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O crime compensa

No Brasil, os escravocratas costumam pagar indenizações irrisórias às suas vítimas e raramente são presos

Em comum. Os trabalhadores libertados em Bento Gonçalves (RS) e Pirangi (SP) são oriundos de municípios pobres, com baixo Índice de Desenvolvimento Humano – Imagem: MPT
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Pessoas muito pobres, em sua maioria pretas e pardas, sem acesso a direitos básicos como saneamento, emprego e moradia digna, e oriundas de regiões com baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esse é o perfil dos 207 trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão que prestavam serviço às vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, na Serra Gaúcha, todos vindos do interior da Bahia. A descrição também vale para os 32 homens em situação semelhante resgatados em uma fazenda em ­Pirangi, a 380 quilômetros de São ­Paulo, fornecedora de cana-de-açúcar para a marca Caravelas. Aliciados em cidades pobres de Minas Gerais, eles migraram para o interior paulista na esperança de encontrar um emprego digno, mas, ao chegar lá, foram submetidos a condições degradantes. A dinâmica repete-se em quase todos os casos de escravidão moderna descobertos nas operações do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho.

Em Minas Gerais, estado com a fiscalização mais eficiente do País, é comum ver pessoas em situação de miséria do Vale do Jequitinhonha serem enganadas com promessas de bons salários para trabalhar em locais afastados, onde se tornam presas fáceis dos escravocratas. “A classe social diz muito sobre a escravidão moderna. Não por acaso, os trabalhadores resgatados no Rio Grande do Sul são do interior da Bahia e a maioria dos resgatados em Minas Gerais é do Vale do Jequitinhonha. Vemos também um porcentual alto de vítimas oriundas do interior do Maranhão. Estamos falando de municípios com baixo IDH, onde a fome leva muitos trabalhadores ao desespero”, comenta a advogada e pesquisadora Lívia Miraglia, professora da UFMG e coordenadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da universidade.

Somente 1% dos indiciados é condenado à prisão em regime fechado no País

Segundo a pesquisadora, 92% dos trabalhadores resgatados são homens e a grande maioria dos flagrantes de escravidão moderna ocorreram em atividades agrícolas, carvoarias e na construção civil. No trabalho doméstico, as mulheres são as mais exploradas, representam em torno de 80%, embora haja relatos de homens escravizados também. É o caso de Seu Amadeu, que viveu por 13 anos em condições análogas à escravidão na casa do próprio sobrinho. Ele trabalhava dez horas por dia na lavoura de café e nos serviços domésticos, não tinha acesso a água potável e se alimentava mal, a ponto de estar desnutrido no momento do resgate, em 2015.

“Tinha de acordar de madrugada para trabalhar forçado. Eu não podia me sentar à mesa com eles, recebia comida estragada. Ele me dava murros, socos, pontapés e cabeçadas. Passava mal e ele falava que era manha”, relata o agricultor, em vídeo produzido pela Clínica da UFMG. Diferentemente da grande maioria dos casos de trabalho análogo à escravidão, Seu Amadeu recebeu uma indenização de 300 mil reais. “Mas o que são 300 mil reais diante de 13 anos de escravidão?”, indaga Miraglia, ao criticar as baixas indenizações fixadas pelo Judiciário para as vítimas.

Valena Jacob, pesquisadora e coordenadora da Clínica de Combate ao Trabalho Escravo da UFPA, observa que a legislação brasileira contra o trabalho escravo é robusta e reconhecida mundialmente, mas os magistrados relutam em punir os escravocratas. “Quem é o juiz que está no Justiça do Trabalho e na Justiça Federal? Tem algum homem preto ou mulher preta por ali? A esmagadora maioria é composta de brancos, de classe média alta. Vemos um Judiciário muito distante da realidade brasileira”, lamenta. A advogada destaca ainda que muitas das sentenças são favoráveis aos infratores porque os juízes nem sempre entendem que o trabalho degradante pode ser classificado como análogo ao de escravo.

“O trabalhador está num barracão de lona, no meio da mata, sujeito a todas as intempéries e a animais peçonhentos. Ele está bebendo água imunda do córrego, fazendo alimentação com essa água sem nenhuma higiene, faz suas necessidades no mato, é tratado como bicho. Não está em condição análoga à escravidão?”, indaga Jacob. “Por incrível que pareça, alguns juízes acham que não, porque eles já viviam em situação de miséria antes, sem banheiro em casa, bebendo água do córrego. Logo, os empregadores, os fazendeiros e os grandes proprietários não poderiam ser responsabilizados.”

Com a nova redação aprovada em 2003, o artigo 149 do Código Penal não deixa margem para dúvidas: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” é crime e pode render até oito anos de prisão. Mas a impunidade, nos casos de responsabilização criminal, é quase uma certeza.

Um terço dos indiciados pelo artigo 149 nem sequer vai a julgamento e somente 6,3% dos réus são condenados definitivamente, revela uma pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo da UFMG. Pior, apenas 1% dos acusados é sentenciado a mais de quatro anos de prisão e cumpre pena em regime fechado. Quando a pena é inferior a esse período, o condenado migra para o regime semiaberto e pode pleitear a prestação de serviços comunitários.

Jacob cita o caso de trabalhadores da Fazenda Terra Roxa, no Pará, expulsos do local à bala depois que denunciaram o trabalho degradante a que eram submetidos. As barracas onde eles dormiam foram queimadas, para não deixar rastro do crime, e o proprietário da fazenda acusou as vítimas de serem “loucas”, para não pagar indenização. A Clínica da UFPA levantou todas as provas e denunciou o caso na Corte Interamericana. O proprietário foi condenado a pagar quase 500 mil reais de indenização por dano moral coletivo, além das verbas rescisórias devidas aos trabalhadores. A decisão foi confirmada pelo TRT-8, mas o réu recorreu e o resultado acabou totalmente modificado na segunda instância desse mesmo tribunal.

“Foi a decisão mais absurda que li na vida. Para os desembargadores da turma, seria necessário haver restrição à liberdade dos trabalhadores, por meio de capangas armados, para ser configurado trabalho escravo. Nenhuma verba rescisória foi paga, só três meses de seguro-desemprego”, lamenta Jacob, acrescentando que o Ministério Público Federal entrou com recurso e o caso seguiu para o Tribunal Superior do Trabalho.

Vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Viviane Leite explica que o Judiciário é o último ator a entrar em cena nos casos de trabalho escravo e julga a partir das questões postas em juízo pelo Ministério Público ou pelo trabalhador individualmente. “Enquanto julgador, a gente tem de se manifestar no caso concreto. O trabalho degradante também pode ser praticado sem a caracterização do análogo à escravidão. A gente tem de avaliar o conjunto das provas, não é apenas um fator que determina. Já temos pacificada na doutrina a caracterização das jornadas exaustivas, do sistema de servidão, do alojamento precário, sem condições sanitárias, da alimentação inadequada,­ da dificuldade de acesso, do castigo físico e da privação de liberdade”, diz.

“O que são 300 mil reais diante de 13 anos de escravidão?”, indaga Miraglia, da UFMG

O procurador Italvar Medina, vice-coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Ministério Público do Trabalho, acrescenta que o trabalho de fiscalização também está prejudicado pela escassez de auditores. Desde 2013 não existe concurso e há mais de 1,5 mil cargos vagos. O procurador destaca, ainda, a necessidade de oferecer assistência social para as vítimas, sobretudo nos municípios de menor porte.

“A fome e a brutal desigualdade social deixam as pessoas fragilizadas. Elas são facilmente aliciadas e enganadas mediante falsas promessas para trabalhar em locais distantes das suas residências, onde acabam sendo vítimas de trabalho escravo”, lamenta Medina. “A escravidão moderna e a vulnerabilidade social estão intimamente relacionadas. É indispensável criar políticas públicas efetivas para proteger essas pessoas de exploradores.” •

Publicado na edição n° 1250 de CartaCapital, em 15 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O crime compensa’

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