Sociedade

Santa Catarina sitiada

Em reação a maus-tratos nos presídios, uma facção criminosa orquestra 60 ataques em 19 cidades em uma semana

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Passava da meia-noite e o auxiliar de cozinha Eron de Melo, de 19 anos, estava a apenas dois pontos de ônibus de sua casa. No retorno de uma visita à namorada, era o único passageiro que transitava pela Estrada Dário Manoel Cardoso, no bairro dos Ingleses, em Florianópolis, na quinta-feira 31. Tomou um susto ao ver um homem armado abordar o motorista, ordenar que ele descesse e atear fogo na cabine. O jovem tentou fugir pela porta traseira, mas ela estava fechada. Decidiu pular a catraca e atravessar as chamas. Tornou-se a primeira vítima da nova onda de ataques promovida por facções criminosas em Santa Catarina. Com o rosto, a parte de baixo das pernas e um dos braços queimados, recebeu atendimento na UTI do Hospital Governador Celso Ramos. Está fora de perigo, mas não quer falar com jornalistas. Teme represálias, justifica a família.

Em sete dias, a Polícia Militar registrou 60 ataques em 19 municípios catarinenses. Ao menos seis atentados ocorreram na madrugada da quarta-feira 6, como a detonação de um artefato explosivo na casa de um agente penitenciário em Chapecó. Ninguém ficou ferido. Os principais alvos são bases da PM e ônibus: 20 foram incendiados. Somados aos 27 destruídos na onda de violência ocorrida em novembro, os prejuízos somam mais de 14,4 milhões de reais, estimam as empresas de transporte.

Apesar das cenas de terror, o governador Raimundo Colombo (PSD) garante que a situação está sob controle e descartou o apoio da Força Nacional. Em vez disso, negocia com o Ministério da Justiça a transferência de presos de maior periculosidade para penitenciárias federais.

“Não tenho como dizer quando os ataques vão cessar. Mas tudo que está ao nosso alcance foi feito. Intensificamos o policiamento e prendemos 27 criminosos. Alguns deles foram surpreendidos antes dos ataques, com garrafas PET cheias de gasolina. E a PM está fazendo a escolta de ônibus nos itinerários de maior risco”, explica o secretário de Segurança Pública, César Augusto Grubba.

Em novembro passado, foram registrados 68 ataques pelo estado. A PM prendeu 54 suspeitos, 20 deles adolescentes. Três homens foram mortos em confrontos com a polícia. No início da crise, o governo atribuiu os ataques ao que chamou de “efeito Fantástico”. “É uma imitação, uma cópia. No domingo passou na tevê uma matéria sobre esses ataques em São Paulo. Os criminosos a assistem e fazem igual”, afirmou Grubba à época. Não tardou para a simplista avaliação cair por terra.

De acordo com as investigações, as ordens para os atentados de novembro partiram de dentro dos presídios. São atribuídas ao Primeiro Grupo Catarinense (PGC), facção criminosa que surgiu no sistema prisional e controla parcela significativa do varejo de drogas no estado. Embora não possa ser apontada como única motivação, os ataques começaram em represália às torturas sofridas por detentos no presídio de São Pedro de Alcântara, conforme revelou um vídeo gravado pelos próprios internos. Nas imagens, um grupo de carcereiros entra em uma cela e começa a disparar balas de borracha e a desferir violentos golpes contra presos, aparentemente sem qualquer motivo ou reação.

Segundo os relatos das vítimas, a tortura seria um revide à morte da agente penitenciária Deise Fernanda Melo Pereira, de 30 anos. À frente do grupo estaria o diretor do presídio, Carlos Alves, marido da servidora assassinada na porta de sua casa, em 29 de outubro. Após a divulgação do vídeo pela mídia, Alves pediu afastamento.

Por trás da nova onda de violência há outro episódio de tortura contra presos, dessa vez no Presídio Regional de Joinville. Mesmo em férias, João Carlos Buch, juiz corregedor do Sistema Prisional, foi procurado por familiares de detentos em 21 de janeiro. O magistrado fez uma visita-surpresa ao local e conversou com cerca de 180 internos, que confirmaram os relatos de agressões e mostraram as marcas de hematomas e feridas espalhadas pelo corpo. “Solicitei as gravações do circuito interno da cadeia e, para a minha surpresa, elas foram entregues.” As imagens são fortes. No pátio do Pavilhão 4, os presos, desarmados e nus, foram obrigados a permanecer de joelhos e com as mãos entrelaçadas sobre a cabeça, enquanto os agentes penitenciários, pelas costas, disparavam granadas de efeito moral, gás pimenta e tiros de armamento não letal contra os internos.

As imagens vieram a público em 2 de fevereiro, um dia após os primeiros atentados ocorridos em Joinville. Mas o juiz corregedor assegura que determinou imediatamente a instauração de um inquérito policial para apurar os fatos. “Esse lamentável episódio de tortura foi um dos fatores determinantes para a nova onda de atentados. Em novembro do ano passado, Joinville parece ter sido poupada dos ataques que se multiplicaram pelo estado. Agora, tornou-se o principal alvo”, comenta Buch. Dos 60 casos registrados na última semana, 18 ocorreram no município localizado a 180 quilômetros da capital.

A despeito dos casos de agressão, o governo estadual credita os ataques a outros fatores. “A PM intensificou o combate à criminalidade, sobretudo ao tráfico de drogas. Prendemos 14 suspeitos ligados ao assassinato da agente penitenciária Deise Pereira e muitos parecem estar insatisfeitos com as transferências de presos para outras unidades do sistema”, diz Grubba. Mas e a violência contra os presos? “Também contribuiu, mas os responsáveis estão sendo punidos.” Segundo o secretário, o inquérito dos abusos cometidos na penitenciária de São Pedro de Alcântara foi concluído e encaminhado à Justiça. No mais recente episódio, o do presídio em Joinville, 14 funcionários foram afastados.

A despeito das considerações do secretário, o ouvidor nacional de Direitos Humanos, Bruno Renato Teixeira, vai encaminhar um ofício às autoridades estaduais com pedido de explicações. “Em novembro, estive em São Pedro de Alcântara e mediei um acordo com a secretaria de Justiça e o Departamento de Administração Prisional de Santa Catarina. O governo se comprometeu a melhorar os canais de comunicação entre familiares e presos transferidos para outras cidades e punir os agentes envolvidos em casos de tortura”, diz o ouvidor. “Só que o acordo, pelo visto, não foi cumprido.”

O resultado foi desastroso. Os abusos, avalia Guaracy Mingardi, ex-subsecretário nacional de Segurança Pública, reforçaram o poder das facções criminosas dentro dos presídios. “O Estado deveria garantir a proteção e a integridade física do apenado. Se o preso se sentir ameaçado pelos carcereiros, pode buscar essa proteção nas organizações criminosas.”

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