Política

Juntando as peças da verdade

As chamadas Comissões da Verdade são um mecanismo que tem se popularizado ao redor do mundo para garantir esse conhecimento

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Por Pedro Pontual e Ricardo Horta

“A memória é a garantia de nossa própria identidade”, Marilena Chauí

Em 24 de março comemora-se, desde 2011, o Dia Internacional do Direito à Verdade sobre Graves Violações de Direitos Humanos e pela Dignidade das Vítimas. Este dia foi estabelecido pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2010, como parte do processo de consolidação do Direito à Verdade como um direito humano fundamental.

Essa consolidação tem como início os princípios internacionais estabelecidos pelas convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, segundo as quais cada vítima tem o direito de saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o destino da pessoa desaparecida, o avanço das investigações e os seus resultados..

A lógica com relação ao direito de saber sobre os desaparecidos políticos evoluiu, ao longo dos anos, para um direito pleno e completo, de conhecimento sobre as graves violações de direitos humanos, crimes de guerra, genocídio ou crimes contra a humanidade, como uma necessidade para a consolidação da paz. Nesse processo, delineou-se o direto à verdade como um direito de toda uma sociedade em conhecer o que se passou, de forma a fortalecer a democracia e o Estado de Direito. Ao instituir a data comemorativa, a ONU também reconheceu a importância em promover a memória das vítimas de graves violações de direitos humanos.

Direito individual e coletivo

O direito à verdade se mostra hoje como um direito tanto individual como coletivo – no primeiro caso, evoca-se a memória das vítimas e, no segundo caso, a memória que compõe o conhecimento histórico que será apropriado por toda a sociedade.

No primeiro caso, valoriza-se o contexto das famílias dos desaparecidos, que precisam cultivar a memória dos entes que lhes foram tomados como forma de evitar que o desaparecimento seja por completo – assim, a memória é uma forma de resistência à violência a eles imposta.

No segundo caso, a memória é algo como um investimento no futuro, uma ideia que o filósofo Edmund Burke descreveu na hoje bem conhecida frase de que “aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la” e que Marilena Chauí coloca da seguinte forma:

A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e compreendê-lo).

O conhecimento da verdade sobre graves violações de direitos humanos corridas é uma ferramenta de construção dessa memória histórica e de restituição da dignidade das vítimas e de suas famílias.

Comissões da Verdade

Um mecanismo que tem se popularizado ao redor do mundo para garantir esse conhecimento é a criação, em vários países, das chamadas Comissões da Verdade. Sem necessariamente utilizarem este título, tais comissões são focadas na missão de realizar investigações factuais, focando na reconstituição do relato das arbitrariedades cometidas e das violações sofridas.

As primeiras comissões que apresentaram resultados concretos são da América do Sul, com destaques reconhecidos para as comissões da Argentina e do Chile. Após essas experiências do começo da década de 1980, mais de 35 países ao redor do mundo já tiveram comissões da verdade, sendo que alguns países tiveram mais de uma. Além do Brasil, hoje a Costa do Marfim tem uma comissão da verdade nacional (Comissão de Diálogo, Verdade e Reconciliação) em andamento e, no Estado do Maine nos Estados Unidos, em região de fronteira com o Canadá, há uma comissão da verdade em curso sobre violações impostas no começo do século XX a populações indígenas da região.

Segundo a pesquisadora Priscilla Hayner, que já documentou e estudou mais de 40 comissões da verdade no mundo , o objetivo que caracteriza uma Comissão da Verdade é “estabelecer um registro preciso do passado de um país, esclarecer eventos, e levantar a manta de silêncio e negação de um período polêmico e doloroso da história”.

Uma característica comum às comissões da verdade é a sua não capacidade de julgar tal qual um tribunal faria. As comissões, ainda que empenhadas em fazer diligências e investigações, não desempenham essa função com a ótica de um procurador criminal. Comissões da verdade não têm olhar para punições, seu foco é apenas na reconstrução histórica dos fatos.

É importante ressaltar que essas comissões se debruçam sobre períodos particularmente delicados: são momentos quando, geralmente, houve algum tipo de ruptura: conflito armado dentro do país ou com nações vizinhas, ou regimes autoritários se instalaram suspendendo o Estado Democrático de Direito. Em qualquer caso, são situações propícias para a perpetração crimes de lesa-humanidade, tais como tortura e desaparecimento forçado.

Assim, os fatos que compõem o espectro de análise das comissões da verdade são principalmente aqueles referentes às graves violações de direitos humanos, que normalmente são varridos para debaixo do tapete depois que é retomada a ordem ou se reinstala a democracia. A recomposição dessas informações é um processo laborioso, que depende de pesquisa documental e, sobretudo, testemunhos e depoimentos que possibilitem o paulatino esclarecimento dos fatos.

Esse momento de pesquisa e principalmente de escuta tem ainda, além de seu caráter informativo mais imediato, um caráter pedagógico, que permite que a sociedade conheça os abusos a que as vítimas foram submetidas, e possa se solidarizar.

A Comissão Nacional da Verdade, ao evidenciar esses aspectos e ao encontrar novas peças de informações que podem ir preenchendo a imagem que permitirá uma compreensão mais precisa do que de fato transcorreu no país, permite que a sociedade brasileira descubra seu passado e compreenda sua história. Assim, uma comissão da verdade é, para o Brasil, um passo necessário para que a nossa história se complete. De verdade.

* Os autores estão em processo de transição na titularidade da Secretaria-Executiva da Comissão Nacional da Verdade

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