Sociedade

“Para falar de justiça, é preciso falar de direitos humanos”

A advogada Marina Ganzarolli analisa a recente iniciativa da OAB de incluir uma pergunta sobre feminismo em sua prova

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O exame da Ordem dos Advogados do Brasil, realizado no domingo 27, trouxe uma questão sobre direitos humanos das mulheres, algo incomum para a prova que habilita advogados. Apesar disso, a formulação da pergunta e da resposta continham erros conceituais sobre feminismo. O enunciado foi formulado nos seguintes termos:

“Maria é aluna do sexto período do curso de Direito. Por convicção filosófica e política se afirma feminista e é reconhecida como militante de movimentos que denunciam o machismo e afirmam o feminismo como ideologia de gênero.

Após um confronto de ideias com um professor em sala de aula e de chamá-lo de machista, Maria é colocada pelo professor para fora de sala e, posteriormente, o mesmo não lhe dá a oportunidade de fazer a vista de sua prova para um eventual pedido de revisão da correção, o que é um direito previsto no regimento da instituição de ensino.”

O gabarito aponta como correta a resposta em que se afirma que Maria sofreu “privação de direito por convicção político-filosófica”, e que caberia à instituição assegurar à aluna revisão de prova.

Marina Ganzarolli, advogada co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, acredita que a iniciativa da OAB é um reflexo do crescente debate sobre igualdade de gênero na sociedade, e ressalta a necessidade do estudo de direitos humanos e, sem isso, ele ser torna “um profissional incapaz de entender a própria finalidade da sua especialidade”.

CartaCapital: O que acha da iniciativa da OAB de incluir uma pergunta sobre feminismo na prova?

MG: Recebemos com felicidade a iniciativa da OAB de incluir os direitos da mulheres na prova, que é louvável, mas infelizmente a forma como isso foi feito denota a parca formação que existe dentro da nossa classe profissional sobre questões de gênero. 

Quando afirmam que os movimentos feministas endossam a chamada ideologia de gênero, estão usando um termo que não existe, para falar sobre algo que as feministas não reivindicam. A expressão ideologia de gênero foi cunhada especificamente no Brasil pela bancada evangélica e católica, para uso político-religioso. Essa banca busca o retrocesso dos direitos das mulheres, e a repressão da liberdade e da autonomia sexual das mulheres.
É uma expressão que induz ao erro, justamente em um momento de discussão parlamentar sobre a inclusão da questão de gênero no Plano Nacional de Educação. Querem tirar das escolas qualquer discussão sobre sexualidade, e sobre gênero, quando na verdade já existe isso. A gente diz para as meninas que elas só podem dançar ballet e para os homens que eles só podem jogar futebol.
CC: Só o fato de, nessa prova, terem incluído perguntas sobre direitos humanos quando antes não havia nenhuma, pode ser considerado um avanço?

MG:
Se fosse há cinco anos, poderia dizer que a OAB estava sendo inovadora. Hoje, já diria que é um avanço, mas mais do que isso, é um reflexo da movimentação da esfera pública dos últimos anos, desde a #meuprimeiroassédio e a #amigosecreto, até o triste caso do estupro coletivo de uma menina no Rio de Janeiro que, apesar de ser um problema recorrente no Brasil, essa caso específico gerou discussão e debate na esfera pública sobre violência contra a mulher e a cultura do estupro.
CC: O que implica para a sociedade os estudantes de direito terem pouco contato com o estudo de direitos humanos durante a formação?


MG:
O profissional que não consegue compreender dentro do discurso e da prática universitária que a aplicação do seu ensino profissional é uma aplicação que se dá no mundo, nas relações entre as pessoas, é um profissional incapaz de entender a própria finalidade da sua especialidade. 

Sem um conhecimento consolidado de direitos humanos, acredita-se unicamente na lei, quando ela só faz sentido num determinado contexto social, histórico, politico, cultural, regional, de gênero. Aquele profissional que não tem contato com os direitos humanos é insensível a todas as questões que estão além do processo, que estão fora dos autos, mas que nem por isso deixam de determinar como se deve aplicar a lei de forma mais justa.

Ele carece da compreensão mais ampla do que significa não só a lei, mas a justiça. E para falar de justiça é preciso falar de direitos humanos. Lembrando que estamos no quinto país que mais mata mulheres no mundo, e o primeiro que mais mata LGBTs, onde o homicídio de mulheres negras segue crescendo.

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