Educação

Na contramão

As classes emergentes migraram das escolas públicas para as particulares. Por que alguns fazem o caminho inverso?

Mônica Barboza
Mônica Barboza trocou a rede particular pela pública no Rio de Janeiro Rede Pública Rede Particular Migração
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A administradora carioca Mônica Rodrigues Barboza sempre fez questão de que seus dois filhos estudassem em colégios particulares. Apostava com o marido que o sacrifício na renda familiar proporcionaria uma qualidade de ensino muito superior à rede pública. Esse estigma é tão senso comum que dados do Ministério da Educação mostram uma diminuição de 10% nas matrículas da rede pública nos últimos cinco anos, enquanto na rede privada elas cresceram 21%. Uma migração liderada pelas classes emergentes: à medida que ascendem socialmente, essas famílias optam pelo status das escolas pagas – na expectativa de um diploma no futuro. Mas, na contramão do movimento nacional, alguns números surpreendem. No estado de São Paulo, entre 2010 e 2014, houve crescimento de 25% nos alunos oriundos de colégios particulares. No mesmo período, a fatia nos estaduais do Rio de Janeiro subiu para 44%. É um paradoxo? O que está por trás da decisão desses pais?

No caso de Mônica, dois fatores balançaram sua convicção. No ano passado, quando a primogênita Juliana estava prestes a ingressar no Ensino Médio, um aperto financeiro a impediu de continuar arcando com as mensalidades. Além do que, a administradora andava descontente com o nível da instituição particular na zona norte. Sem alternativa, matriculou a adolescente no Colégio Estadual Central do Brasil – e se surpreendeu. “Apesar dos velhos problemas, como os professores que faltam, a pública é melhor do que a maioria das particulares”, diz. “Exceto aquelas top, as outras estão defasadas e deixam muito a desejar no conteúdo”. Ela já planeja o reforço de um cursinho pré-vestibular, o que aconteceria mesmo se tivesse permanecido no ex-colégio. Gabriel, de dez anos, também acaba de ser transferido para a Escola Municipal Alagoas. A mãe brigou pela vaga depois de pesquisar as unidades que se saíram bem no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Conseguiu economizar 400 reais mensais.

Para o pesquisador Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da USP, Mônica fez uma escolha sensata. “É ilusão botar o filho numa escola particular achando que isso garante a entrada numa faculdade conceituada”, afirma. Em 2012, ele avaliou as notas médias das escolas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e revelou que metade dos alunos da rede privada tem desempenho equivalente àqueles que vêm da rede pública. A pontuação de 98% das escolas estaduais e 52% das particulares seria insuficiente para aprovação pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que distribui vagas nas universidades federais por meio dos resultados do Enem. Ou seja, há uma tremenda diferenciação entre as escolas privadas. Boa parte das famílias desperdiça um alto investimento. Uma pesquisa do Datafolha realizada em 2014 ilustra o tamanho do rombo: quase metade das escolas particulares de ensino médio da capital paulista cobra mensalidade de até mil reais; 5% passam de 2 mil reais.

Alavarse acredita que, se os pais fizerem as contas, perceberão que compensa matricular na pública e gastar dinheiro em outras coisas para a formação dos filhos – seja um curso de idiomas, seja em um intercâmbio. “Muitas vezes a rede privada, símbolo da burguesia, não entrega aquilo que promete”, diz o professor Alípio Casalis, do Departamento de Fundamentos da Educação da PUC-SP. Segundo ele, nos últimos 20 anos, o fenômeno de universalização do acesso à escola gerou uma multiplicação de ofertas de particulares com qualidade duvidosa. Por outro lado, iniciativas como o Pronatec e o Plano Nacional de Educação amplamente debatido teriam contribuído para a recuperação da autoestima do ensino público como um todo. Na análise positiva de Casalis, a população começa a desconfiar da “campanha de difamação” contra a escola pública, que “vem recebendo mais atenção e apresentando melhorias”.

É o que também defende a secretária municipal do Rio de Janeiro, Helena Bomeny. Dos 79.921 novos alunos das escolas municipais sob sua gestão, 21,7% vieram de instituições privadas, um aumento de 32% em relação a 2010. “Não há mais aquela ideia de que escola pública é para pobre”, diz. “Nossas escolas têm se mostrado muito boas e a sociedade está percebendo isso.” Ela destaca a aplicação de provas bimestrais em quatro disciplinas, a eleição de diretores por mérito, a plataforma de aula digital e a Escola de Formação do Professor Carioca, criada em 2011 para preparar os profissionais que atuarão na rede. “O fato de receber cada vez mais alunos da rede particular mostra que estamos sendo vistos com bons olhos pela comunidade e conquistando maior credibilidade”, afirma a diretora Ana Neri, da E.M. Alagoas, escola da zona norte da cidade em que Mônica acaba de matricular o caçula Gabriel. Essa percepção, porém, está longe de ser consenso entre os especialistas.

Guiomar Namo de Mello, diretora da Escola Brasileira de Professores (Ebrap), questiona a hipótese de que uma melhoria do ensino público seja responsável pela retirada das escolas particulares. Para ela, se não piorou, avança muito lentamente. Evidência disso estariam nos resultados da Prova Brasil e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). “Ninguém quer ter filho na rede pública, muito malvista pela falta de infraestrutura e pelas greves”, especula. “Temos uma enorme porcentagem de alunos do Ensino Médio sem o mínimo de competência de leitura.” A explicação mais provável seria o interesse no Sisu. Ele prevê que 40% das vagas em universidade federais, estaduais e institutos tecnológicos sejam destinadas aos estudantes que atendam aos quesitos da Lei de Cotas – ou seja, tenham cursado o Médio em escolas públicas. Por esse motivo, unidades de referência como a Escola Estadual Pedro II em Belo Horizonte tornam-se ainda mais concorridas. Quem tem sorte de assegurar uma vaga comemora. Levantamento feito em 2013 pelo Sindicato das Escolas Particulares de Minas Gerais indicou que cerca de 4 mil alunos trocaram a rede privada pela pública, o equivalente a 2% do total de matriculados.

“Isso não quer dizer evolução, mas estratégia para alcançar o Ensino Superior público – este, sim, melhor que o privado”, afirma a professora Márcia Malavasi, da Faculdade de Educação da Unicamp. Segundo ela, não é possível afirmar que histórias como a de Mônica sejam uma tendência. São casos pontuais que ressaltam como os brasileiros lançam mão de táticas para “sobreviver a uma política pública tão perversa”. Pais que matriculam na escola pública e pagam cursinho preparatório no período da tarde, estabelecendo dupla jornada para os filhos. O detalhe ignorado por muitos, de acordo com o pesquisador Ocimar Alavarse, é que o desempenho do estudante no Enem se dá apenas 25% pela escola frequentada. Os outros 75% estão ligados ao seu nível socioeconômico (renda e escolaridade da família). “Significa que ou as políticas públicas investem na melhora da qualidade de vida da população ou a escola não fará milagre”, conclui Márcia.

Os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) dão conta de que a migração majoritária é da rede pública para a privada. Em 2011, por exemplo, as escolas particulares atendiam 12,2% dos alunos no Ensino Médio. Dois anos depois, 12,8%. O problema é que, em busca do que consideram como o melhor caminho para o sucesso dos filhos, os pais deixam para trás um ensino público que precisa de vozes para exigir mudanças por qualidade. “A escola pública não é favor nenhum, pagamos impostos para que exista”, diz a jornalista Mariana Desimone. A despeito de uma condição financeira que lhe permitiria matricular o pequeno Nicolas, de 4 anos, numa ótima escolinha particular, ela e o marido o colocaram numa instituição municipal de São Caetano do Sul, na grande São Paulo.

Eles quiseram que o filho convivesse com a diversidade, não com colegas de sala que têm as mesmas oportunidades. Mariana não se importa de ajudar a Associação de Pais e Mestres a arrecadar dinheiro em festinhas para, por exemplo, arrumar uma telha com goteira. Prefere isso a ser tratada como “cliente”. “Só é ruim hoje porque ninguém liga nem batalha pelas públicas”, lamenta ela, que, no entanto, pretende transferir seu filho para a rede privada no Ensino Fundamental.

Em outras palavras, apenas apontar o dedo para as deficiências não resolve nada – sucateia ainda mais a rede e estimula a privatização. Seja por convicções pessoais, por falta de dinheiro ou de olho nas cotas do Sisu, o professor Alípio Casalis torce para que a parcela da classe média que desemboca na rede pública de ensino lute por melhorá-la. “É uma boa chance de consolidá-la e derrubar o preconceito”, afirma.

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