Cultura

Farinha do mesmo saco

‘Nada é mais parecido com um povo do que seus políticos. Eles não pertencem a uma espécie humana diferente dos outros seres’

Foto: Marcelo Träsel/Flickr
Apoie Siga-nos no

Por Menalton Braff

 

Esta história das sanguessugas tem provocado discussões homéricas e acho que é bom, é saudável que se exercite um pouco esta coisa que se chama cidadania. Não importa que os conceitos sejam muitas vezes primários, que os resultados sejam viciados por visões tortas do mundo. O que vale, mesmo, é o exercício. Sem ele, jamais passaremos de multidão a povo.

O Adamastor, homo morbide politicus, não para mais de discutir. A tônica do que se ouve sobre o assunto é sempre a mesma: políticos são todos corruptos.

Entrei numa dessas discussões no bar do Zégeraldo para tirar meu amigo de uma enrascada. Ele havia dito o que pensava e isso é sempre perigoso, pois ele pensa.

Valendo-me da maiêutica (parto, em grego, método socrático), perguntei ao oponente mais exaltado do Adamastor, se político tem família (pai, mãe, irmãos) e ele disse que sim, claro. E que tal a família de um político?, voltei a perguntar. Um olhar gelado de desconfiança me cobriu. Ora, nada de especial com a família de um político.

Os outros começaram a coçar os braços, principais órgãos do pensamento em algumas situações. Voltei à carga, querendo saber se ele conhecia algum político, algum vereador, que fosse. Disse-me com orgulho que ao lado da casa dele morava um. Então perguntei se era possível notar algum sinal particular em seu vizinho. Não, nada de especial. Pelo contrário, um homem bem comum. Olhando assim para ele, revelou o adversário do Adamastor, ninguém imagina que se trata de um vereador. Igual a nós.

Será que a corrupção não abrange um universo bem mais amplo do que geralmente se supõe?

Onde moro, assisti a um mesmo cidadão vender os vinte votos de sua família para três candidatos diferentes. Nenhum dos três se elegeu, mas o vendedor de votos continua incólume, sem que ninguém ouse acusá-lo de corrupto. Porque corrupção tem esta distinção de passiva e ativa, coisa difícil mesmo de se entender.

Ora, na cartilha em que se estudam assuntos pertinentes à corrupção, aprende-se que só existe corrompido onde existir corruptor.

E então me parece que o problema está sediado muitos furos abaixo. Todos nós, ou quase todos, já ouvimos falar de valores éticos, que desde o Aristóteles tem farta literatura a respeito deles. Mas o Aristóteles, me dirão alguns, e sua Ética a Nicômano ou qualquer outra ética, são coisas antigas, a que não se deve dar muito crédito. Coisas antigas.

A prática da corrupção é facilitada pela indiferença de um povo, que não vê na corrupção qualquer qualidade imoral. Nada é mais parecido com um povo do que seus políticos. Ninguém nasce político, eles não pertencem a uma espécie humana diferente dos outros seres.

Estávamos para deixar o estabelecimento do Zégeraldo, quando alguém comentou a situação de determinado ex-prefeito, que foi parar num asilo para pessoas idosas. Foi quase unânime a manifestação negativa do grupo, considerando o cidadão citado um fracassado. Não foi esperto nem para roubar, dizia um deles. Em seu lugar, eu passava a mão, como todo mundo faz.

Saímos em silêncio, o Adamastor e eu. Não havia argumento possível sem que houvesse uma base mínima comum de pensamento.

Por Menalton Braff

 

Esta história das sanguessugas tem provocado discussões homéricas e acho que é bom, é saudável que se exercite um pouco esta coisa que se chama cidadania. Não importa que os conceitos sejam muitas vezes primários, que os resultados sejam viciados por visões tortas do mundo. O que vale, mesmo, é o exercício. Sem ele, jamais passaremos de multidão a povo.

O Adamastor, homo morbide politicus, não para mais de discutir. A tônica do que se ouve sobre o assunto é sempre a mesma: políticos são todos corruptos.

Entrei numa dessas discussões no bar do Zégeraldo para tirar meu amigo de uma enrascada. Ele havia dito o que pensava e isso é sempre perigoso, pois ele pensa.

Valendo-me da maiêutica (parto, em grego, método socrático), perguntei ao oponente mais exaltado do Adamastor, se político tem família (pai, mãe, irmãos) e ele disse que sim, claro. E que tal a família de um político?, voltei a perguntar. Um olhar gelado de desconfiança me cobriu. Ora, nada de especial com a família de um político.

Os outros começaram a coçar os braços, principais órgãos do pensamento em algumas situações. Voltei à carga, querendo saber se ele conhecia algum político, algum vereador, que fosse. Disse-me com orgulho que ao lado da casa dele morava um. Então perguntei se era possível notar algum sinal particular em seu vizinho. Não, nada de especial. Pelo contrário, um homem bem comum. Olhando assim para ele, revelou o adversário do Adamastor, ninguém imagina que se trata de um vereador. Igual a nós.

Será que a corrupção não abrange um universo bem mais amplo do que geralmente se supõe?

Onde moro, assisti a um mesmo cidadão vender os vinte votos de sua família para três candidatos diferentes. Nenhum dos três se elegeu, mas o vendedor de votos continua incólume, sem que ninguém ouse acusá-lo de corrupto. Porque corrupção tem esta distinção de passiva e ativa, coisa difícil mesmo de se entender.

Ora, na cartilha em que se estudam assuntos pertinentes à corrupção, aprende-se que só existe corrompido onde existir corruptor.

E então me parece que o problema está sediado muitos furos abaixo. Todos nós, ou quase todos, já ouvimos falar de valores éticos, que desde o Aristóteles tem farta literatura a respeito deles. Mas o Aristóteles, me dirão alguns, e sua Ética a Nicômano ou qualquer outra ética, são coisas antigas, a que não se deve dar muito crédito. Coisas antigas.

A prática da corrupção é facilitada pela indiferença de um povo, que não vê na corrupção qualquer qualidade imoral. Nada é mais parecido com um povo do que seus políticos. Ninguém nasce político, eles não pertencem a uma espécie humana diferente dos outros seres.

Estávamos para deixar o estabelecimento do Zégeraldo, quando alguém comentou a situação de determinado ex-prefeito, que foi parar num asilo para pessoas idosas. Foi quase unânime a manifestação negativa do grupo, considerando o cidadão citado um fracassado. Não foi esperto nem para roubar, dizia um deles. Em seu lugar, eu passava a mão, como todo mundo faz.

Saímos em silêncio, o Adamastor e eu. Não havia argumento possível sem que houvesse uma base mínima comum de pensamento.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo