Política

Quem perde, quem ganha?

Uma vida entre muros, levantados em linha reta para delimitar caminhos tortos, é a impossibilidade do encontro. É o sintoma de uma condenação

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Comecei, enfim, a ler “Em Busca do Tempo Perdido”. Depois de anos de resoluções mal sucedidas de fim de ano de que um dia mergulharia em pelo menos algumas de suas quatro mil páginas, fui convencido pelo vendedor da banca a levar para casa, além dos jornais, os primeiros exemplares de uma coleção recém-lançada de grandes nomes da literatura.

Em meio a leituras mais urgentes, como as colunas de fofoca do sistema político em desintegração, folheei, ainda no caminho, as primeiras páginas de “A Fugitiva”, um dos sete livros que compõem a obra de Marcel Proust, com a resignação dos derrotados: “Se tivéssemos nos conhecido alguns anos atrás, teríamos todo o tempo do mundo para nos embrenhar. Agora está tarde, e tenho essa pilha de jornais, revistas, tuítes e textões de Facebook para digerir”.

De teimosia, avancei a primeira página. E a segunda. E a terceira. Estranhei o estilo, o tema (há um “tema” ali?), a prolixidade, a erudição, as frases intermináveis, a multidão de sobrenomes de personagens apresentados sem qualquer anúncio. É essa, então, a maior obra do século XX?, pensava comigo, enquanto me entediava nas descrições de sensações, pessoas e lugares sobre os quais não conseguia reter interesse ou atenção.

Por mais que fechemos o nariz para as histórias de superação, autoajuda e receitas de sucesso rápido e fácil, o caráter utilitário da existência nos leva a um cálculo algo angustiante quando dedicamos tempo, supostamente nosso bem mais precioso, com um relato de 1913.

Mas, inconscientemente, me entreguei ao livro como um exercício de resistência: o celular, postado a meu lado, me lembrava que em algum canto do mundo havia querelas mais urgentes a serem lidas. Mas havia algo que me prendia ali. Era, talvez, quem sabe, uma identificação. Uma vontade, possivelmente compartilhada com o protagonista, de me perder.

No livro, o narrador perambula por ruas e memórias de vias tortas. Fala da perda da pessoa amada que, no livro anterior, é descrita como uma “prisioneira”. Compreender a fuga, para ele, requer compreender a companheira – seus desejos, rebeldia e contradições. Como se por ela tivesse qualquer direito ou domínio, entra num estado-limite de reflexão sobre ação e reação, realidade e memória, consciência e insanidade.

Marcel é o personagem que vê o mundo ao redor e tenta, num certo desespero, apreendê-lo. Mas todo o esforço de encontro e reencontro para reconstituir aquela pessoa – e a si – e a história entre eles é uma despossessão. Albertine não é sua. Nem sequer as lembranças de Albertine pertencem a ele. Quanto mais tenta entendê-la, por meio de investigações, conversas com amigas e reconstituição de fatos vividos, mais sinais trocados recebe. A investigação o leva a um labirinto, como as ruas das cidades descritas na obra em que tenta atravessar sem se dar conta de que está (estamos) à deriva.

O herói da história sofre por não ter qualquer controle sobre a pessoa amada. Nem sobre seu destino. Nem sobre a própria consciência, confusa entre o que sonhou e o que viveu – e, sobretudo, à memória, revisada, do que pensa ter sonhado ou vivido. A impossibilidade de “possuir” o instante – e os personagens que o colocam em movimento – e o dispositivo da memória de algo que já não existe nem se regenera é a impossibilidade de uma afirmação.

Não somos outra coisa se não o que já deixamos de ser e sentir. “Há no mundo, onde tudo se gasta e tudo perece, uma coisa que tomba em ruínas, que se destrói ainda mais completamente, deixando ainda menos vestígios do que a Beleza: o Sofrimento”, escreve.

O processo de compreensão, no livro, é uma volta ao mundo com retorno a um ponto de origem; quando voltamos, o ponto já não é o mesmo. Nem nós.

O medo da perda, pensava comigo, é um contrassenso: tudo o que fazemos na vida é perder. O que vivenciamos não é soma, é subtração; deixamos de crer (ou de ser) quando em contato com outra ideia (ou ser), lugar, pessoa. Descartamos, pelo caminho, o que acreditamos ou sentimos até sermos exposto a um fato novo, que nos levar a acreditar e sentir as chamadas “coisas novas”. E isso requer perdas. Só para lembrar: um dia, morreremos todos.

Esse processo de desprendimento, de topadas com nosso limite, coloca em xeque um sistema de produção (econômica, mas também de afetos) cumulativo. Esse sistema nos diz o tempo todo que somos aquilo obtemos.

No livro “O circuito dos afetos”, o filósofo Vladimir Safatle descreve a ideia de indivíduo consagrada por esse sistema como alguém “composto de propriedades” – que o individualizam e garantem a sua particularidade.  Segundo ele, o “outro” confirma a nossa identidade, mas o verdadeiro encontro é uma despossessão, pois obriga o sujeito a mudar a narrativa de si mesmo.

Uma vida social baseada no medo, portanto, sempre verá este “outro” como invasor potencial, o que alimenta um princípio paranoico de conservação do que nos é “próprio”. A vida social, defende o filósofo, é assim a dimensão de um espaço comum que é impróprio. Não pode, portanto, ser apropriado por ninguém.

Na semana em que finalmente me debrucei sobre “Em Busca do Tempo Perdido” (ou parte dele), me vi, de certa forma, em conflito com as expectativas urgentes do tempo presente – que pede respostas e caminhos, e não períodos longos, tortuosos e incompletos comuns das grandes obras e de tudo o que nos faz “perder” aquilo em que acreditamos.

A chave para essa (in)compreensão é a saída do tempo (o nosso) para observá-lo em perspectiva. Pois a forma como pensamos o tempo é a forma como produzimos e lidamos com nossos afetos como medo, esperança, ódio, etc.

“O neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida”, escrevem Pierre Dardot e Christian Laval no ensaio “A Nova Razão do Mundo”, recém-publicado pela Boitempo.

Pode ser consequência de leituras sobrepostas numa semana dita decisiva para os rumos do país. De toda forma, eu olhava para a capa do livro, com imagens e notas de dólares sobrepostas, e começava a relembrar das frases mais agressivas ouvidas nestes tempos de radicalismo aflorados: tudo começa com um pronome possessivo. “Meu governo”, “meu país”, “meu trabalho”, “minha carreira”, “meus impostos”, “minha casa”, “meu bairro”, “meu direito”, “meu casamento”, “minha mulher”, “minha(meu) amada(o)”, “minha opinião”, meu empregado”, “minha religião”, “minha convicção”

“Meu” – foi a primeira palavra que nosso filho aprendeu quando chegou da escola. Desde o primeiro dia de aula, ele associou o medo da perda à necessidade de zelar, e brigar, pelo que é “seu” – um brinquedo, um lugar no parque, na caixa de areia ou qualquer “posse” condenada a perder importância ao ser consumida e desbotada, como a vida do herói proustiano.

Ainda Dardot e Laval: “A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e de empresa como modelo de subjetivação. (…) O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência”. Essa norma, prosseguem, impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intimia os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa.

No limite, grifo meu, esse imperativo nos leva à agressão. Falamos tanto de liberdade que não conseguimos explicar onde ela se encontra nos discursos de exclusão daquilo que nos desmente e nos “despossui” – o outro.

Num mundo que vê qualquer ação como investimento e interpela qualquer intenção com um questionamento redutor (“o que vou ganhar com isso?”), é triste, mais compreensível, o desconforto causado pela leitura de “A Fugitiva”. Proust nos fala de um herói derrotado: tudo o que ele acredita ser “dele” se dissolve pelo tempo. Inclusive o que sentiu um dia. Inclusive a memória. Em contraponto, o que o mundo nos pede são vitórias. Territórios. Conquistas.

A perda nunca entra nessa conta e é isso o que produz, na literatura, o assombro. Ela é quase um contrassenso num mundo que aprendeu a relatar a si como um empreendimento de sucesso – ou, em caso de revés, uma adversidade de aprendizagem contínua.

É por isso, vai ver, que precisamos de um muro para separar a “minha” da “sua” convicção. Este muro que nos causa aflição na frente do Congresso se estende até a porta de nossas casas. Com o intuito de proteger, afasta e aparta ideias de propriedades contidas em nossa identidade. Um encontro entre nós, nestes termos, não é só despossessão. É risco de vida. Uma vida entre muros, levantados em linha reta para delimitar caminhos tortos, é a redução física da possibilidade de um encontro. Essa impossibilidade é o sintoma mais claro de nossa condenação.

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