Sociedade

A cultura do ódio e a chacina de Campinas

Sidnei é a expressão sociológica do que o Brasil se transformou

Apoie Siga-nos no

Como professor de psicopatologia, sei que é questionável fazer afirmações categóricas sem examinar pessoalmente um paciente. Mas no caso da recente chacina a sangue frio de 12 indivíduos em Campinas arrisco-me a dizer algumas coisas, pois envolvem reflexões necessárias e urgentes sobre o adoecimento de nossa sociedade.  

Em primeiro lugar, chama a atenção a ausência de qualquer alteração psicopatológica óbvia na carta deixada pelo assassino. Em termos formais, não se verificam alterações de pensamento, conteúdo delirante, referências a alterações de senso-percepção, desorganização formal da escrita ou linguagem. Nada, enfim, que possa sugerir um quadro psicótico agudo ou crônico.

Por sua vez, descartando uma alteração de consciência, observa-se um discurso coerente e bem organizado, típico de alguém com formação cultural relativamente elevada, que busca desenvolver, com argumentos lógicos, uma justificativa para seu ato.  

Sidnei justifica a chacina múltipla que cometeu, inclusive do filho e da ex-mulher, seguida de suicídio, como um ato de heroísmo exemplar contra as leis de “um paizeco feito para bandidos e bandidas”.

A carta é raivosa, mas não irracional. Na tipologia de suicídios proposta por Durkheim, podemos falar de um suicídio de tipo altruístico. Sidnei seria uma espécie de homem-bomba brasileiro. Um vingador solitário de filme norte-americano, acertando as contas com as injustiças que sofreu, oferecendo um exemplo para a sociedade. 

Dois temas percorrem a carta de alto a baixo: a misoginia e o ódio. A palavra “vadia” é repetida dezenas de vezes, como sinônimo de mulher. O aparente enquadramento de Sidnei na lei Maria da Penha e sua proibição de ver o filho, segundo ele, por imposição da ex-mulher, teriam sido os elementos que detonaram a sua “loucura”.

Para Sidnei, “na verdade, somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar”. Mas o que nele aflorou, ao invés de loucura, foi o ódio passional de tipo fascista. 

Um outro aspecto chama a atenção na carta de Sidnei. Ela nos parece estranhamente familiar. Na realidade, é. A carta é um apanhado de quase todos os lugares comuns do pensamento de extrema-direita que tomou conta do Brasil nos últimos anos. A raiva, a misoginia, o horror ao feminismo, o desprezo à democracia, o discurso fanático anticorrupção, o ódio aos direitos humanos, ao Estado, a intolerância social, a glorificação da violência e dos militares. Está tudo lá.

É como se ouvíssemos o discurso de algum coxinha exaltado numa mesa de bar, como se assistíssemos a um programa policial na TV Bandeirantes, como se ouvíssemos um comentarista da rádio Jovem Pan, como se lêssemos os comentários postados na redes sociais sobre os mais diferentes assuntos.

O pensamento de Sidnei, em seu conteúdo, é uma expressão sociológica clara do que nos transformamos, graças à ação de grupos de extrema-direita, visando seus interesses políticos, e ao trabalho diário da mídia.

Mais um trecho da carta: “Não tenho medo de ficar preso, além do que eu, preso, vou ter 3 alimentações completas, banhos de sol, salário, não precisarei acordar cedo pra trabalhar, vou ter representantes dos direitos humanos puxando meu saco, também não vou perder 5 meses do meu salário em impostos”.

Ao pensar sobre si mesmo na cadeia, Sidnei se atribui todos os jargões de extrema-direita sobre bandidos em penitenciárias (vagabundo, recebe salário, come 3 vezes ao dia, tem defensores dos direitos humanos etc). Vida boa, enfim. Termina referindo-se a uma ideia do ultraliberalismo norte-americano que também predomina no pensamento de extrema-direita que nos invadiu: ele será feliz porque não pagará mais impostos. 

Noutro trecho, dirigido ao filho, Sidnei escreve: “Morto também já estou, porque não posso ficar contigo, ver você crescer, desfrutar a vida contigo por causa de um sistema feminista e um bando de loucas”. Aqui, uma pretensa declaração de amor paterno encontra seu grande obstáculo: são elas, “as loucas feministas”, outra ideia onipresente no pensamento de extrema-direita brasileiro.

Mais adiante, Sidnei nega sua misoginia. “Filho, não sou machista e não tenho raiva das mulheres”, mas acrescenta: “tenho raiva das vadias que se proliferam e muito, a cada dia se beneficiando da lei Vadia da Penha”.

A ideia de um país dominado pela corrupção que sustenta os políticos, o que causa todos os seus males e mortes (o clichê dos clichês do fascismo brasileiro) surge no trecho a seguir, ao lado de uma referência aos “bandidos que matam por um celular”: “No Brasil, crianças adquirem microcefalia e morrem por corrupção, policiais e bombeiros morrem dignamente na profissão, jovens de bem (dois sexos) morrem por celulares, tênis, selfies e por ídolos, jornalistas morrem por amor à profissão, muitas pessoas pobres morrem no chão dos hospitais para manter políticos na riqueza e no poder”.

O ódio misógino sequer poupa uma citação ao impeachment da presidente “vadia” Dilma Rousseff, criticando, pelo viés da extrema-direita, a preservação de seus direitos políticos: “Infelizmente muitas vadias fazem tudo de errado para distanciar os filhos dos pais e elas conseguem, pois as leis deste paizeco são para bandidos e bandidas. A justiça brasileira é igual ao Lewandowski (um marginal que limpou a bunda com a constituição no dia que tirou outra vadia do poder), um lixo!”

Quem costuma percorrer os meandros das publicações de direita das redes sociais sabe que esta expressão – “É um lixo!” – é a maior ofensa possível. É outro jargão muito usado pela extrema-direita. No trecho a seguir, Sidnei exalta o caráter exemplar de seu ato, definindo-se como o herói de uma classe: “Eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo direito de ser pai! Na verdade somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar! A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias. As mulheres, sim, tem medo de morrer com pouca idade”.

A violência do seu ato foi, sobretudo, uma ameaça com endereço certo. As feministas que se cuidem. Assim, a violência extrema é apresentada como um recurso legítimo, quando cometida por alguém verdadeiramente corajoso, honrado e ultrajado. Esta “violência legítima” contra os diversos “lixos” que infestam o País (feministas, bandidos, corruptos, petistas, gays) é moeda corrente no pensamento de extrema-direita que prolifera entre nós.

Esta talvez seja a fórmula mais repetida dentre todas. Só a morte nos libertará dos lixos. É fácil, por exemplo, encontrar postagens nas redes sociais dizendo que o erro da ditadura foi só ter torturado, e não ter matado todos os comunistas enquanto era possível. A evidência que se coloca diante desta tragédia é o fato de ela pertencer não apenas ao homem que a cometeu e às suas pobres vítimas, mas a todos nós. Ela é o produto de um país.

Há pelo menos uma década este pensamento doentio, intolerante, misógino, homofóbico, anticomunista, anti-humanista, contrário aos direitos humanos, pregador da barbárie e da violência viceja entre nós. Era uma questão de tempo para um fato como este acontecer, dentro desse caldo de cultura.

O ódio, a agressão ao diferente, o ideário fascista, a ruptura dos padrões mínimos de civilidade, a morte como solução estão impregnados em todas as relações sociais e espaços públicos de discussão no Brasil. E também na carta de Sidnei.

Seu ato monstruoso alimentou-se do ideário fascista existente entre nós. Significativa parte da elite sócio-política e da mídia tem estimulado este pensamento, pois foi-lhes útil para chegar ao poder pela derrubada de um governo legitimamente eleito, para desmoralizar a esquerda e para obter o que antes não tinham no Brasil: credibilidade social. Diante de tamanho horror e irresponsabilidade, deixo no ar uma pergunta simples: até quando? 

*É psiquiatra e psicanalista

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo