Sociedade

Dependentes químicos usam drogas em hospital onde deveriam se tratar, denuncia MP

Órgão entrou com ação contra o estado de São Paulo, que desalojou pacientes com surto psicótico para abrigar encaminhados para internação involuntária

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*Atualizado às 18h51 de quinta-feira 11.

Uma das alas de um centro de referência em saúde mental em São Paulo está repleta de usuários de drogas. O cenário, no Centro de Atenção Integrada com Saúde Mental (CAISM) Philippe Pinel, foi observado por especialistas em Psicologia e Assistência Social do Ministério Público paulista em março. O local parou de receber pacientes em surto psicótico para destinar seus 63 leitos a pessoas encaminhadas para internação involuntária pelo Centro de Referência em Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod), uma iniciativa do governo iniciada em 21 de janeiro. Os novos pacientes hoje fazem uso de drogas na instituição e já agrediram membros da equipe médica.

Devido a esse cenário, o órgão anunciou nesta quinta-feira 11 uma ação civil pública contra o estado de São Paulo pedindo a retomada das atividades de origem do CAISM sob a pena de multa de 100 mil reais por ocorrência registrada.

Segundo o MP, o estado não dispõe dos 1.004 leitos anunciados para o tratamento de dependentes químicos e, para atingir esse número, apenas substitui uma população por outra no sistema de saúde. O órgão já começou a verificar se a criação de vagas artificiais também ocorre em outros centros médicos do estado.

Até o início das internações involuntárias, o local atendia apenas pacientes de surtos psicóticos. No começo do ano, a ocupação começou a cair e leitos ficaram ociosos. Até que, em 24 de janeiro, a direção do hospital foi informada que o local passaria a receber dependentes químicos enviados pelo Cratod.

Os novos pacientes chegaram no mesmo dia. Segundo o MP, eles não tinham sequer ficha de anamnese, necessária para saber quais doenças possuíam, como HIV, hepatite ou sífilis.

Criado para ajudar os pacientes a se reconectarem com a sociedade, o CAISM não tem restrições de entrada e saída, ou capacidade de realizar exames complexos. “Os funcionários não sabiam o que fazer porque os dependentes iam conviver com os psicóticos. Uma situação absolutamente inadequada que durou até que todos os psicóticos recebessem alta”, disse Artur Pinto Filho, promotor de Justiça de Direitos Humanos, em coletiva de impresa.

Mesmo com a mudança repentina, a equipe médica recebeu apenas treinamento para contenção de pacientes. Ainda assim, houve casos de agressão contra funcionários. Em uma tentativa de roubar uma televisão do centro, um paciente com HIV feriu um enfermeiro que precisou tirar licença e ser encaminhado para tratamento no Hospital Emílio Ribas, especializado em doenças infecciosas.

Apurou-se também que a direção do Philippe Pinel, por orientação do governo paulista, realiza um tratamento que dura no máximo 30 dias. Uma internação minimamente adequada pra usuários de crack duraria ao menos seis meses, aponta a ação do MP, que chama o programa de internações de “maquiagem”. “Houve o desmantelamento de um serviço de excelência prestado por um corpo de especialistas que criou uma metodologia para tratar essas pessoas, em troca de nada”, afirma Maurício Ribeiro Lopes, promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo.

A ação mostra também que no Pinel, o tempo de internação variava de 7 a 15 dias. Um depoimento de uma adolescente é mais claro: “colocam a gente aqui para dar uma lavada, mas a gente é jogado de novo na lama.”

Aos dependentes químicos internados no centro é oferecida apenas a abstinência como forma de tratamento. Mas como é possível entrar e sair do local, os pacientes têm acesso a drogas. “Encontramos pessoas que estavam ali apenas preenchendo estatísticas, recebendo comida, banho e televisão. Depois de um mês, rua”, diz Lopes.

Os funcionários que prestaram depoimento na ação definiram o local como um “campo de batalha”, segundo Luciana Bergamo, promotora de Justiça da Infância e Juventude. O comportamento peculiar dos pacientes psicóticos, relata, gerou atritos e violência dos dependentes. “Muitos deles se juntaram em guetos de dependentes com lideranças e liderados. Tomaram uma ala do hospital para usar drogas e os profissionais não tinham acesso.” A polícia precisou ser chamada ao local, mas a situação persiste.

Os médicos não sabem informar para onde foram os pacientes psicóticos, mas há suspeitas de que tenham sido enviados ao Pronto Socorro da Barra Funda, onde não teriam tratamento adequado e podem impor riscos aos outros pacientes.

A situação de substituição de vagas vai até o litoral paulista. Érika Pucci, promotora de Justiça de Itanhaém, buscava leitos para dois pacientes psicóticos graves em Santos. Não conseguiu a liberação no Polo de Atenção Intensiva à Saúde Mental Pai Baixada Santista e obteve uma ordem judicial para fazer uma vistoria ao local. Comprovou que havia vagas ociosas bloqueadas para pacientes enviados pelo Cratod.

Por email, o governo paulista demandou que metade das 30 vagas de atendimento para dois milhões de pessoas da Baixada Santista e Vale do Ribeira fossem bloqueadas. A ação não levou em conta critérios de classificação de urgência, mesmo que houvesse 35 pessoas na lista de espera, 13 delas com determinação judicial. “Tinha um paciente que havia tentado matar a esposa, a mãe e a filha, além de atacar vizinhos e tentar se matar. Foi feito um pedido e o juiz autorizou a internação, mas ele teve que ficar horas na porta do polo porque não queriam recebe-lo.”

Governo responde

Em nota, a Secretaria de Saúde de São Paulo disse ser “lamentável” que o MP faça “acusações tão graves” e “volte-se contra um projeto que visa salvar a vida de dependentes de crack”. Segundo o órgão, não há consumo ou tráfico de drogas dentro da unidade e a interpretação do MP “é equivocada”. “A afirmação, além de mentirosa, é ofensiva.”

A Secretaria ainda afirma que o Pinel não atende apenas usuários do Cratod e que não houve prejuízo aos pacientes de outras patologias, pois os casos de internação devido a problemas de saúde mental são cada vez mais raros.

De acordo com o pronunciamento, desde o início do programa mais de 540 dependentes foram encaminhados pelo Cratod para tratamento. A expectativa do governo é ultrapassar 1,3 mil leitos até 2014, com investimentos de 250 milhões de reais.

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