Sociedade

A luta continua

Vivo no mundo pelo qual lutei. É o ideal? Não sei, mas temos liberdade e, só isso, me parece muito

Copacabana. Foto: Tânia Rego / ABr
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Num domingo chuvoso destes, convidei meu neto Victor, de 16 anos, para ir comigo ver os “Impressionistas” do Museu D’Orsay, rica exposição, gratuita, diga-se de passagem – que está no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Entramos na longa fila. Victor estava excitado diante da ideia de ver tantos pintores sobre os quais seu pai, também artista plástico, fala muito.

Conversávamos esperando a fila caminhar, quando, com capa de chuva, se aproxima um jovem e, meio constrangido, me diz que senhores acima de 65 anos tinham liberdade de entrar com um acompanhante, sem ter que entrar em fila.

Enquanto meu neto comemorava a vantagem de ter um avô, caí na real: mais que 65 anos, eu tenho aparência dos meus 68 anos. Entramos na passagem preferencial e, passamos, com funcionários gentis a nos orientar, diretamente para dentro da mostra.

Enquanto Victor se empolgava diante de quadros que só conhecia por fotos, eu me lembrava de uma moça que, cerca de 10 anos atrás, se levantou e ofereceu seu lugar no metrô. Fui delicadíssimo com ela. Agradeci com doçura, disse que estava bem em pé – mentira, sentia dor numa perna. Honestamente, apesar do sorriso carinhoso, preferia dar um murro nela. Por que não me chamou para um choppe, convite apropriado para um cavalheiro bem posto como eu?

Preferi a recepcionista de um museu de Barcelona que exigiu identidade para me deixar passar com meia entrada. Eu feliz, provei que, que na ápoca, tinha 65 anos.

Voltando a meu neto, vimos a mostra e, aproveitando seu estado de espírito, caminhei com ele, sob chuva mesmo, pelas velhas e históricas ruas do centro desta cidade que amo. Saímos pelo Arco dos Telles, em plena Praça XV. Comentei sobre a Igreja do Carmo, ali do lado, antiga catedral do Rio, então sede do Governo de Portugal, onde foram coroados D. João VI, rei, e depois seu filho, e neto, respectivamente Pedro I e Pedro II, imperadores do Brasil.

Atravessamos a praça e fomos para o Paço Imperial, onde foi assinada a Lei Áurea. Até aproveitei para tomar um vinho, enquanto Victor comeu um sanduíche.

Nesse ponto, já tinha me esquecido que tinha aparência de um senhor com mais de 65 anos. Vendo que meu neto está curtindo o passeio, convidei-o para um choppe no Bar Luiz, na Rua da Carioca. Passamos pela Colombo, que estava fechada, o que não me aborreceu, porque Victor conhece a confeitaria. No velho Bar Luiz, contei para o adolescente que amo, as histórias da guerra – antes da II Guerra, o bar se chamava Adolfo, e por isso, quase foi depredado quando o Brasil entrou no conflito.

Sentados, eu agora pouco mais que adolescente, pedi meu choppe, perfeitamente bem “tirado, na pressão”, como poucos lugares sabem oferecer. Victor saboreou uns frios da casa, que é, até hoje, impecável em embutidos ou qualquer prato da culinária alemã. Já em casa, à noite, fiquei refletindo sobre o dia, em companhia de meu jovem neto. Pelos locais onde passamos e ele ouvindo histórias do passado.

Senti orgulho de, na minha juventude, e na vida adulta, ter lutado por um mundo melhor, este que vivemos hoje. Repassei minha vida, nas décadas de 60 até agora, sempre batalhando por uma sociedade melhor – e trabalhando para sustentar com dignidade minha família.

Outras colunas de Edgard Catoira:

De qualquer jeito, vendo amigos caírem pelo caminho – estou me referindo principalmente aos anos da ditadura militar – vivo no mundo pelo qual lutei. É o ideal? Não sei, mas temos liberdade e, só isso, me parece muito. A política que busquei, evidentemente, como fruto de ideologia, é utópica. Daí eu não achar que chegamos onde minha ansiedade juvenil desejava. Vejo também que meu idealismo começa a perder horizontes. Políticos reconhecidamente ineficientes e até corruptos são eleitos e reeleitos. E não por gente de minha idade mas, a grande maioria, pelos mais novos. Por esse povo mais novo pelo qual desejo um mundo mais justo.

Daí, surge a pergunta: estarei, ainda, lutando pelos ideias dos mais jovens? Será que o mundo que desejo para eles é o que eles querem? Mesmo pensando exclusivamente no meu Rio de Janeiro? Mas, em termos de Rio, conheço gente que pode nos aproximar mais do que hoje desejo não para meus contemporâneos, mas para nossos descendentes: um mundo mais justo. E vejo, aqui, políticos do Rio, como Freixo, Molon, Andrea Gouvêa, Sonia Rabello, Eliomar Coelho – ou o Duda Bandeira, novo presidente do Flamengo –, para citar os poucos que respeito, também pensando, com seriedade e honestidade, no futuro de nossos jovens.

Sentado num banco do calçadão antes de escrever este texto, olhando o mar, o céu, as montanhas que contornam esta maravilhosa praia da Copacabana, onde vivo, lembro do “Tejo”, de Fernando Pessoa, rio que vem da Espanha e deságua no Atlântico, em Lisboa, e dá a sensação, ou ilusão, de riquezas e aventuras no que está em frente. Diferente do rio que passa pela aldeia onde nasceu: “quem está ao pé dele, está apenas ao pé dele”.

Feliz, estou só ao pé de Copacabana, a praia cobiçada pelo mundo. Tenho muito.

E nossos descendentes? A eles, deixo minha praia. Sem lutas e sem glórias.

Quanto a lutas pelo futuro, limitado já pelo tempo que vivi, prefiro pensar como Saramago, na “Caverna”: quando não tiver mais nada para oferecer à vida, comece a sair dela.

Ainda tenho algo a dar pela vida. Por isso, continuo a usar este espaço, um dos poucos que conheço que me animam a lutar.

Num domingo chuvoso destes, convidei meu neto Victor, de 16 anos, para ir comigo ver os “Impressionistas” do Museu D’Orsay, rica exposição, gratuita, diga-se de passagem – que está no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Entramos na longa fila. Victor estava excitado diante da ideia de ver tantos pintores sobre os quais seu pai, também artista plástico, fala muito.

Conversávamos esperando a fila caminhar, quando, com capa de chuva, se aproxima um jovem e, meio constrangido, me diz que senhores acima de 65 anos tinham liberdade de entrar com um acompanhante, sem ter que entrar em fila.

Enquanto meu neto comemorava a vantagem de ter um avô, caí na real: mais que 65 anos, eu tenho aparência dos meus 68 anos. Entramos na passagem preferencial e, passamos, com funcionários gentis a nos orientar, diretamente para dentro da mostra.

Enquanto Victor se empolgava diante de quadros que só conhecia por fotos, eu me lembrava de uma moça que, cerca de 10 anos atrás, se levantou e ofereceu seu lugar no metrô. Fui delicadíssimo com ela. Agradeci com doçura, disse que estava bem em pé – mentira, sentia dor numa perna. Honestamente, apesar do sorriso carinhoso, preferia dar um murro nela. Por que não me chamou para um choppe, convite apropriado para um cavalheiro bem posto como eu?

Preferi a recepcionista de um museu de Barcelona que exigiu identidade para me deixar passar com meia entrada. Eu feliz, provei que, que na ápoca, tinha 65 anos.

Voltando a meu neto, vimos a mostra e, aproveitando seu estado de espírito, caminhei com ele, sob chuva mesmo, pelas velhas e históricas ruas do centro desta cidade que amo. Saímos pelo Arco dos Telles, em plena Praça XV. Comentei sobre a Igreja do Carmo, ali do lado, antiga catedral do Rio, então sede do Governo de Portugal, onde foram coroados D. João VI, rei, e depois seu filho, e neto, respectivamente Pedro I e Pedro II, imperadores do Brasil.

Atravessamos a praça e fomos para o Paço Imperial, onde foi assinada a Lei Áurea. Até aproveitei para tomar um vinho, enquanto Victor comeu um sanduíche.

Nesse ponto, já tinha me esquecido que tinha aparência de um senhor com mais de 65 anos. Vendo que meu neto está curtindo o passeio, convidei-o para um choppe no Bar Luiz, na Rua da Carioca. Passamos pela Colombo, que estava fechada, o que não me aborreceu, porque Victor conhece a confeitaria. No velho Bar Luiz, contei para o adolescente que amo, as histórias da guerra – antes da II Guerra, o bar se chamava Adolfo, e por isso, quase foi depredado quando o Brasil entrou no conflito.

Sentados, eu agora pouco mais que adolescente, pedi meu choppe, perfeitamente bem “tirado, na pressão”, como poucos lugares sabem oferecer. Victor saboreou uns frios da casa, que é, até hoje, impecável em embutidos ou qualquer prato da culinária alemã. Já em casa, à noite, fiquei refletindo sobre o dia, em companhia de meu jovem neto. Pelos locais onde passamos e ele ouvindo histórias do passado.

Senti orgulho de, na minha juventude, e na vida adulta, ter lutado por um mundo melhor, este que vivemos hoje. Repassei minha vida, nas décadas de 60 até agora, sempre batalhando por uma sociedade melhor – e trabalhando para sustentar com dignidade minha família.

Outras colunas de Edgard Catoira:

De qualquer jeito, vendo amigos caírem pelo caminho – estou me referindo principalmente aos anos da ditadura militar – vivo no mundo pelo qual lutei. É o ideal? Não sei, mas temos liberdade e, só isso, me parece muito. A política que busquei, evidentemente, como fruto de ideologia, é utópica. Daí eu não achar que chegamos onde minha ansiedade juvenil desejava. Vejo também que meu idealismo começa a perder horizontes. Políticos reconhecidamente ineficientes e até corruptos são eleitos e reeleitos. E não por gente de minha idade mas, a grande maioria, pelos mais novos. Por esse povo mais novo pelo qual desejo um mundo mais justo.

Daí, surge a pergunta: estarei, ainda, lutando pelos ideias dos mais jovens? Será que o mundo que desejo para eles é o que eles querem? Mesmo pensando exclusivamente no meu Rio de Janeiro? Mas, em termos de Rio, conheço gente que pode nos aproximar mais do que hoje desejo não para meus contemporâneos, mas para nossos descendentes: um mundo mais justo. E vejo, aqui, políticos do Rio, como Freixo, Molon, Andrea Gouvêa, Sonia Rabello, Eliomar Coelho – ou o Duda Bandeira, novo presidente do Flamengo –, para citar os poucos que respeito, também pensando, com seriedade e honestidade, no futuro de nossos jovens.

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Feliz, estou só ao pé de Copacabana, a praia cobiçada pelo mundo. Tenho muito.

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