Política

Atomização social

O Estado precisa lidar melhor com a indiferença e não legislar sobre o que não lhe compete

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Há certo tempo, procuro insistir que a indiferença pode ser um afeto político central. Tal afirmação parte de uma constatação, a meu ver, importante. A política das diferenças, que animou as lutas sociais a partir dos anos 70 e que ainda tem importância decisiva no processo de universalização de direitos para grupos vulneráveis e com forte histórico de discriminação (negros, homossexuais, minorias religiosas e linguísticas etc.) não pode ser o horizonte regulador de nossas lutas. É inegável que tais políticas permitiram avanços sociais por meio da consolidação de sociedades multiculturais. No entanto, elas correm o risco de provocar uma atomização social, por fornecer a imagem de uma sociedade fortemente definida por padrões identitários.

Tal atomização faz com que indivíduos se vejam, inicialmente, como portadores de identidades claramente determinadas, que devem ser defendidas e reconhecidas. Como resultado, temos a compreensão de toda noção de “universalismo” como potencialmente totalitária e a transformação da cultura como campo fundamental do político, com a sua exigência da afirmação e visibilidade das diferenças.

Essa estratégia, no entanto, mostrou seus limites nos últimos anos. Não por outra razão, as sociedades multiculturais são assombradas, atualmente, por fortes desejos de exclusão. Pois a política das diferenças nos leva a colocar perguntas como: até que ponto consigo tolerar uma diferença? Ou seja, o outro é visto por mim como potencialmente diferente e intolerável. Não por outra razão, “tolerar” alguém tem o sentido de suportar o mal que sua presença me faz. Quem “tolera” alguém pensa, no fundo: “Melhor que ele não existisse, mas como ele está aí, não há nada mais a fazer, tenho de tolerá-lo”. No limite, as sociedades multiculturais, animadas pela tolerância como afeto político, precisam construir a imagem da diferença intolerável. As mulheres muçulmanas de véu são um bom exemplo.

Mas pode se argumentar que não estaríamos melhor elevando a indiferença a afeto político central. Não por outra razão, o termo traz conotações negativas, como “não me importar com a sorte do outro”, “ser insensível ao que o outro representa”. No entanto, podemos dizer que há duas formas de insensibilidade. Posso ser insensível ao outro por tê-lo expulsado do meu mundo, mas posso também ser insensível ao outro por não vê-lo mais como outro, por estar em uma zona de indiferenciação entre eu e o outro. Neste sentido, minha insensibilidade é, na verdade, a maneira de dizer: “Sua diferença não me toca porque nenhuma diferença me é estranha”.

Do ponto de vista político, trata-se de aplicar uma liberalidade que desloca o cerne do conflito social da afirmação das diferenças culturais e de costumes. Isso não significa voltar atrás, mas pensar um modelo de institucionalização de zonas de indiferenciação.

Em artigo escrito há algumas semanas, dei como exemplo, o problema do casamento. Estamos diante de discussões a respeito da autorização do casamento entre homossexuais. Reivindicação legítima por excluir largas parcelas da população do direito de reconhecimento jurídico de relações afetivas entre sujeitos autônomos. Mas poderíamos aproveitar tal momento para perguntar se o Estado não deveria, pura e simplesmente, parar de legislar sobre a forma da vida afetiva de seus cidadãos.

O contra-argumento clássico consiste em dizer que, ao deixar de legislar sobre a forma do casamento, o Estado desguarnece aqueles que são mais vulneráveis (no caso, as mulheres). Há, no entanto, um problema maior. A despeito de legislar sobre questões de sua alçada (como as relações econômicas no interior da família, o problema da posse dos bens em caso de separação, direito de pensão etc.) o Estado legisla sobre aquilo que não lhe compete (a forma das escolhas afetivas dos sujeitos). O Estado legisla sobre questões de ordem econômica, não sobre questões de ordem afetiva. Mas o casamento não é simplesmente um contrato econômico. Ele é, antes de tudo, o reconhecimento de um vínculo afetivo.

Nesse sentido, nada impede que o Estado legisle sobre as questões estritamente econômicas no casamento e nas uniões estáveis, calando-se sobre a forma dessas uniões (se entre um homem e uma mulher, duas mulheres, duas mulheres e um homem etc.). O mesmo acontece com as leis europeias absurdas no que se refere ao uso do véu. A despeito de defender mulheres da opressão, o Estado entra no guarda-roupa de seus cidadãos. Muito mais correto seria criar leis gerais que simplesmente proibissem alguém de usar vestimentas que não quer. Ou seja, nos dois casos, o Estado moderno precisa aprender a lidar com zonas de indiferenciação: um marco fundamental para políticas pós-identitárias.

Há certo tempo, procuro insistir que a indiferença pode ser um afeto político central. Tal afirmação parte de uma constatação, a meu ver, importante. A política das diferenças, que animou as lutas sociais a partir dos anos 70 e que ainda tem importância decisiva no processo de universalização de direitos para grupos vulneráveis e com forte histórico de discriminação (negros, homossexuais, minorias religiosas e linguísticas etc.) não pode ser o horizonte regulador de nossas lutas. É inegável que tais políticas permitiram avanços sociais por meio da consolidação de sociedades multiculturais. No entanto, elas correm o risco de provocar uma atomização social, por fornecer a imagem de uma sociedade fortemente definida por padrões identitários.

Tal atomização faz com que indivíduos se vejam, inicialmente, como portadores de identidades claramente determinadas, que devem ser defendidas e reconhecidas. Como resultado, temos a compreensão de toda noção de “universalismo” como potencialmente totalitária e a transformação da cultura como campo fundamental do político, com a sua exigência da afirmação e visibilidade das diferenças.

Essa estratégia, no entanto, mostrou seus limites nos últimos anos. Não por outra razão, as sociedades multiculturais são assombradas, atualmente, por fortes desejos de exclusão. Pois a política das diferenças nos leva a colocar perguntas como: até que ponto consigo tolerar uma diferença? Ou seja, o outro é visto por mim como potencialmente diferente e intolerável. Não por outra razão, “tolerar” alguém tem o sentido de suportar o mal que sua presença me faz. Quem “tolera” alguém pensa, no fundo: “Melhor que ele não existisse, mas como ele está aí, não há nada mais a fazer, tenho de tolerá-lo”. No limite, as sociedades multiculturais, animadas pela tolerância como afeto político, precisam construir a imagem da diferença intolerável. As mulheres muçulmanas de véu são um bom exemplo.

Mas pode se argumentar que não estaríamos melhor elevando a indiferença a afeto político central. Não por outra razão, o termo traz conotações negativas, como “não me importar com a sorte do outro”, “ser insensível ao que o outro representa”. No entanto, podemos dizer que há duas formas de insensibilidade. Posso ser insensível ao outro por tê-lo expulsado do meu mundo, mas posso também ser insensível ao outro por não vê-lo mais como outro, por estar em uma zona de indiferenciação entre eu e o outro. Neste sentido, minha insensibilidade é, na verdade, a maneira de dizer: “Sua diferença não me toca porque nenhuma diferença me é estranha”.

Do ponto de vista político, trata-se de aplicar uma liberalidade que desloca o cerne do conflito social da afirmação das diferenças culturais e de costumes. Isso não significa voltar atrás, mas pensar um modelo de institucionalização de zonas de indiferenciação.

Em artigo escrito há algumas semanas, dei como exemplo, o problema do casamento. Estamos diante de discussões a respeito da autorização do casamento entre homossexuais. Reivindicação legítima por excluir largas parcelas da população do direito de reconhecimento jurídico de relações afetivas entre sujeitos autônomos. Mas poderíamos aproveitar tal momento para perguntar se o Estado não deveria, pura e simplesmente, parar de legislar sobre a forma da vida afetiva de seus cidadãos.

O contra-argumento clássico consiste em dizer que, ao deixar de legislar sobre a forma do casamento, o Estado desguarnece aqueles que são mais vulneráveis (no caso, as mulheres). Há, no entanto, um problema maior. A despeito de legislar sobre questões de sua alçada (como as relações econômicas no interior da família, o problema da posse dos bens em caso de separação, direito de pensão etc.) o Estado legisla sobre aquilo que não lhe compete (a forma das escolhas afetivas dos sujeitos). O Estado legisla sobre questões de ordem econômica, não sobre questões de ordem afetiva. Mas o casamento não é simplesmente um contrato econômico. Ele é, antes de tudo, o reconhecimento de um vínculo afetivo.

Nesse sentido, nada impede que o Estado legisle sobre as questões estritamente econômicas no casamento e nas uniões estáveis, calando-se sobre a forma dessas uniões (se entre um homem e uma mulher, duas mulheres, duas mulheres e um homem etc.). O mesmo acontece com as leis europeias absurdas no que se refere ao uso do véu. A despeito de defender mulheres da opressão, o Estado entra no guarda-roupa de seus cidadãos. Muito mais correto seria criar leis gerais que simplesmente proibissem alguém de usar vestimentas que não quer. Ou seja, nos dois casos, o Estado moderno precisa aprender a lidar com zonas de indiferenciação: um marco fundamental para políticas pós-identitárias.

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