Política

“Não se pode dispersar manifestações por vontade política”

Para professor de Direito Constitucional da FGV, polícia deveria atuar para garantir o direito de manifestação e não para coibí-la

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Há quase um século, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que a polícia não poderia impedir ou determinar o local de reunião para manifestações. O caso aconteceu em 1919, quando o então chefe de polícia da Bahia proibiu, por meio de telegrama, um comício em favor do senador Epitácio Pessoa. Neste caso específico, a conduta policial foi decisiva para que o Supremo determinasse que a polícia não poderia “determinar que só em certos lugares é que eles (os protestos) se podem efetuar”. 

Na semana em que Dilma Rousseff foi deposta pelo Senado, uma sequência de manifestações contrárias a Michel Temer aconteceram em São Paulo, sempre pontuadas por discussões sobre o trajeto que os atos deveriam seguir, seguidas de muita repressão policial, que acabavam por inviabilizar os protestos, além de ferir manifestantes. 

“Se a manifestação tem fins lícitos e é sem armas, ou seja, é pacífica, não há motivo constitucional para que haja a possibilidade de restrição”, afirma o professor de Direito Constitucional da FGV-SP Roberto Dias.

Mesmo os casos isolados de vandalismo ou violência não seriam suficientes para justificar a atuação da Polícia Militar no sentido de acabar com os atos. “A reação equivocada e desproporcional da polícia mostra que há uma resistência por parte do governo a essas manifestações democraticamente exercidas”. 

CartaCapital: A primeira manifestação do Supremo Tribunal Federal sobre o direito de reunião foi em 1919, quando decidiu-se que a polícia não poderia proibir ou determinar o local de reunião dos manifestantes. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública chegou a proibir a manifestação Fora Temer marcada para domingo 4 por conta da passagem da tocha paralímpica no mesmo local e horário. Depois, chegou-se a um entendimento e a manifestação ocorreu. Afinal, do ponto de vista jurídico, a PM pode proibir ou determinar um trajeto?

Roberto Dias: A meu ver, a policia não pode determinar o trajeto. Mesmo porque, ao se fazer uma manifestação, o manifestante não pede qualquer autorização para o poder público, apenas comunica, essa é a previsão que a Constituição faz. Ele comunica que fará a manifestação e o poder publico então toma as medidas para viabilizar que esse direito seja exercido de forma plena – e não o contrário. O poder público não atua de modo a impedir que as manifestações possam acontecer.

CC: Durante a semana do impeachment houve outras manifestações na avenida Paulista em que se seguiu basicamente o mesmo roteiro: quando a manifestação ia sair, questionava-se o trajeto e cercava-se o ato de modo a impedir sua saída. Isso entra em confronto com o que o senhor acabou de falar?

RD: Sem dúvidas. Qualquer medida no sentido de inviabilizar o exercício desse direito de reunião é inconstitucional. Na verdade, a primeira decisão do STF a esse respeito é de 1919, ou seja, estamos falando de coisa de 100 anos atrás, em que o Supremo fala que a PM não pode determinar que só em certos lugares podem acontecer protestos, desde que eles sejam convocados para fins lícitos.

Se a manifestação tem fins lícitos e é sem armas, ou seja, é pacífica, não há motivo constitucional para que haja a possibilidade de restrição. Alguém poderia dizer que isso pode incomodar as pessoas, fazer com que a manifestação cause muitos transtornos. Na verdade, até o STF, de modo acertado, diz que as manifestações se dão justamente para causar transtorno, ou seja, para que aquela voz que quer se manifestar seja ouvida de forma mais clara e intensa. O protesto é uma forma de intensificar o direito de manifestação.

O STF falou isso em 1999, quando houve uma decisão do então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, que por decreto determinava a impossibilidade de manifestação na Praça dos Três Poderes, em Brasília. O Supremo julgou o decreto inconstitucional, porque a determinação dos locais onde se pode fazer uma manifestação é algo inconstitucional.

CC: Em 2011, O STF também julgou legal a Marcha da Maconha.

RD: Em 2011 era o mesmo tema, mas com um viés diferente. Nesse caso específico, a questão central era que parte do Judiciário e do Ministério Público e da polícia diziam que manifestações sobre a legalização do consumo de maconha era uma apologia ao crime e, portanto, não poderia acontecer.

E o STF falou que a possibilidade das pessoas se reunirem para combater ou para pedir a mudança de uma lei é mais do que legítimo, é autorizado constitucionalmente. Sob pena de você engessar as normas: se você não pode sequer discutir se aborto é crime e não deveria ser, se consumo de droga é crime e não deveria ser etc, você perpetua esse tipo de norma sem qualquer debate democrático.

CC: No artigo “O Estado e as passeatas”, o senhor afirma que as respostas aos questionamentos sobre se a polícia pode controlar ou limitar os protestos e se os manifestantes precisam informar a trajetória do ato “desenha a qualidade do direito e da democracia que temos”. Diante dos fatos de domingo 4, qual é a qualidade da democracia e dos direitos humanos em São Paulo?

RD: Na verdade, essa onda de manifestações que tem se intensificado desde 2013 mostra uma vitalidade democrática, por um lado. Porque não tenha dúvidas que é uma forma de exercício legítimo da democracia. Agora, a reação equivocada e desproporcional da polícia mostra que há uma resistência por parte do governo a essas manifestações democraticamente exercidas.

Se acontecem atos isolados de vandalismo ou atos isolados de violência, isso não é suficiente para autorizar que o poder público, especialmente a polícia, desfaça a manifestação. Mas, sim, autorizaria que aquelas pessoas, isoladamente, fossem contidas e levadas para as autoridades competentes.

Então, se a manifestação é pacífica, como a de ontem e como muitas outras que tiveram até mesmo intenções políticas opostas, pacíficas e feitas sem armas, não há razão para que o poder público as impeça.

Eventuais atos de violência que aconteçam devem ser reprimidos pontualmente, ou seja, aquela pessoa especificamente pode ser retirada da manifestação, assim como se ela estivesse armada. O que não pode é dispersar a manifestação simplesmente por uma vontade política do governo ou em razão de um ou outro manifestante ter agido de forma violenta.

CC: Diversos vídeos e fotos divulgados por jornalistas e manifestantes na última semana de protestos em SP mostram policiais atropelando deliberadamente manifestantes, jogando spray de pimenta em frequentadores bares na região do Largo da Batata e outras cenas de terror na dispersão do ato. Como o senhor analisa a resposta institucional da PM e da Secretaria de Segurança Pública diante dessas violações? E a atuação do Ministério Público, que teria a função de fiscalizar a PM, há omissão?

RD: Aqui temos dois pontos. O primeiro deles é efetivamente uma atuação inconstitucional da polícia e da Secretaria de Segurança Pública ao agir de modo violento para dispersar as manifestações legitimamente convocadas e que estão sendo exercidas nos limites da Constituição, ou seja, pacificamente e sem armas. Mostra um efetivo equivoco do ponto de vista do exercício da democracia garantido constitucionalmente parte dessas instituições.

Outra coisa é o poder de controle e de fiscalização e de até de iniciar procedimentos de contenção dessa atitude abusiva da polícia, que é função do Ministério Público. Pelo menos nós não temos notícias de que isso tenha acontecido com a ênfase que deveria acontecer tendo em vista a magnitude dos atos praticados pela polícia.

CC: Diante da falta de ênfase do Ministério Público, o que pode ser feito? Que tipo de mecanismo de pressão e de controle a população teria sobre essa questão?

RD: Há um controle político de novo, ou seja, manifestações legítimas cobrando a atuação do MP nos termos do que determina a lei e a Constituição, ou seja, do controle dos atos e dos abusos praticados pela polícia. E, eventualmente, representações relatando esses fatos e pedindo formalmente para que o MP atue para coibir e reprimir esse tipo de atitude abusiva.

CC: Como o senhor avalia a atuação da polícia nas últimas manifestações contrárias a Michel Temer? Há diferenças com relação às manifestações pró-impeachment, em que não houve repressão?

RD: Eu reafirmo o que eu disse para você: as manifestações servem para incomodar, o próprio STF reconhece esta característica, e elas independem de qual posição politica está se defendendo na manifestação. A atuação da polícia deveria ser absolutamente igual se a manifestação é a favor ou contra determinado ato politico, situação econômica ou determinada política pública, ou seja, independe do viés político do ato a atuação da PM.

A polícia deveria praticar dois atos: um é omissivo, ou seja, não impedir que a manifestação aconteça. Isto é, ela deveria se quedar inerte e não interferir na manifestação. O outro deveria ser atuar para simplesmente controlar o trânsito, informar a população e dizer quais são os caminhos mais adequados para aquelas pessoas que querem se locomover – sem que isso frustre a manifestação.

CC: Na sua avaliação, há uma politização da polícia e da Secretaria de Segurança Publica? Qual é o risco dessa politização neste momento de turbulência e polarização?

RD: Na verdade, nesse caso específico das manifestações, de novo, a polícia deveria agir simplesmente para que as manifestações acontecessem de forma legítima e democrática. Qualquer atitude fora desses padrões deveria ser rechaçada por todos, pela sociedade civil, pelo poder público, por todas as pessoas, porque isso seria simplesmente inconstitucional.

Não me parece que o caminho mais adequado do ponto de vista democrático é que a polícia aja de forma diferente dependendo do tipo de manifestação que se tem. Se é a favor do impeachment é de um jeito, se é contra é de outro, se é contra o atual governo é de um jeito, se é a favor é de outro – isso não deveria ter qualquer relevância do ponto de vista da atuação da polícia. São manifestações legítimas, tanto de um lado, quanto de outro.

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