Sociedade

Lei de Organizações Criminosas, arma contra os movimentos sociais

Para especialistas, norma que recentemente foi utilizada para indiciar integrantes do MST e manifestantes secundaristas abre precedentes perigosos

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No último dia 4, trabalhador rural Ronair José de Lima foi morto em uma emboscada no Complexo Divino Pai Eterno, em São Félix do Xingu (PA). Presidente da Associação Terra Nossa e ativista da reforma agrária, Lima sofria ameaças constantes desde fevereiro, a maioria realizada por pessoas que se diziam proprietários do complexo.

O assassinato provocou uma manifestação pública de Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão. Em uma nota de pesar, Duprat afirmou que a violência no campo é potencializada pela impunidade, pela paralisia da reforma agrária e também pela criminalização dos movimentos sociais. 

“A imputação a seus integrantes [de movimentos sociais] de integrarem “organização criminosa”, pelo simples fato de pertencerem ou dirigirem algum movimento, é um desvirtuamento e uma falsificação da Lei 12.850, além de afronta ao princípio democrático”, disse Duprat na nota.

A legislação à qual Duprat se referia é a chamada lei das Organizações Criminosas. Aprovada há pouco mais de dois anos, a lei 12.850/2013 é tida como muito importante por diversos juristas. Graças à ela, as autoridades ganharam uma série de ferramentas para investigar crimes, como a delação premiada, central na Operação Lava Jato. A lei, entretanto, tem um efeito colateral considerável. Cada vez mais, é usada para incriminar integrantes de movimentos sociais, como afirmou Duprat. 

Um caso simbólico ocorreu recentemente, em Porto Alegre, por obra do delegado Omar Abud. Em julho, ele indiciou oito estudantes secundaristas, o jornalista Matheus Chaparini, do Jornal Já, e o cineasta Kevin D’Arc por associação criminosa e outros três crimes. O inquérito policial foi aberto por causa de uma ocupação da Secretaria da Fazenda no Rio Grande do Sul em junho deste ano, em meio a um protesto por melhorias na educação.

O Ministério Público ainda vai analisar se oferece ou não a denúncia, mas o caso chamou a atenção da Procuradoria da República do Rio Grande do Sul. Em nota, Fabiano de Moraes, procurador regional dos Direitos do Cidadão, classificou o episódio como exemplo de “intolerável criminalização dos movimentos sociais” que revela “quão preocupante é a situação dos direitos individuais e sociais”.

A CartaCapital, Moraes afirma que a manifestação em Porto Alegre era pacífica e fazia parte de uma série de ocupações de escolas por secundaristas que pediam melhorias no ensino. “Eles exigiam mudanças, os seus direitos, e isso passa bem longe de ser uma organização criminosa. Fica clara a aplicação errônea da lei nesse caso”, disse.

Para Heloisa Estellita, professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas, a lei que subsidia decisões como a do delegado Omar Abud tem problemas. Estellita avalia que no capítulo específico sobre as organizações criminosas a lei é “expansiva, perigosa, e de uma severidade desproporcional”. Para ela, uma reforma no Código Penal teria sido suficiente para melhorar o combate ao crime organizado. “Isso evitaria criar algumas situações piores que o uso dessa lei gerou”.

Ainda assim, a professora da FGV entende que a lei só pode levar à criminalização de movimentos político-sociais quando interpretada fora do sistema jurídico brasileiro. “Ela tem de ser interpretada dentro dos limites constitucionais que protegem a liberdade de manifestação de pensamento, de opções políticas e religiosas etc”, diz. “Pode ter um promotor, um delegado, um juiz que interpreta esse dispositivo fora do sistema? Pode. O jeito é corrigir isso via Poder Judiciário”.

Estellita lembra que o Supremo Tribunal Federal discutiu o direito de manifestações em 2011, quando debateu a legalidade das chamadas “marchas da maconha“. Naquele julgamento, prevaleceu a ideia de que a liberdade de expressão e de manifestação somente pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais e iminentes.

Tramita no Congresso um projeto que pode mitigar a criminalização de movimentos sociais com base na lei 12.850/2013. O deputado Patrus Ananias (PT-MG) e mais seis parlamentares têm uma proposta que acrescenta ao artigo 1º um parágrafo que torna suas regras inaplicáveis “à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”.

Estellita, da FGV, julga importante que essa proposta seja aprovada. “Juridicamente é uma alteração desnecessária, mas, na prática, é uma alteração importante e tem um efeito educativo porque alguns órgãos não cumprem as regras”, diz. “Isso também aconteceu no caso de o STF precisar fazer uma súmula vinculante sobre o uso de algema. É óbvio que só pode usar algema em estado de necessidade, mas nem todo mundo cumpre”.

O chefe do departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP, Sérgio Salomão Shecaira, explica que a redação de parte dessa lei é de tipo aberto, ou seja, não faz uma descrição muito específica da conduta que se pretende incriminar. Isso, segundo ele, aumenta o risco de perder segurança jurídica ao permitir múltiplas interpretações.

“Isto acontece quando diz na lei que se quatro ou mais pessoas se associarem ‘com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza’, eles são uma organização criminosa. Isso pode ser um simples roubo ou uma ocupação de terra”, diz.

As ocupações de terra, de fato, têm sido enquadradas nesse tipo penal. Em 5 de agosto, um dia depois do assassinato de um trabalhador rural no interior do Pará, o Ministério Público de Goiás pediu a prisão de quatro integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra com base nessa lei. Na decisão da Justiça, consta que eles são líderes do movimento que ocupou duas fazendas de Santa Helena de Goiás. Segundo o MST, a Lei de Organizações Criminosas nunca tinha sido usada contra o grupo até então.

Shecaira, da USP, afirma que o instrumento penal não tem por objetivo atingir os movimentos sociais, mas isso depende da forma como ele é utilizado. “Não precisava de nenhuma lei de organizações criminosas para punir os movimentos sociais, já existem elementos para punir pelas condutas eventualmente exacerbadas que eles tenham”. Contudo, Shecaira acredita que essa nova lei traz uma referência incriminadora a mais. “Nesse sentido, isso pode facilitar”. 

Estellita aponta outro aspecto da lei que é falho. Em tese, o maior dano à sociedade é feito por meio do crime originário que, portanto, deveria ter a maior pena. Com a lei 12.850 isso pode não ocorrer. 

A professora explica que se alguém for acusado de praticar crimes tributários a pena é de dois a cinco anos. Mas se também for integrante de uma organização criminosa destinada a praticar crimes tributários, cuja pena é de três a oito anos, chega-se à situação paradoxal de que praticar os crimes que de fato lesam os bens jurídicos, os interesses do Estado, têm uma pena menor do que o fato de você integrar a organização dita criminosa. “As alterações legislativas no Brasil só vêm para aumentar as penas e entupir o sistema carcerário brasileiro, sem a menor atenção com relação de proporcionalidade”, diz.

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