Sociedade

As várias razões da felicidade

Quando a saúde e a educação vão bem, só se pode ser muito feliz

Apoie Siga-nos no

Passei três anos escrevendo um romance. Sei muito bem que um romance não se mede pelo número de horas passadas pelo autor na frente do micro, mas passei três anos escrevendo um romance. E hoje estou feliz.

Você, meu infortunado leitor, você deve ter comparecido a todos os aniversários para os quais foi convidado; você deu-se ao incômodo de ver todos os filmes importantes desses três últimos anos e sentiu-se na obrigação de assistir aos principais espetáculos que aconteceram em sua cidade. Pois eu não. Perdi quase tudo porque passei três anos escrevendo um romance.

Mas escrever um romance proporciona um prazer que poucos mortais terão sentido. Chama-se a isso de júbilo da maternidade. Ou da paternidade, tanto faz. O Moacyr Scliar, meu padrinho, uma vez disse que nunca sentiu a dor do parto.

E eu acreditei. Então seguem-se aqueles meses de euforia em que se tem de negociar com as editoras. São meses de muita alegria, pois novas relações são estabelecidas, descobrem-se truques interessantíssimos, os horizontes se alargam.

Negócio fechado, a práxis usual é que o editor recompense o trabalho do autor com um advanced, nome que nos meios editoriais se dá a um adiantamento de direitos autorais. Depois de três anos escrevendo um romance, fiz eu também jus a um advanced.

Dirijo-me ao caixa da editora com a cabeça cheia de contas, angustiado por não saber como gastar tudo no mesmo dia. Mas nós, escritores, somos pessoas muito felizes, pois contamos sempre com a ajuda do governo.

A princípio, quando li o recibo com a dentada do leão, não entendi bem o que se passava. Não demorei muito, contudo, para entender que o Leviatã já passara por ali, aliviando-me da obrigação tediosa de encontrar meios para consumir meu dinheiro. Enfim, eu só tinha passado três anos escrevendo um romance.

No caminho de volta para casa, fui tecendo na imaginação essas teias invisíveis com que se tece uma sociedade, sua economia, suas relações de poder, sua forma de organizar-se. E é por isso que hoje estou feliz.

Agora sei quanto valho para a manutenção da vida em sociedade. Quando percebo que a saúde pública cobre todos os cidadãos (sem filas e com o que há de mais moderno na medicina), que a escola pública proporciona a todas as crianças, de todos os estratos sociais, um ensino de primeira classe, com professores satisfeitos e felizes como eu fui, quando viajava pelas belas estradas do meu país, e vejo que a justiça é pronta e tem os olhos bem abertos, enfim, quando vejo tudo isso e penso que grande parte do que existe depende daquela mordida no meu recibo, que o leão não se acanha em dar, só posso ficar muito, mas muito feliz mesmo.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.