma conduta lucida e saudável ou é manifestação de uma racionalidade psicopática? O tema da funcionalidade da tortura é apto a ingressar no ambiente público de uma  sociedade democrática?

Não me digam que todos os temas são admissíveis no debate democrático.

Cada sociedade livre constrói valores éticos que limitam os temas em debate, mesmo que a maioria deles corretamente não seja censurados ou criminalizados pelo Estado.

No Brasil portar símbolos nazistas e a defesa política do nazismo são temas excluídos do debate público. São, inclusive, criminalizados: não se aceita que uma ideologia política que tem em seu eixo programático a extinção de uma etnia possa ser admitida no debate.

Também por aqui é crime debater-se a funcionalidade da escravidão dos afrodescendentes, se ela pode representar ganhos de competitividade econômica etc.

Mesmo um assunto menor, como a vida privada dos políticos e homens públicos no Brasil – ao contrario dos EUA – é tema eticamente proibido em qualquer jornal. Não há censura estatal em relação a isso, nem deve haver. É um pacto ético de nossas redações. Amantes, filhos fora do casamento e práticas sexuais privadas de nossas autoridades são temas fora do debate.

Entretanto, não há culpa nem vergonha em se debater, com ares de racionalidade bem pensante, e até um certo ar de  transgressão inteligente e criativa, se a tortura é ou não eficiente . Ou se o argumento de sua ineficiência funcional é valido racionalmente.

Torturar um bebê na frente da mãe e do pai é eficiente para obtenção de informações verdadeiras? Seria justificável isso ocorrer numa hipotética situação de ameaça de bomba nuclear ou invasão de ETs abdutores?

Temos de ter claro que admitir tal debate implica em criar âmbitos públicos de aceitação da prática. Qualquer forma de debate sobre tortura que não parta do consenso moral de sua inaceitabilidade absoluta e que vá além de tratar de formas de combatê-la implica em abrir espaço para que ela entre em nossa sala, que possa seduzir legitimamente defensores, hoje uma minoria que pode se tornar maioria amanhã.

Obviamente pode-se acusar os próprios críticos do método, por asseverarem que a tortura, além de imoral, não funciona bem. Teriam assim dado margem ao debate da eficiência. Ora tais críticos nunca dissociaram os argumentos de forma temática, como hoje se faz para defender em alguma medida a pratica nefasta.

Dissociar em qualquer ambiente a dimensão da eficácia funcional dos aspectos morais  na questão  da  pratica  da  tortura é um imenso erro.

Temos de ter claro que tabus temáticos podem ser emocional e racionalmente úteis para a convivência social livre e democrática. Não há sentido debatermos se determinado político tem amantes; a dignidade humana se coloca acima da curiosidade mórbida e rasteira do público. Com muito mais razão temos de ter pejo em debater a eficiência da tortura.

Por óbvio, não defendo censura estatal, defendo um pacto ético, como no caso das amantes e dos filhos escondidos dos homens públicos. Práticas humanamente abjetas como a tortura não devem ter outra perspectiva de debate que não seu combate.

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