Sociedade

A alegoria do turbante no Carnaval de racismo

Por que insistimos em disputar o que é ou não racismo e machismo justamente com as pessoas que sofrem essas discriminações?

Indústria fashionista se apropriou do turbante em desfiles Indústria fashionista se apropriou do turbante em desfiles
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“É Carnaval, é a doce ilusão, é promessa de vida no meu coração.”

Assim começa um dos mais conhecidos sambas-enredo da Mangueira, de 1992, quando a escola homenageou Jobim. Mas o tema deste texto não é Tom, nem a Estação Primeira ou sequer o Carnaval, e se menciono a efeméride é tão somente por oportunismo sazonal, como metalinguagem a partir da qual viso direcionar este argumento.

Alegorias, no contexto carnavalesco, são representações feitas por meio de adereços ou ornamentações que servem para ilustrar os enredos das escolas de samba.

Em 2007, o tema da Unidos da Tijuca foi fotografia, e um dos carros alegóricos da escola trazia a figura de um diabo, que certos povos acreditam ser ladrão de almas fotografadas.

O carro pegou fogo em pleno desfile das campeãs daquele ano, e a interpretação supersticiosa do incêndio sugere que foi a representação do diabo o que gerou o inferno temporário.

Mas nem o fogo assegura que o diabo representado seja de fato um diabo, e não deixa de ser uma coincidência irônica que a falha mecânica que o causou tenha acontecido justamente naquele carro. Se o incêndio tivesse ocorrido em qualquer outro, a interpretação supersticiosa talvez nem existisse, visto que o que a engendrou foi o signo “diabo”.

Escrevi sobre este fato para exemplificar a separação que existe entre um objeto real, material e concreto, sua existência e usos enquanto signo, e os significados atrelados a tudo isso. No caso do diabo, excepcionalmente, não posso afirmar que ele exista real, material e concretamente; mas é facilmente constatável que diabos existem como signos, visto que representações diabólicas abundam.

Estes signos – meras imagens do diabo – evocam desde a presença do mal até indiferença pura e simples, dependendo das interpretações de quem os vê. O diabo pode ou não existir, mas não está em questão a existência de signos o representando, nem que eles servem de alegorias para um sem-fim de interpretações distintas, seja almas roubadas, piromania ou danação eterna.

Na lógica e na linguística, alegorias são figuras da retórica, dispositivos cuja função é possibilitar que uma coisa denote outra. Alegorias podem ser entendidas como signos que transmitem significados outros que não o literal, ou original, atribuídos a ele.

Assim, podemos pensar em alegorias como a utilização de certos signos enquanto símbolos de significados para aquém e além de significações preexistentes.

Leia também: O uso de turbantes por pessoas brancas é apropriação cultural?

Venho ensaiando versões deste mesmo texto desde o começo do mês, quando uma altercação entre amigas me pôs a pensar nas formas com que estruturas sociais afetam as relações de foro íntimo, onde opressão e sofrimento são frequentemente disputados como se fossem equivalentes (geralmente por quem não passa por experiências da opressão em debate).

É fácil conceber que desafetos entre amigos não necessariamente se deem a partir de um ato descaradamente opressor. Mas eles acontecem bastante, e bastante por conta de ruídos interpretativos em relação aos signos que carregam os significados referentes à opressão em debate.

Estes signos são frequentemente trazidos para discussões como alegorias da opressão em debate. Estas alegorias não são a opressão em si, mas sim exemplos da miríade de formas com que ela se apresenta para quem não tem escolha a não ser lidar com ela.

Logo depois disso o que pegou fogo foi a Internet, com discussões sobre um turbante. As altercações produzidas online sobre o tema me instigaram ainda mais a pensar sobre as formas com que certos signos viram alegorias para disputas que se dão a partir de não equivalências sobre seus significados – por vezes resistência a opressões estruturais; por outras, direitos individuais.

Tanto na altercação privada entre amigas quanto na pública, minha impressão é que desafetos foram causados porque os debates estavam acontecendo em “frequências” diferentes. Os significados dos signos que serviram como alegoria para ilustrar a opressão, e assim situar o debate, eram diferentes para as partes envolvidas.

A opressão não é a alegoria; a alegoria ilustra a opressão. Infelizmente as opressões estruturais e estruturantes da sociedade também estruturam nossos pensamentos e modos de ação. Isso acaba por fazer com que os significados de certos signos alegóricos de uma opressão específica não sejam compartilhados de formas equânimes entre as pessoas que sofrem e as que não sofrem com ela.

Acredito que quem não sofre uma opressão estrutural específica deve fazer maior esforço para compreender os significados dos signos que servem como alegoria para que quem dela sofra possa melhor explica-la. Esse esforço pode ser feito por meio de uma atitude – que, ao que tudo indica, parece ser menos simples do que é: a escuta.

Não é a primeira vez que o turbante, objeto do vestuário cujo signo tem múltiplos significados oriundos de diversos tempos e culturas, serviu de alegoria para discussões acerca de apropriação cultural e lugar de fala – e também sobre privilégios, violências, ditames, proibições, moralismo e as armadilhas da linguagem e do inconsciente.

Em respeito à leitora e às pessoas que tratam destes temas com mais propriedade e competência do que eu, este texto não se debruça em nenhum deles, e serve apenas como registro de observações das formas com que estes conceitos foram disputados a partir do turbante como alegoria.

Leia também: Feminismo, racismo e a relutância em reconhecer-se como opressora

Formas estas que foram amplamente discutidas em detrimento da significação da alegoria do turbante, nesta discussão, por parte daquelas para quem ele tem fortes significados políticos e sacrossantos, que era: racismo.

Outro exemplo – e este também um item de indumentária usado como alegoria para debates acirrados na internet, quando uma opressão estrutural foi confundida com direitos individuais – foi o caso do shortinho.

Em 2016 alunas de uma escola particular de Porto Alegre fizeram uma petição pelo direito ao uso de shorts em sala de aula. Na época o fato foi vastamente discutido com ignorância, empáfia e viés moralizante, afinal escola não é lugar para contendas sobre comprimento de roupas.

O que parece ter escapado – ou jamais entrado? – na mente de vários comentaristas era que a petição das gurias denunciava os dois pesos e duas medidas com que proibições acerca de roupas afetam a liberdade dependendo do gênero das pessoas.

Para muita gente, roupas curtas são signos que significam disponibilidade sexual. O feminismo sustenta que o único signo que significa disponibilidade sexual é o consentimento. O debate, portanto, nunca foi sobre o shortinho, mas sim sobre o que ele representa.

O shortinho da petição serviu como alegoria para a discussão sobre a autonomia de vestir o que quiser sem abrir precedentes para violência sexual. O turbante, de alegoria para a discussão sobre a autonomia de usar o que quiser sem abrir precedentes para violência racial.

É difícil imaginar que quem não sofre violência sexual por causa de certas roupas vá fazer um manifesto pelo direito de usa-las. Ainda assim, um manifesto pelo direito de usar turbantes por parte de quem não sofre violência racial por causa dele foi estrela de discussões online no mês de fevereiro.

Um factoide gerado no Facebook por uma mulher branca foi rapidamente captado por um veículo da grande mídia, hegemonicamente branca, e promoveu discussões ocas, porém não inócuas, entre muita gente branca.

A ficção de mulheres negras interpelando uma mulher branca para exigir que esta removesse o adereço – que usava por conta do tratamento para sua leucemia nada ficcional – na internet tomou caráter de verdade absoluta, e abriu comportas para uma verdadeira enxurrada de posições racistas – e pior: por parte de gente que, além de nem usar turbantes, sabe muito pouco sobre seus significados.

Racismo e machismo são parecidos no seu caráter estrutural. Onde há homens, há disparidade de gênero em detrimento das mulheres. Onde há brancos, há disparidade racial em detrimento dos negros. É incontestável que a sociedade é machista e racista, e pouca gente não admite isso. Por que então insistimos tanto em disputar o que é ou não racismo e machismo justamente com as pessoas que sofrem racismo e machismo?

Reclamar de críticas estruturais a partir da própria interpretação, sem entender nem a crítica nem a estrutura, faz parecer que o que as pessoas não admitem é quando apontamos o machismo e o racismo delas.

Aceitar que podemos ser machistas ou racistas não é sabotar as lutas feministas e antirracistas, mas sim reconhecer que estas opressões estruturais são formativas, e que somente podemos escapar da nossa condição de perpetuadores delas se as enxergarmos.

Para conseguir entender, é preciso estar disposto a ouvir. Para aprender, é preciso considerar que há algo a ser ensinado. Quando se trata de um conhecimento que não se tem, procura-se quem detenha aquele conhecimento. Quando se trata de uma experiência que não se tem, busca-se quem tenha aquela experiência.

No caso do feminismo e da luta antirracista, é impressionante a velocidade com que se deslegitima tanto quem tem a experiência quanto quem tem o conhecimento sobre estas opressões – mesmo quando uma mesma pessoa congrega as duas coisas, o que não é raro.

Passado o “carnaval” de racismo feito em cima do turbante como alegoria, fica esperança de que a promessa que guardo no coração, de maior entendimento acerca de opressões estruturais a partir do conhecimento que existe sobre o tema, não seja apenas doce ilusão.

E para que debates futuros não virem folia, que nos perguntemos: como reagimos quando apontam nossos preconceitos?

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