Política

Show de bola!

Ao ver Afonsinho estrear nas páginas de Carta Capital, confesso meu bem guardado segredo. O de jogar no mesmo time que ele

O ex-jogador Afonsinho, novo colunista de CartaCapital
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Engatinhava ainda no jornalismo e já tinha três paixões. A revista Bondinho, a Realidade e o jornal Rolling Stone recém-lançado, fresquinho. O curso de jornalismo funcionava dentro da Faculdade de Filosofia mas o meu trabalho era no Laboratório de Defesa Vegetal do Ministério da Agricultura que ficava na Rua Espírito Santo, centro de Belo Horizonte, bem pertinho de uma das maiores bancas da cidade, esquina de Augusto de Lima.

A banca vivia recheada de fascículos naquele fevereiro de 1972. Até caixinhas de isopor com experiências dos maiores cientistas da humanidade vendiam ali. O dono, seu Agenor, sabia bem o que eu queria. Separava todos os meses a Realidade e a cada quinze dias a revista Bondinho e o jornal Rolling Stone.

A Realidade era um luxo só. Papel couché e uma tiragem astronômica, um sucesso. Naquele mês quem estava na capa era um Chico Buarque com os mesmos olhos ardósia mas um bigode cor de abóbora, anunciando ao repórter José Hamilton Ribeiro: “Sou um artista, não um político. Mas se defender a liberdade de criação é hoje um ato político, não tenho porque fugir dele”.

A Realidade era a bíblia do new journalism. No mesmo número de fevereiro de 1972 o repórter Desmond O’Grady relatava aos leitores da revista em sete páginas as 24 horas que passara no Vaticano ao lado do Papa Paulo VI.

Num outro texto, Jorge de Andrade traçava um perfil do escritor Érico Veríssimo. “A Liberdade será sempre a minha causa” dizia o título da reportagem de nove páginas.  Realidade tinha muito mais. Tinha também o pediatra Benjamin Spock aos 68 anos de idade, celebridade na época, anunciando a Oriana Falacci a sua candidatura à presidência dos Estados Unidos.

Na Rolling Stone a história era outra. Editado por Luiz Carlos Maciel, chegava às bancas em papel jornal com um Caetano voltando de Londres depois de um longo e tenebroso inverno. Era um Caetano de bata branca e tamancos suecos cantando “Xô chuá/cada macaco no seu galho/Xô chuá/Eu não me canso de falar.” O jornal, apesar de nanico, era la creme de la creme.

A Rolling Stone de fevereiro de 1972 falava de Frank Zappa , um jovem que aos 31 anos já era o pai da invenção. Falava também de Alice Cooper, Cat Stevens, Bob Dylan, John Lennon, Edgar Winter, Carole King, Jimi Hendrix, Janis Joplin, da Bolha, do Led Zeppelin e do Black Sabbat. Elogiava o show dos Novos Baianos no Teatro Siqueira Campos, a performance do Living Theatre de Julien Beck e dava uma página inteira para o disco Fly de Yoko Ono. Os caras da Rolling Stone transavam todas e não eram fracos não.

A Bondinho, minha terceira paixão, era um caso à parte. A revista que nasceu dentro de um supermercado em São Paulo havia partido pra carreira solo nas mãos de Roberto Freire, Narciso Kalili, Sérgio de Souza, Woile Guimarães, Eduardo Barreto, Mylton Severiano e Hamilton Almeida.

Os exemplares que chegavam a Belo Horizonte eram poucos e sumiam rapidamente das bancas. Não fosse o seu Agenor guardar o meu, eu dançava. Aquele número de fevereiro de 1972 que seu Agenor me entregou dentro de um plástico transparente trazia Walmor Chagas na capa anunciando a quem interessasse que estava pensando em ficar nu.

A Bondinho falava também da imprensa underground que depois de crescer e aparecer, agora começava a agonizar. Falava da Flor do Mal, da Presença, do Pato Macho e do Verbo. Mostrava as loucuras de um músico meio gênio, meio bruxo, o albino Hermeto Paschoal e todos os seus hermetismos pascoais. Mas o que me chamou mais a atenção naquele número foi uma reportagem de seis páginas com o jogador Afonsinho.

O título era enorme, o retrato do new journalism: “Lá vai Afonsinho pelo tapete sujo do futebol, em busca de sua função social, e só três coisas podem fazer com que ele não marque seu gol de liberdade: concentração, vestibular e prostituição. Entendeu agora o porquê de sua barba?” Sim, esse era o título.

Em seis páginas ele abriu o jogo ao repórter Wilson Moherdaui falando da conquista do passe livre, do seu direito de ir e vir. O repórter fez questão de começar a entrevista descrevendo o ambiente: “Dentro de um pequeno apartamento de dois quartos na Rua General Severiano, no Rio, falta luxo na casa de um homem rico. Uma cama em cada quarto, desenhos de crianças e de amigos nas paredes, móveis velhos na sala, chão sem tapete, comida simples da empregada-amiga Joana, o bom humor de sua mãe e, lá embaixo, um Volks sessenta e pouco com um toca-fitas, sua única extravagância”.

– Eu fui adquirindo ideias!

Foi assim que Afonsinho começou a entrevista em que fala um pouco de tudo, mas principalmente de sua liberdade conquistada depois de muita luta no campo e fora dele. O menino nascido em São Paulo e criado até os dez anos em Marília, estava de mudança para Santos depois de uma boa temporada na Cidade Maravilhosa.

O doutor Afonsinho lembrou de um sucesso da época na voz de Gal Costa em que ela cantava “Eu só tô beijando o rosto de quem dá valor… pra quem vale mais um gosto do que cem mil réis” e contou com detalhes o dia em que Zagalo chegou para ele no treino do Botafogo e disse na lata: “O seu visual não é condizente com o de um jogador de futebol”.

Afonsinho tinha sim os cabelos longos e cheios de caracóis, uma barba espessa, um verdadeiro “cantor de yê-yê-yê” como diziam e reclamavam os dirigentes do Botafogo. Afonsinho era literalmente uma estrela solitária naquele Brasil de fevereiro de 1972.

De repente, ele desabafou:

– Estavam querendo me enterrar vivo!

Hoje, quarenta anos depois, ao ver Afonsinho estrear nas páginas de Carta Capital, eu brasileiro confesso meu bem guardado segredo. O de jogar no mesmo time que ele.

Engatinhava ainda no jornalismo e já tinha três paixões. A revista Bondinho, a Realidade e o jornal Rolling Stone recém-lançado, fresquinho. O curso de jornalismo funcionava dentro da Faculdade de Filosofia mas o meu trabalho era no Laboratório de Defesa Vegetal do Ministério da Agricultura que ficava na Rua Espírito Santo, centro de Belo Horizonte, bem pertinho de uma das maiores bancas da cidade, esquina de Augusto de Lima.

A banca vivia recheada de fascículos naquele fevereiro de 1972. Até caixinhas de isopor com experiências dos maiores cientistas da humanidade vendiam ali. O dono, seu Agenor, sabia bem o que eu queria. Separava todos os meses a Realidade e a cada quinze dias a revista Bondinho e o jornal Rolling Stone.

A Realidade era um luxo só. Papel couché e uma tiragem astronômica, um sucesso. Naquele mês quem estava na capa era um Chico Buarque com os mesmos olhos ardósia mas um bigode cor de abóbora, anunciando ao repórter José Hamilton Ribeiro: “Sou um artista, não um político. Mas se defender a liberdade de criação é hoje um ato político, não tenho porque fugir dele”.

A Realidade era a bíblia do new journalism. No mesmo número de fevereiro de 1972 o repórter Desmond O’Grady relatava aos leitores da revista em sete páginas as 24 horas que passara no Vaticano ao lado do Papa Paulo VI.

Num outro texto, Jorge de Andrade traçava um perfil do escritor Érico Veríssimo. “A Liberdade será sempre a minha causa” dizia o título da reportagem de nove páginas.  Realidade tinha muito mais. Tinha também o pediatra Benjamin Spock aos 68 anos de idade, celebridade na época, anunciando a Oriana Falacci a sua candidatura à presidência dos Estados Unidos.

Na Rolling Stone a história era outra. Editado por Luiz Carlos Maciel, chegava às bancas em papel jornal com um Caetano voltando de Londres depois de um longo e tenebroso inverno. Era um Caetano de bata branca e tamancos suecos cantando “Xô chuá/cada macaco no seu galho/Xô chuá/Eu não me canso de falar.” O jornal, apesar de nanico, era la creme de la creme.

A Rolling Stone de fevereiro de 1972 falava de Frank Zappa , um jovem que aos 31 anos já era o pai da invenção. Falava também de Alice Cooper, Cat Stevens, Bob Dylan, John Lennon, Edgar Winter, Carole King, Jimi Hendrix, Janis Joplin, da Bolha, do Led Zeppelin e do Black Sabbat. Elogiava o show dos Novos Baianos no Teatro Siqueira Campos, a performance do Living Theatre de Julien Beck e dava uma página inteira para o disco Fly de Yoko Ono. Os caras da Rolling Stone transavam todas e não eram fracos não.

A Bondinho, minha terceira paixão, era um caso à parte. A revista que nasceu dentro de um supermercado em São Paulo havia partido pra carreira solo nas mãos de Roberto Freire, Narciso Kalili, Sérgio de Souza, Woile Guimarães, Eduardo Barreto, Mylton Severiano e Hamilton Almeida.

Os exemplares que chegavam a Belo Horizonte eram poucos e sumiam rapidamente das bancas. Não fosse o seu Agenor guardar o meu, eu dançava. Aquele número de fevereiro de 1972 que seu Agenor me entregou dentro de um plástico transparente trazia Walmor Chagas na capa anunciando a quem interessasse que estava pensando em ficar nu.

A Bondinho falava também da imprensa underground que depois de crescer e aparecer, agora começava a agonizar. Falava da Flor do Mal, da Presença, do Pato Macho e do Verbo. Mostrava as loucuras de um músico meio gênio, meio bruxo, o albino Hermeto Paschoal e todos os seus hermetismos pascoais. Mas o que me chamou mais a atenção naquele número foi uma reportagem de seis páginas com o jogador Afonsinho.

O título era enorme, o retrato do new journalism: “Lá vai Afonsinho pelo tapete sujo do futebol, em busca de sua função social, e só três coisas podem fazer com que ele não marque seu gol de liberdade: concentração, vestibular e prostituição. Entendeu agora o porquê de sua barba?” Sim, esse era o título.

Em seis páginas ele abriu o jogo ao repórter Wilson Moherdaui falando da conquista do passe livre, do seu direito de ir e vir. O repórter fez questão de começar a entrevista descrevendo o ambiente: “Dentro de um pequeno apartamento de dois quartos na Rua General Severiano, no Rio, falta luxo na casa de um homem rico. Uma cama em cada quarto, desenhos de crianças e de amigos nas paredes, móveis velhos na sala, chão sem tapete, comida simples da empregada-amiga Joana, o bom humor de sua mãe e, lá embaixo, um Volks sessenta e pouco com um toca-fitas, sua única extravagância”.

– Eu fui adquirindo ideias!

Foi assim que Afonsinho começou a entrevista em que fala um pouco de tudo, mas principalmente de sua liberdade conquistada depois de muita luta no campo e fora dele. O menino nascido em São Paulo e criado até os dez anos em Marília, estava de mudança para Santos depois de uma boa temporada na Cidade Maravilhosa.

O doutor Afonsinho lembrou de um sucesso da época na voz de Gal Costa em que ela cantava “Eu só tô beijando o rosto de quem dá valor… pra quem vale mais um gosto do que cem mil réis” e contou com detalhes o dia em que Zagalo chegou para ele no treino do Botafogo e disse na lata: “O seu visual não é condizente com o de um jogador de futebol”.

Afonsinho tinha sim os cabelos longos e cheios de caracóis, uma barba espessa, um verdadeiro “cantor de yê-yê-yê” como diziam e reclamavam os dirigentes do Botafogo. Afonsinho era literalmente uma estrela solitária naquele Brasil de fevereiro de 1972.

De repente, ele desabafou:

– Estavam querendo me enterrar vivo!

Hoje, quarenta anos depois, ao ver Afonsinho estrear nas páginas de Carta Capital, eu brasileiro confesso meu bem guardado segredo. O de jogar no mesmo time que ele.

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