Sociedade

O show da prisão do bicheiro

A prisão de Anísio Abraão David, patrono da Beija-Flor, mostrou um entrosamento perfeito entre mídia e governo. Todos ganham com este circo

O show. Foto: Gabriel Bonis
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Anísio Abraão David, com 75 anos, famoso patrono da escola de samba Beija-Flor, de Nilópolis, no Grande Rio, e figura conhecida no Jogo do Bicho, foi preso, nesta quarta-feira, dia 11, por policiais civis, em Copacabana.

O motivo de sua prisão é fruto da Operação Dedo de Deus, iniciada em janeiro para prender a cúpula do jogo do bicho no estado.

Anísio, depois de prestar depoimento na sede da Polícia Civil foi conduzido para o hospital penitenciário de Bangu, com arritmia cardíaca – enquanto seus advogados trabalham para soltá-lo através de um habeas corpus.

Quando essa operação Dedo de Deus foi iniciada, a polícia prendeu muita gente. Mas, o que chamou a atenção foi a tentativa de prisão, precisamente, do patrono da Beija-flor, em seu apartamento triplex, de cobertura, na praia de Copacabana.

A ação policial foi “espetaculosa”: nos focos de máquinas fotográficas de todos os jornais e câmeras de TV – a Globo estava lá, sucesso garantido – de um helicóptero da Polícia Civil, homens descendo de rapel, invadiram o imóvel. O dono da casa, porém, não estava lá. Mas valeu o espetáculo. O marketing foi perfeito.

Agora, com a nova prisão do Anísio, todas as autoridades dão entrevistas, aparecem, mostram números e materiais apreendidos.

A outra face do jogo

Este velho repórter, no entanto, fica se perguntando: a quem interessa toda essa exposição?

Claro que não adianta procurar as autoridades envolvidas – todas com posturas de heróis – com as quais só vamos saber o óbvio, já veiculado ao vivo por toda a imprensa.

Para entender alguma coisa, marquei um encontro informal com um sociólogo, um intelectual que pesquisa e estuda profundamente a Segurança Pública em geral a partir de uma ótica humanista.

Perguntei direto:

– Qual a causa dessas ações policiais espetaculares, que, inclusive, chamam a imprensa como testemunha?

Ele responde, também sem rodeios:

– A polícia é exagerada.

Quando quis saber a quem interessa essa visibilidade toda, ele, tranquilo, explica que tudo faz parte de uma grande indústria, que interessa a todos, numa perfeita relação com o circo. Ao Estado, porque mostra sua força e eficiência através dos “atores” pagos por ele, os policiais. De outro lado, estão os marginais, ou os “atores” pagos pelos chefes das gangues de traficantes, milicianos ou bicheiros, entre os quais, por baixo dos panos, também estão policiais.

A sociedade, por sua vez, se sente saciada, já que consegue fantasiar que o crime está, finalmente, sendo combatido.

Aqui, o sociólogo explica como a sociedade se sente ao se deparar com as ações policiais:

– É cultural. Durante a colonização, a elite tinha seus “capitães do mato”, que prendia e punia os escravos fujões. A sociedade via esses personagens, também negros ou mestiços, açoitando, numa autofagia, escravos que tinham a mesma origem étnica, mas em defesa dos interesses de senhores brancos. De diferente, hoje, são os personagens no lugar dos feitores estão os policiais e dos escravos, os infratores.

E continua:

– Na verdade, a sociedade em geral não liga para o crime, mas só o aceita desde que não haja violência. Isso explica a presença de bicheiros e traficantes em favelas. De acordo com ele, morro e asfalto são sistemas estáveis, com boa convivência, até que apareça algum conflito de interesses entre eles, com explosão de violência.

Faz parte desse universo o homem de colarinho branco, os intelectuais em geral, artistas e gente conhecida – e aceita por todos – que usa o tóxico abertamente com aceitação geral e simpatia da população. Ou o trabalhador que faz sua “fezinha” com o apontador de jogo do bicho que fica na esquina mais próxima. Sempre alimentando a indústria do crime que todos criticam.

O sociólogo mostra o paradoxo da sociedade que aceita que “vender droga é crime, mas comprar, não”.

E lembra que essa indústria é composta por muitos setores que vão de porteiros de moradias ou boates, guarda-costas e vigias, até a imprensa, que banalizando o crime, cria celebridades como os jornalistas Datena, ou o roteirista de “Tropa de Elite” Rodrigo Pimentel, todos conhecidíssimos por seus trabalhos policiais.

– Na verdade – continua o estudioso – nem tudo que é legal é moral. E vice-versa.

O jogo do bicho, que teve origem com o Barão de Drummond, que inventou o jogo para sustentar os animais de seu zoológico, vai continuar seus rumos, apesar de algumas autoridades desejarem, realmente, acabar com quadrilhas de crimes organizados. Principalmente o jogo do bicho. O estudioso mesmo acha que, sem querer, foi criado com um marketing maravilhoso, as figuras de animais. Todo mundo adora tudo que envolve animais e crianças.

– Se fossem nomes de pedras, as apostas teriam menos simpatia. É melhor o resultado com o cachorro, do que com uma ametista.

Sem qualquer entusiasmo ele conclui:

– Existe grande demanda dos apostadores. Portanto, a oferta continua sendo ótimo negócio. O jogo é simpático à população. Dentro da polícia, os servidores vão continuar usando seus cargos para trampolins, tentando uma vida melhor e sem tantos riscos. Só um idealista fica na polícia para, depois de dez anos, por exemplo, ganhar menos de cinco salários mínimos.

Já os camarotes das escolas de samba do Sambódromo da Marquês de Sapucaí – supostamente patrocinadas pelos bicheiros cariocas – continuarão misturando o glamour de mulatas e ricaços, com muita bebida, talvez até um toxicozinho para animar mais, e a certeza de que todos serão estampados, mostrando cores, alegria e exuberância, nas páginas das revistas de celebridades.

Anísio Abraão David, com 75 anos, famoso patrono da escola de samba Beija-Flor, de Nilópolis, no Grande Rio, e figura conhecida no Jogo do Bicho, foi preso, nesta quarta-feira, dia 11, por policiais civis, em Copacabana.

O motivo de sua prisão é fruto da Operação Dedo de Deus, iniciada em janeiro para prender a cúpula do jogo do bicho no estado.

Anísio, depois de prestar depoimento na sede da Polícia Civil foi conduzido para o hospital penitenciário de Bangu, com arritmia cardíaca – enquanto seus advogados trabalham para soltá-lo através de um habeas corpus.

Quando essa operação Dedo de Deus foi iniciada, a polícia prendeu muita gente. Mas, o que chamou a atenção foi a tentativa de prisão, precisamente, do patrono da Beija-flor, em seu apartamento triplex, de cobertura, na praia de Copacabana.

A ação policial foi “espetaculosa”: nos focos de máquinas fotográficas de todos os jornais e câmeras de TV – a Globo estava lá, sucesso garantido – de um helicóptero da Polícia Civil, homens descendo de rapel, invadiram o imóvel. O dono da casa, porém, não estava lá. Mas valeu o espetáculo. O marketing foi perfeito.

Agora, com a nova prisão do Anísio, todas as autoridades dão entrevistas, aparecem, mostram números e materiais apreendidos.

A outra face do jogo

Este velho repórter, no entanto, fica se perguntando: a quem interessa toda essa exposição?

Claro que não adianta procurar as autoridades envolvidas – todas com posturas de heróis – com as quais só vamos saber o óbvio, já veiculado ao vivo por toda a imprensa.

Para entender alguma coisa, marquei um encontro informal com um sociólogo, um intelectual que pesquisa e estuda profundamente a Segurança Pública em geral a partir de uma ótica humanista.

Perguntei direto:

– Qual a causa dessas ações policiais espetaculares, que, inclusive, chamam a imprensa como testemunha?

Ele responde, também sem rodeios:

– A polícia é exagerada.

Quando quis saber a quem interessa essa visibilidade toda, ele, tranquilo, explica que tudo faz parte de uma grande indústria, que interessa a todos, numa perfeita relação com o circo. Ao Estado, porque mostra sua força e eficiência através dos “atores” pagos por ele, os policiais. De outro lado, estão os marginais, ou os “atores” pagos pelos chefes das gangues de traficantes, milicianos ou bicheiros, entre os quais, por baixo dos panos, também estão policiais.

A sociedade, por sua vez, se sente saciada, já que consegue fantasiar que o crime está, finalmente, sendo combatido.

Aqui, o sociólogo explica como a sociedade se sente ao se deparar com as ações policiais:

– É cultural. Durante a colonização, a elite tinha seus “capitães do mato”, que prendia e punia os escravos fujões. A sociedade via esses personagens, também negros ou mestiços, açoitando, numa autofagia, escravos que tinham a mesma origem étnica, mas em defesa dos interesses de senhores brancos. De diferente, hoje, são os personagens no lugar dos feitores estão os policiais e dos escravos, os infratores.

E continua:

– Na verdade, a sociedade em geral não liga para o crime, mas só o aceita desde que não haja violência. Isso explica a presença de bicheiros e traficantes em favelas. De acordo com ele, morro e asfalto são sistemas estáveis, com boa convivência, até que apareça algum conflito de interesses entre eles, com explosão de violência.

Faz parte desse universo o homem de colarinho branco, os intelectuais em geral, artistas e gente conhecida – e aceita por todos – que usa o tóxico abertamente com aceitação geral e simpatia da população. Ou o trabalhador que faz sua “fezinha” com o apontador de jogo do bicho que fica na esquina mais próxima. Sempre alimentando a indústria do crime que todos criticam.

O sociólogo mostra o paradoxo da sociedade que aceita que “vender droga é crime, mas comprar, não”.

E lembra que essa indústria é composta por muitos setores que vão de porteiros de moradias ou boates, guarda-costas e vigias, até a imprensa, que banalizando o crime, cria celebridades como os jornalistas Datena, ou o roteirista de “Tropa de Elite” Rodrigo Pimentel, todos conhecidíssimos por seus trabalhos policiais.

– Na verdade – continua o estudioso – nem tudo que é legal é moral. E vice-versa.

O jogo do bicho, que teve origem com o Barão de Drummond, que inventou o jogo para sustentar os animais de seu zoológico, vai continuar seus rumos, apesar de algumas autoridades desejarem, realmente, acabar com quadrilhas de crimes organizados. Principalmente o jogo do bicho. O estudioso mesmo acha que, sem querer, foi criado com um marketing maravilhoso, as figuras de animais. Todo mundo adora tudo que envolve animais e crianças.

– Se fossem nomes de pedras, as apostas teriam menos simpatia. É melhor o resultado com o cachorro, do que com uma ametista.

Sem qualquer entusiasmo ele conclui:

– Existe grande demanda dos apostadores. Portanto, a oferta continua sendo ótimo negócio. O jogo é simpático à população. Dentro da polícia, os servidores vão continuar usando seus cargos para trampolins, tentando uma vida melhor e sem tantos riscos. Só um idealista fica na polícia para, depois de dez anos, por exemplo, ganhar menos de cinco salários mínimos.

Já os camarotes das escolas de samba do Sambódromo da Marquês de Sapucaí – supostamente patrocinadas pelos bicheiros cariocas – continuarão misturando o glamour de mulatas e ricaços, com muita bebida, talvez até um toxicozinho para animar mais, e a certeza de que todos serão estampados, mostrando cores, alegria e exuberância, nas páginas das revistas de celebridades.

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