Sociedade

“Brasil encarcera pessoas como animais selvagens”

Especialista alemão defende aumento das penas alternativas e afirma que viés punitivo do Judiciário brasileiro acaba fortalecendo a subcultura criminosa nas prisões

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Por Jean-Philip Struck

O especialista alemão em assuntos carcerários Jörg Stippel afirma que o sistema judicial e carcerário brasileiro é muito mais punitivo do que o da Alemanha, e que tal política acaba tendo um efeito de retroalimentação, aumentando a criminalidade e a possibilidade de massacres como os que ocorreram em prisões da região Norte do Brasil.

“[No Brasil] tudo parece desenhado para isolar as pessoas como se elas fossem animais selvagens”, afirma, em entrevista à DW. Ele também critica a privatização de prisões e afirma que a opinião pública precisa ser convencida de que o “populismo punitivo” não é eficiente no combate à criminalidade.

Doutor em direito pela Universidade de Bremen e ex-membro da agência alemã de cooperação internacional GIZ, Stippel assessorou governos de países como Chile, Libéria, Bolívia e Equador no aprimoramento dos seus sistemas prisional e judiciário. É autor do livro Prisão, direito e política. Atualmente é professor de direito penitenciário na Universidade Central do Chile.

DW Brasil: O que os recentes massacres em prisões no Brasil dizem sobre o sistema carcerário do país?

Jörg Stippel: Mostram uma total falta de controle estatal. A superlotação do sistema chega a 160%. Também mostra que a Justiça brasileira só sabe apostar em mais encarceramento como política. A taxa de aprisionamento no país é de 300 pessoas por 100 mil habitantes. E isso só vem aumentando. Na Alemanha é de apenas 76 por 100 mil. Os brasileiros recorrerem ao encarceramento quatro vezes mais que os alemães, e o problema da criminalidade só piora.

DW: A prisão do Amazonas que registrou 56 mortes era administrada pela iniciativa privada. O massacre imediatamente gerou críticas sobre a privatização de prisões. Qual é sua posição sobre o tema?

JS: Fazer da reclusão um negócio não é a solução. As empresas que acabam administrando as prisões acabam sendo dominadas pela lógica de cortar custos, de lucrar mais. Elas então acabam deteriorando a qualidade dos serviços. E também há o lado perverso da privatização que acaba provocando mais encarceramento. Veja os EUA. Nos anos 80 o país privatizou presídios, e a taxa de encarceramento explodiu.

DW: Como as autoridades podem combater as facções que dominam as prisões e tomar de fato o controle sobre o sistema carcerário?

JS: Veja o caso da Alemanha, onde 80% das sentenças não implicam em perda de liberdade. Isso já evita jogar uma quantidade imensa de pessoas em um ambiente com uma subcultura criminosa própria, que vai endurecer ainda mais esses condenados. É preciso aumentar a aplicação de penas alternativas. Jogar mais pessoas no sistema fortalece as facções, que muitas vezes nasceram dentro das próprias prisões.

Legalmente, a meta das prisões deveria ser a ressocialização. Na Alemanha pelo menos é assim. Na América Latina a meta é apenas punir. No Brasil há uma crítica constante aos indultos (permissão para que os presos passem alguns dias fora da prisão), mas na Alemanha eles são um instrumento extremamente disseminado. Os presídios brasileiros também não oferecem trabalho e educação em quantidade suficiente. O ócio fortalece a subcultura criminosa.

DW: O governo anunciou a construção de novas a prisões para resolver os problemas no sistema carcerários. 

JS: Isso não é uma solução. Se a mesma mentalidade de encarceramento em massa prevalecer, as novas prisões também vão lotar rapidamente. Estão aprisionando muita gente, e não estão aplicando penas alternativas. Na Alemanha há mecanismos disseminados como a aplicação de multas ou, no caso de a pessoa não ter dinheiro, essas multas são convertidas em trabalho. No Brasil o sistema é muito mais punitivo do que na Alemanha e tem o encarceramento como prioridade. E os resultados não poderiam ser mais diferentes do que se vê na Alemanha.

DW: Parte da população brasileira ignorou ou até mesmo celebrou a morte de criminosos em prisões no norte do Brasil, seguindo a opinião de que “bandido bom é bandido morto”. Como o senhor encara essa posição?

JS: É o populismo punitivo. É preciso criar uma opinião pública que entenda que ser mais duro não é eficiente. Na Alemanha já se entendeu que soluções mais drásticas não são uma forma de ressocializar os presos. Só ver o caso de Roland Koch (ex-governador do Estado de Hesse que abandonou a política em 2010). Ele perdeu apoio ao falar no combate ao crime com medidas drásticas.

DW: A natureza do regime carcerário e a organização desse sistema têm influência na criminalidade de um país?

JS: É uma coisa que se retroalimenta. Encarcerar tanta gente em condições deploráveis acaba aumentando a criminalidade. Um sistema judiciário sem um leque de alternativas penais que não o encarceramento acaba gerando mais criminosos. Também é preciso ver como são as prisões brasileiras. Na Alemanha, 30% delas são “abertas”, com segurança mínima, com menos guardas e muitas vezes sem muros. E funciona.

No Brasil, o problema já começa quando a prisão é projetada. A estética dos corredores, as próprias celas. Tudo parece desenhado para isolar as pessoas como se elas fossem animais selvagens e lembrá-las constantemente disso. Até mesmo o tipo de estética de uma prisão diz que tipo de presos estão sendo criados ali. A União Europeia, por exemplo, impõe uma série de princípios para as prisões dos seus estados-membros. As condições são bastante similares com o que se tem na vida exterior. Isso é importante para ressocializar e combater a subcultura criminosa nas cadeias.

DW: O que pode ser feito para melhorar a situação do sistema carcerário brasileiro?

JS: Destaco três medidas. A primeira é diminuir a entrada de pequenos delinquentes no sistema, aumentando o leque de penas alternativas. A segunda é oferecer mais opções de trabalho e estudo dentro das prisões – e baixar progressivamente a pena de quem trabalhar e estudar. A terceira é aumentar os incentivos para ressocialização, como os indultos antes da liberdade condicional.

DW: Que outras lições o sistema carcerário alemão pode dar ao Brasil?

JS: A Alemanha aposta muita mais na ressocialização do que o Brasil. As condições das prisões são mais parecidas com o mundo exterior. É uma forma de combater a subcultura criminosa. Falam que as prisões alemãs parecem hostéis, mas ainda são prisões. Mas lá os presos têm privacidade, tem seu próprio chuveiro, mantém sua individualidade. Eles não usam uniforme e podem vestir suas próprias roupas. Eles também têm muitas opções de trabalho e estudo. Isso também cria um ambiente de trabalho melhor para os agentes penitenciários.

Uma das principais medidas é o planejamento individual da execução penal. Não existe uma fórmula para todos os presos. A administração conversa com eles, vê quais são as suas particularidades e com base nisso planeja como vai ser seu período na prisão. Não há nada disso no Brasil, onde quase não existe estrutura de defensoria pública para os presos ou uma forma de acompanhar a execução de penas.

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