Sociedade

Só não pode ser otário

Ao analisar a Lei Seca, Superior Tribunal de Justiça transformou os automóveis em área livre para o motorista fazer, e beber, o que quiser

Campanha de prevenção contra a bebida em Brasília. Em vão.? Foto: Agência Brasil
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Não falta muito para chegar o tempo em que você correrá o risco de receber multa se abrir uma latinha de cerveja e andar a pé na rua. Se acender um cigarro debaixo de um toldo, vai tomar tapa de amigos e do dono do bar. Melhor se esconder no banco de trás do carro: lá, poderá encher a lata à vontade, fumar o que quiser, e sair por aí rodopiando, confundido as luzes das ruas com as imagens psicodélicas que a bebedeira produz.

Em nenhum ponto da legislação brasileira o automóvel é citado como “área sem lei”, mas é nisso que foi transformado após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerar inúteis os relatos de testemunhas e autoridades do trânsito sobre crimes cometidos a quatro rodas.

A Lei Seca funcionava desde 2008 e era clara em relação aos limites para se dirigir. Quem bebesse além de seis decigramas de álcool por litro de sangue (o equivalente a dois chopes) seria multado, perderia pontos na carteira, e poderia responder a processo criminal. Ficou determinado, pelo decreto do governo, que os excessos seriam medidos por coleta de sangue ou dos chamados bafômetros, nome popular do etilômetro.

Faltou pensar no resto. A primeira grande questão era: como municiar policiais e guardas do trânsito se faltavam equipamentos em todo canto? Até então, a única fábrica brasileira autorizada a fabricar os equipamentos ficava em Tremembé, no interior de São Paulo. Faltava bafômetro em praticamente todas as praças do País.

Não demorou muito e o motorista percebeu que as blitzes também não eram tão comuns. E as que tinham podiam ser comunicadas em alertas distribuídos por uma rede de solidariedade no Twitter. “Não pega a Rebouças que lá os ‘homi’ estão fechando o cerco”. Com um iPhone na mão e uma cachaça na cabeça, estava livre da eventual punição. Numa cidade como São Paulo, em que a corrida de táxi é mais cara que a conta do restaurante, as linhas de metrô são limitadas e a circulação de ônibus públicos à noite é mais rara do que unicórnios, parecia um risco interessante de se correr.

A cada efeméride da edição da norma um mundo de especialistas dizia: a Lei Seca não pegou. Não pegou sobretudo porque, além de ser fácil driblá-la, o Brasil gosta de colecionar leis. E umas anulam as outras. Neste caso, como provar cientificamente, por meio de aparelhos certificados, que o motorista dirigia embriagado, se no mesmo País a lei diz que o mesmo motorista não é obrigado a produzir prova contra ele mesmo?

Até então, valiam, a depender das instâncias responsáveis por julgar cada caso, o relato de testemunhas. Com base nas evidências, e no recurso chamado de culpa presumida, o motorista podia, sim, ser incriminado. De uma lei mal formulada, que não previa a própria anulação em outras regras, valia o fundamento do relato e o bom senso do juiz – até onde cabe recurso, o acusado tem o direito de se defender.

Agora, ao desconsiderar os relatos como provas válidas, a lei se enfraqueceu de vez – e, nas palavras do promotor Evandro Gomes, representante do Ministério Público no caso analisado pelo tribunal, só será punido quem for “otário” a ponto de fazer o teste do bafômetro, produzindo, assim, provas contra si mesmo.

Algo diferente do que acontece em outros países. Na Inglaterra, um amigo foi parado numa blitz policial às 23h50 do dia 31 de dezembro de 1999 – a dez minutos, portanto, para o ano 2000. O teste do bafômetro, obrigatório, acusou que ele havia tomado metade de uma garrafa de champanhe antes de seguir para a festa em sua própria casa, a duas quadras de onde foi parado. Tentou negociar, pediu para estacionar o carro e terminar o roteiro a pé; diante da negativa, se exaltou e teve de comemorar o Revéillon na prisão. Mais tarde, respondeu a um processo, levou um belo carimbo na carteira e foi proibido de dirigir durante um ano. Foi tratado, segundo conta, como ladrão de carteira.

No Brasil, onde Executivo, Legislativo e Judiciário batem cabeça sobre normas aparentemente simples (que não deveriam se anular), não importa o potencial de destruição que o álcool somado à direção poderá causar em espaços públicos. O desfecho já estará sacramentado: “Doutor, eu vi com meus próprios olhos: o sujeito bateu aqui, saiu arrastando meio mundo, só parou no poste e desceu do carro rindo, trançando as pernas. Está tudo filmado, postado no YouTube, a tevê mostrou. Só um milagre evitou a tragédia”; “Mas ele fez o teste?”; “Fez não, senhor”; “Então não posso fazer nada: é a lei”.

Em outras palavras, o STJ, ao julgar um caso (e uniformizar os demais), decidiu que no Brasil o sujeito pode e deve ser perdoado quando coloca a vida de meio mundo em perigo. A leitura que se tira é: ser imprudente por aqui vale a pena e é até compreensível. O que não pode é ser otário. Portanto, se um dia te proibirem de beber ao ar livre, entre e beba no carro e saia dirigindo. Lá você estará protegido da lei.

Não falta muito para chegar o tempo em que você correrá o risco de receber multa se abrir uma latinha de cerveja e andar a pé na rua. Se acender um cigarro debaixo de um toldo, vai tomar tapa de amigos e do dono do bar. Melhor se esconder no banco de trás do carro: lá, poderá encher a lata à vontade, fumar o que quiser, e sair por aí rodopiando, confundido as luzes das ruas com as imagens psicodélicas que a bebedeira produz.

Em nenhum ponto da legislação brasileira o automóvel é citado como “área sem lei”, mas é nisso que foi transformado após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerar inúteis os relatos de testemunhas e autoridades do trânsito sobre crimes cometidos a quatro rodas.

A Lei Seca funcionava desde 2008 e era clara em relação aos limites para se dirigir. Quem bebesse além de seis decigramas de álcool por litro de sangue (o equivalente a dois chopes) seria multado, perderia pontos na carteira, e poderia responder a processo criminal. Ficou determinado, pelo decreto do governo, que os excessos seriam medidos por coleta de sangue ou dos chamados bafômetros, nome popular do etilômetro.

Faltou pensar no resto. A primeira grande questão era: como municiar policiais e guardas do trânsito se faltavam equipamentos em todo canto? Até então, a única fábrica brasileira autorizada a fabricar os equipamentos ficava em Tremembé, no interior de São Paulo. Faltava bafômetro em praticamente todas as praças do País.

Não demorou muito e o motorista percebeu que as blitzes também não eram tão comuns. E as que tinham podiam ser comunicadas em alertas distribuídos por uma rede de solidariedade no Twitter. “Não pega a Rebouças que lá os ‘homi’ estão fechando o cerco”. Com um iPhone na mão e uma cachaça na cabeça, estava livre da eventual punição. Numa cidade como São Paulo, em que a corrida de táxi é mais cara que a conta do restaurante, as linhas de metrô são limitadas e a circulação de ônibus públicos à noite é mais rara do que unicórnios, parecia um risco interessante de se correr.

A cada efeméride da edição da norma um mundo de especialistas dizia: a Lei Seca não pegou. Não pegou sobretudo porque, além de ser fácil driblá-la, o Brasil gosta de colecionar leis. E umas anulam as outras. Neste caso, como provar cientificamente, por meio de aparelhos certificados, que o motorista dirigia embriagado, se no mesmo País a lei diz que o mesmo motorista não é obrigado a produzir prova contra ele mesmo?

Até então, valiam, a depender das instâncias responsáveis por julgar cada caso, o relato de testemunhas. Com base nas evidências, e no recurso chamado de culpa presumida, o motorista podia, sim, ser incriminado. De uma lei mal formulada, que não previa a própria anulação em outras regras, valia o fundamento do relato e o bom senso do juiz – até onde cabe recurso, o acusado tem o direito de se defender.

Agora, ao desconsiderar os relatos como provas válidas, a lei se enfraqueceu de vez – e, nas palavras do promotor Evandro Gomes, representante do Ministério Público no caso analisado pelo tribunal, só será punido quem for “otário” a ponto de fazer o teste do bafômetro, produzindo, assim, provas contra si mesmo.

Algo diferente do que acontece em outros países. Na Inglaterra, um amigo foi parado numa blitz policial às 23h50 do dia 31 de dezembro de 1999 – a dez minutos, portanto, para o ano 2000. O teste do bafômetro, obrigatório, acusou que ele havia tomado metade de uma garrafa de champanhe antes de seguir para a festa em sua própria casa, a duas quadras de onde foi parado. Tentou negociar, pediu para estacionar o carro e terminar o roteiro a pé; diante da negativa, se exaltou e teve de comemorar o Revéillon na prisão. Mais tarde, respondeu a um processo, levou um belo carimbo na carteira e foi proibido de dirigir durante um ano. Foi tratado, segundo conta, como ladrão de carteira.

No Brasil, onde Executivo, Legislativo e Judiciário batem cabeça sobre normas aparentemente simples (que não deveriam se anular), não importa o potencial de destruição que o álcool somado à direção poderá causar em espaços públicos. O desfecho já estará sacramentado: “Doutor, eu vi com meus próprios olhos: o sujeito bateu aqui, saiu arrastando meio mundo, só parou no poste e desceu do carro rindo, trançando as pernas. Está tudo filmado, postado no YouTube, a tevê mostrou. Só um milagre evitou a tragédia”; “Mas ele fez o teste?”; “Fez não, senhor”; “Então não posso fazer nada: é a lei”.

Em outras palavras, o STJ, ao julgar um caso (e uniformizar os demais), decidiu que no Brasil o sujeito pode e deve ser perdoado quando coloca a vida de meio mundo em perigo. A leitura que se tira é: ser imprudente por aqui vale a pena e é até compreensível. O que não pode é ser otário. Portanto, se um dia te proibirem de beber ao ar livre, entre e beba no carro e saia dirigindo. Lá você estará protegido da lei.

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