Sociedade

Rádios comunitárias, entre a burocracia e a Justiça

Há mais de vinte anos em busca de regularização, Rádio Coité FM é um símbolo do que enfrentam os veículos de radiodifusão comunitária no Brasil

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São quase vinte anos de luta por uma autorização para funcionar, dois de seus representantes respondendo a processos na Justiça, equipamentos de transmissão confiscados e multas administrativas. Essa é a realidade da Rádio Coité FM, veículo de radiodifusão comunitária do interior da Bahia. 

O caso é emblemático do que ocorre com a maioria das rádios comunitárias no Brasil. Sem autorização de funcionamento, que dependem de uma interminável burocracia, elas atuam às margens da lei.

Em 1998, junto a criação da Lei 9.612/98, que regulamenta o exercício das rádios comunitárias no Brasil, a ONG Movimento de Organização Comunitária (MOC) criou com um projeto de comunicação em determinadas regiões do País. O município de Conceição de Coité, situado 220km ao norte de Salvador, e com aproximadamente 65 mil habitantes, estava incluído.

Os primeiros equipamentos foram financiados e homologados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e possibilitaram o surgimento da rádio. Mas, para que o veículo começasse a transmitir legalmente, seria necessária, também, uma autorização de funcionamento por parte do Ministério das Comunicações (MinCom). 

De 1998 até hoje, foram emitidos três pedidos de autorização de funcionamento: o primeiro, feito ainda em 1998, só teve resposta mais de dez anos depois, em 2009, quando o MinCom alegou que o pedido havia se perdido por conta de coordenadas geográficas supostamente erradas.

O segundo foi enviado ainda em 2009 e posteriormente arquivado sem respostas. O último, emitido em 2013, teve o seu arquivamento anunciado no início do mesmo ano pelo ministério sob a alegação de que a rádio já estava em funcionamento, o que impedia a autorização. 

Em meio a esse processo burocrático, a Rádio Coité FM sofreu três intervenções de agentes da Anatel, que confiscaram seus transmissores e impediram que a rádio se mantivesse erguida.

“O Estado brasileiro promove uma patrulha contra a comunicação comunitária e popular. Além de um marco legal que limita os direitos desse tipo de comunicação, a prática da Anatel e da Polícia Federal são costumeiramente abusivas e desrespeitosas com a democracia”, diz Pedro Martins, representante nacional da Associação Mundial das Rádios Comunitárias (Amarc).

Segundo dados do Ministério Público, estima-se que o número de rádios comunitárias no Brasil esteja entre 10 e 12 mil. Em novembro de 2014 eram apenas 4.724 rádios comunitárias com funcionamento autorizado. Mais da metade delas, portanto, funciona na ilegalidade. “Atualmente, são fechadas, em média, duas rádios comunitárias por dia, cerca de 700 a 800 por ano”, acrescenta Martins.

“Após o primeiro pedido de outorga que fizemos, o processo se tornou uma perseguição, três transmissores já foram levados mesmo com a rádio funcionando somente aos finais de semana”, conta Zacarias de Almeida Silva, radialista, ex-presidente da Associação Rádio Coité Livre FM e mais conhecido pelos ouvintes da comunidade como Piter Júnior.

“Segundo os próprios agentes da Anatel que confiscaram os equipamentos, as visitas aconteciam por conta de denúncias anônimas”, explica.

Dados relativos a 2011, levantados pela Artigo 19, ONG que acompanha o caso Coité e trabalha desde 2006 no Brasil com o propósito de defender a liberdade da comunicação comunitária –, indicam que, em um período de quatro anos, houve um acúmulo de 11.832 processos pendentes em análise no MinCom.

Além dos inúmeros problemas que impossibilitam o exercício da radiodifusão comunitária, seus representantes ainda são condenados criminalmente.

Em março de 2013, Piter Júnior foi condenado pela Justiça Federal da Bahia a dois anos de detenção e a pagar multa de 10 mil reais por ter mantido a rádio em funcionamento sem a autorização devida.

“O que ocorre com a rádio em Coité e com o Píter faz parte de um contexto de políticas públicas muito escassas e criminalizadoras”, explica Camila Marques, advogada da Artigo 19. Como Píter Júnior era réu primário, sua condenação foi transformada em prestação de serviços sociais, mas a multa foi mantida.

Para a advogada, “processar o indivíduo criminalmente significa deixar uma série de marcas, que não só interferem na vida e na liberdade de expressão dessa pessoa, mas também no exercício de liberdade de expressão da sua comunidade, da sociedade como um todo.”

Diferentemente das rádios clandestinas, que são veículos comerciais que atuam sem autorização, as comunitárias caracterizam-se por fins sociais não lucrativos e pela pela baixa potência do transmissor.

“Elas desempenham um papel essencial na construção da informação e do debate nas comunidades em que atuam. Comunidades rurais, indígenas e periféricas, muitas vezes marginalizadas”, afirma Píter.

O radialista conta que, no início, a equipe Coité FM era composta por cinco integrantes e a programação era apenas musical. O projeto tomou corpo só em 2003, quando entrou com uma grade de programas e entrevistas de relevância social.

“O microfone está sempre aberto para o branco, o amarelo, o pardo, para o católico, o evangélico, para o candomblé. Não há nenhuma restrição à sociedade comunitária em si. A política em cidades do interior é muito acirrada e mesmo assim abrimos o microfone sem receio algum.”

Píter também ressalta a dedicação aos grupos historicamente discriminados e aos grupos musicais independentes. “Damos voz a eventos de cunho religioso, sem distinção de credo, a movimentos LGBT e aos grupos musicais que não têm condições de pagar o jabá que as rádios comerciais pedem.”

Camila Marques afirma que a Lei Penal só deve ser utilizada em último caso, quando existe um perigo real para a sociedade. “Quando uma rádio funciona sem autorização, o dano à sociedade é praticamente nulo comparado aos benefícios que o veículo traz par a comunidade”, diz a advogada.

A já citada Lei 9.612/98 traz justamente a restrição de sanções a serem aplicadas caso não haja a autorização. Elas estão previstas no âmbito administrativo, o que implica apenas em medidas como a suspensão de atividades e aplicação de multas.  

Em declaração conjunta emitida em 2007, as Relatorias Especiais da ONU e da OEA frisaram que a diversidade no exercício da radiodifusão comunitária deve estar expressamente reconhecida na lei, como uma forma diferenciada de meios de comunicação, que deve beneficiar-se de procedimentos equitativos.

E o uso do direito penal às atividades de radiodifusão comunitária predomina em decisões do Tribunais Regionais Federais (TRFs). É o que mostra a pesquisa realizada em 2012  pela Artigo 19, na qual foram analisados 657 acórdãos aplicados entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2012. Do total, 54% eram de natureza penal, enquanto que o restante era de natureza civil e administrativa.

O Supremo Tribunal Federal não concorda. Uma vez que a atuação das rádios de baixa potência não oferece riscos ou mesmo a remota possibilidade de causar prejuízos para outros meios de comunicação, as sanções penais devem ser aplicadas somente em casos de rádios clandestinas. Esse entendimento tem sido a jurisprudência do Supremo.

“Se a maior instância jurídica do País considera tal ação irrelevante, por que continuar criminalizando?”, indaga Martins, o representante da Amarc.

Para a advogada da artigo 19, os organismos internacionais e as boas práticas de outros países já demonstraram que sanções penais, no que diz respeito a responsabilizar violações envolvendo a liberdade de expressão, é algo totalmente desproporcional.

A legislação brasileira é considerada muito restritiva se comparada a de outros países sul-americanos. Enquanto o Brasil estabelece alcance máximo de transmissão dos veículos comunitários em apenas 25 watts de potência, a Argentina, Equador e Paraguai não limitam o alcance e a potência de transmissão das suas rádios.

“Somos o único país, junto com Chile e Nicarágua, que criminaliza a operação de rádio em baixa potência – menos de 100 watts. Isso, no Brasil, resulta em cadeia, enquanto nos demais países podem acontecer apenas sanções administrativas”, segundo Pedro Martins.

A limitação de potência no Brasil não é só 25 watts, mas também 1 km de raio no alcance da rádio e 4 km de distância entre uma rádio comunitária e outra. “Limitar ao extremo a atuação das rádios significa não respeitar a diversidade existente entre as comunidades. Uma rádio de uma comunidade localizada no meio da Amazônia não tem condições de funcionar com um alcance limitado desses”, diz o representante da Amarc.

À reportagem, o Ministério das Comunicações disse ter adotado, em 2015, uma série de medidas para desburocratizar o fornecimento das autorizações. “Agora, as rádios comunitárias que concorrem a uma autorização têm de apresentar apenas 7 documentos. Antes, eram 33. Além disso, deixou de ser exigida a apresentação de um projeto técnico da emissora, o que deve dar celeridade à tramitação de documentos.”

O órgão também atribuiu a demorada burocracia à existência de mais de uma rádio interessada em determinada área. Quando isso ocorre, é necessário tentar um acordo entre os veículos requerentes, que normalmente entram em conflitos e, portanto, atrasam a concessão de autorizações.

“A maioria das requerentes não se adequam ao conceito de comunitária, principalmente no que diz respeito à configuração de vínculo político, religioso, comercial e familiar dos dirigentes das entidades com intenções de operar uma rádio comunitária.” O ministério afirma que, se comprovado o vínculo, o processo da entidade concorrente a uma outorga pode ser indeferido.

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