Sociedade

A população de rua merece respeito

Na “cidade linda” de João Dória, um novo decreto reduz drasticamente a proteção explícita àqueles em situação de rua

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É certo que a avaliação de novas gestões deve aguardar o desenvolvimento de suas primeiras ações, como exigem a prudência e o senso de justiça. É importante ter uma ideia mais ampla e concreta daquilo que o novo gestor público efetivamente pretende.

No que se refere à política voltada às pessoas em situação de rua, porém, os sinais iniciais da gestão de João Dória (PSDB) em São Paulo são inequívocos.

O respeito às pessoas e aos seus direitos básicos será suplantado pela “cidade linda”, um espaço que, ao que tudo indica, voltará a privilegiar poucos.

Embora não seja simples nem corriqueiro, o marco zero de qualquer ação pública reside em compreender corretamente seus objetivos.

É preciso entender para quê e para quem são feitas.

Em junho de 2016, à época da edição do decreto que trata da zeladoria urbana e de sua relação com a população em situação de rua (decreto 57069), bem como de todas as demais ações de empregabilidade e de visibilidade voltadas a essa população, tais pontos estavam claros.

No caso do decreto, pressupunha-se a ação de zeladoria como fundamental. Todavia, era evidente que todos os cidadãos lhe eram merecedores, sem nenhuma exceção. Pessoas em situação de rua configuravam-se, por óbvio, como sujeitos de direito. Também têm direito a um ambiente limpo, direito a ir e vir, direito a ter pertences, direito a não sofrer ações ilegais ou abusivas.

No mais, a vulnerabilidade do grupo em questão e a recorrente violação de seus direitos mais básicos exigiam um ato normativo que explicitamente colocasse a população em situação de rua em primeiro plano. Era preciso deixar claro o respeito à autonomia do cidadão e a aposta na mediação como primeira e principal ferramenta em caso de situações-limite.

Finalmente, vale lembrar que o decreto foi construído de forma ampla, coletiva.

Partiu de sugestões da Defensoria Pública e contou com a participação do Ministério Público. Mais importante: ouviu reiteradamente representantes da própria população que vive nas ruas, bem como os componentes do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua (Comitê PopRua).

Aliás, apesar das dificuldades inerentes ao tema, a participação ativa e sistemática marcou a construção de toda esta política, consubstanciada, ao final de 2016, em um plano municipal bastante abrangente.

O novo prefeito foi democraticamente eleito – o que, no Brasil atual, infelizmente deixou de ser pressuposto básico do exercício do poder. Ele e sua equipe têm o direito de alterar o rumo das políticas públicas. Também têm o direito de priorizar ações públicas que lhes pareçam insuficientes, como é o caso da zeladoria.

Não têm direito, porém, de ofender princípios jurídicos básicos, nem direitos fundamentais. Nem de objetificar aqueles que, à partida, são sujeitos de direito.

Já em sua primeira atividade, e seguindo a citada exigência da gestão pública, parte da nova prefeitura deixou claro para quê e para quem as ações serão feitas.

Confundindo zeladoria com segregação, escondeu os moradores da Praça 14 Bis para que motoristas não mais se incomodassem. Pessoas foram transferidas para dentro de uma quadra com grades, que recebeu uma tela opaca, de modo a invisibilizar os já frequentemente invisíveis.

Agora, um novo decreto, instituído em janeiro de 2017, alterou a norma da zeladoria urbana. Infelizmente, o decreto em questão, número 57581, passou ao largo da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania. 

Sem ouvir nenhum outro ator, seja ele a Defensoria, o MP ou o Comitê Poprua, ou mesmo considerar as diretrizes do plano municipal, a prefeitura reduziu drasticamente a proteção explícita à população de rua.

Também decidiu, unilateralmente, que a mediação e a oitiva dos próprios moradores em situações-limite são dispensáveis.

A partir de supressões normativas, a idéia de sujeito de direito enfraqueceu-se.

Itens portáteis de sobrevivência – cobertores, papelões, colchetes etc -, por exemplo, ficaram juridicamente desprotegidos: são agora potencialmente retiráveis pela prefeitura, sem necessidade de consulta prévia ao indivíduo.

Também cabe à prefeitura definir o que é um bem pessoal de alguém: itens “que não revelem valor econômico ou utilitário sob qualquer perspectiva” podem ser descartados de imediato, pouco importando que a pessoa em situação de rua defenda que o bem é seu e tem valor intrínseco.

Ao longo dos últimos anos, não foram poucos os episódios em que compreendi a peculiaridade da relação da população em situação de rua com seus pertences.

Fotos têm ainda mais importância; itens aparentemente inservíveis simbolizam memórias e lembranças vitais. Só o próprio cidadão, enquanto sujeito de direito, é capaz de valorar o que de fato lhe importa. Vale lembrar que ele é sujeito, não objeto.

Em suma, a situação normativa criada peca no símbolo, na forma e no conteúdo.

No símbolo, ao sinalizar que um grupo tão vulnerável precisa de menos – e não de mais – garantias legais, e que a mediação não é ferramenta relevante.

Na forma, ao sinalizar que a participação efetiva na construção das políticas pode ser suprimida por decisões puramente tecnocráticas.

No conteúdo, ao sinalizar um desenho normativo que beira a irracionalidade.

Cidadãos têm a casa como asilo inviolável, incomodada apenas com ordem judicial e durante o dia; pessoas em situação de rua, a quem carece exatamente a moradia, podem ser incomodados a qualquer hora e a qualquer tempo, bastando, pelo novo decreto, “justificativa posterior”.

Cidadãos têm direito à posse e à propriedade constitucionalmente garantidos; pessoas em situação de rua tiveram seu direito à posse singelamente suprimido do decreto – como se isso fosse legalmente possível -, e a propriedade de seus bens pode depender de avaliação de sua utilidade por outrem.

E por aí vai.

Sabe-se que ações de zeladoria não são de fácil execução. Também é sabido que avanços efetivos na política voltada à população em situação de rua dependem de uma dificílima articulação entre ações de habitação, saúde, trabalho e assistência social.

Não se nega a necessidade de ajustes e melhorias nas respostas estatais até então vigentes. Não se nega a legitimidade de novas abordagens. Todavia, as respostas não parecem passar pela objetificação, nem pela afronta a direitos. Não é política adequada, nem caminho ético e legalmente válido.

A população em situação de rua merece respeito.

* Felipe de Paula é doutor em Direito pela USP, advogado e gestor público. Ocupou a função de Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, durante a gestão de Fernando Haddad (PT), e de Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (2010).

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