Política

Cordão da Mentira

No 1º de Abril, manifestantes vão às ruas em SP para protestar contra os crimes até hoje não esclarecidos da ditadura. Por Lucas Conejero

No Dia da Mentira, manifestantes vão às ruas protestar contra desaparecimentos até hoje não elucidados. Foto: Fora do Eixo/Flickr
Apoie Siga-nos no

Por Lucas Conejero

 

 

Brasil, começo da década de 70, a cearense Jana Moroni Barroso abandona o curso de biologia da UFRJ, despede-se dos pais e cai na clandestinidade. Em poucos dias chega à localidade de Metade (PA) para engrossar as fileiras da guerrilha rural. Seu objetivo era ajudar a construir um país justo e livre, nem que para isso fosse necessário dar aulas de tiro à população do sul do Pará. E ela, com 21 anos, além de lecionar na escola primária, ensinava os moleques da região a sentar o dedo no gatilho.

A sociedade brasileira vivia sob o AI-5. Recorrer à luta armada era – no mínimo – compreensível, principalmente para uma jovem estudante com nenhum talento para a alienação. Jana morreu em janeiro de 1974, em combate ou debaixo de porrada. Seu corpo nunca foi encontrado e ninguém sabe exatamente quando e onde tombou. Seus pais a procuraram de forma incansável, mas nada.

Em memória de Jana e dos outros milhares de brasileiros torturados, assassinados e desaparecidos durante a ditadura (1964-85), o Cordão da Mentira botou o bloco nas ruas do centro da capital paulista no último domingo. O plano é não deixar pra lá, como querem os militares de pijama, e chamar atenção para a Comissão da Verdade.

A concentração começou antes do meio-dia. Um sarau na frente do cemitério da Consolação deu início às festividades. O cordão saiu pouco depois das 13 horas, no melhor estilo bloco carnavalesco. As músicas, todas de autoria da militância, faziam referência aos anos de chumbo.

Gente jovem reunida, dedo em V, cabelo ao vento e uma grande quantidade de militantes da velha guarda (festival de cabeça branca, todo respeito era pouco). Nada de partido, a não ser o pessoal do velho e pelego Partidão, que ainda apareceu com uns jipes caracterizados e “escoltou” a marcha.

Primeira parada, antigo prédio da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antônia. Ponto histórico para organizar intervenções. Foram cinco durante o percurso: Maria Antônia, sede da TFP, elevado Costa e Silva, sede da Folha de S. Paulo e antiga sede do DOPS.

Na Maria Antônia foi escrito o capítulo mais violento da guerra que perdura até hoje nas principais universidades paulistanas.

Durante horas do eterno ano de 1968, a militância estudantil de esquerda e de direita da capital engalfinhou-se numa pancadaria generalizada. Trabucos, rojões, coquetéis molotov e pedras foram as armas. O resultado: prédios destruídos, carros queimados, um morto e vários feridos.

Segunda à direita, o bloco desceu a Martim Francisco e parou na frente de uma pequena capela da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade): aquele pessoal da Casa Grande, cristão, tolerante e progressista, principal organizadora da Marcha com Deus Pela Liberdade (e o diabo a quatro) em 1964.

Um bando de “mulheres ricas” e papa hóstia. Em nome delas os milicos dizem ter agido, por isso chamam o golpe de revolução. Ou seja, mutilaram todas as liberdades civis, instauraram a tortura como política de Estado para defender os interesses da cafona e minoritária “massa cheirosa” e nem vergonha de admitir têm.

Ainda na Martim Francisco aconteceu uma homenagem ao Marquito, lendário fundador da ALN, organização da resistência armada liderada pelo comunista Carlos Marighella. Ele tombou dentro de casa, com vários tiros nas costas. “Jamais admitiria cair nas mãos da repressão”, comentou um de seus companheiros de armas enquanto depositava flores sob uma placa com seu nome e história.

Por falar em placa, uns caras cobriram o nome de algumas ruas com os nomes de assassinados e desaparecidos. Nada de vandalismo gratuito. São Paulo é uma cidade bizarra e as pessoas precisam saber. Por exemplo, anda-se sobre elevados com nome de chefe de Estado terrorista e avenida com nome de senhor de engenho procurado pela Interpol.

Passado o elevado, parada na sede da Folha de S. Paulo. Ápice da manifestação: duas garotas vestidas de gorila dialogaram em uma espécie de ato teatral sobre recente editorial do jornal referente à Lei da Anistia e a possibilidade de sua revisão. Entendo o pessoal do Otavinho e suas posições, afinal, vai ser difícil explicar ao povo brasileiro, por exemplo, sobre as encomendas entregues pelos motoristas da empresa aos porões da ditadura. Enfim, palavras de ordem não faltaram. A velha guarda – animadíssima com a situação – gritava praticamente a mesma coisa, apesar da variação enorme de palavrões e adjetivos: Otavinho vendido! Lacaio dos milicos!

O primeiro Cordão da Mentira da história completou seu trajeto e dispersou no final da tarde na antiga sede do DOPS, atual Estação Pinacoteca, abrigo do Memorial da Resistência. Nas dependências daquele prédio, milhares de militantes – quase todos jovens estudantes – foram barbaramente torturados, algumas estupradas, alguns assassinados sob tortura, entre eles o saudoso (mestre) jornalista Vladmir Herzog. Devemos a eles nossa liberdade, no mínimo nosso respeito.

Gonzaguinha, em sua clássica “Pequena memória para um tempo sem memória”, perguntava: quando o sol nascer é que eu quero ver: quem se lembrará? Quando amanhecer é que eu quero ver: quem recordará?

A resposta está aí e a mensagem foi clara: não vamos deixar quieto. É só o começo…

Por Lucas Conejero

 

 

Brasil, começo da década de 70, a cearense Jana Moroni Barroso abandona o curso de biologia da UFRJ, despede-se dos pais e cai na clandestinidade. Em poucos dias chega à localidade de Metade (PA) para engrossar as fileiras da guerrilha rural. Seu objetivo era ajudar a construir um país justo e livre, nem que para isso fosse necessário dar aulas de tiro à população do sul do Pará. E ela, com 21 anos, além de lecionar na escola primária, ensinava os moleques da região a sentar o dedo no gatilho.

A sociedade brasileira vivia sob o AI-5. Recorrer à luta armada era – no mínimo – compreensível, principalmente para uma jovem estudante com nenhum talento para a alienação. Jana morreu em janeiro de 1974, em combate ou debaixo de porrada. Seu corpo nunca foi encontrado e ninguém sabe exatamente quando e onde tombou. Seus pais a procuraram de forma incansável, mas nada.

Em memória de Jana e dos outros milhares de brasileiros torturados, assassinados e desaparecidos durante a ditadura (1964-85), o Cordão da Mentira botou o bloco nas ruas do centro da capital paulista no último domingo. O plano é não deixar pra lá, como querem os militares de pijama, e chamar atenção para a Comissão da Verdade.

A concentração começou antes do meio-dia. Um sarau na frente do cemitério da Consolação deu início às festividades. O cordão saiu pouco depois das 13 horas, no melhor estilo bloco carnavalesco. As músicas, todas de autoria da militância, faziam referência aos anos de chumbo.

Gente jovem reunida, dedo em V, cabelo ao vento e uma grande quantidade de militantes da velha guarda (festival de cabeça branca, todo respeito era pouco). Nada de partido, a não ser o pessoal do velho e pelego Partidão, que ainda apareceu com uns jipes caracterizados e “escoltou” a marcha.

Primeira parada, antigo prédio da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antônia. Ponto histórico para organizar intervenções. Foram cinco durante o percurso: Maria Antônia, sede da TFP, elevado Costa e Silva, sede da Folha de S. Paulo e antiga sede do DOPS.

Na Maria Antônia foi escrito o capítulo mais violento da guerra que perdura até hoje nas principais universidades paulistanas.

Durante horas do eterno ano de 1968, a militância estudantil de esquerda e de direita da capital engalfinhou-se numa pancadaria generalizada. Trabucos, rojões, coquetéis molotov e pedras foram as armas. O resultado: prédios destruídos, carros queimados, um morto e vários feridos.

Segunda à direita, o bloco desceu a Martim Francisco e parou na frente de uma pequena capela da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade): aquele pessoal da Casa Grande, cristão, tolerante e progressista, principal organizadora da Marcha com Deus Pela Liberdade (e o diabo a quatro) em 1964.

Um bando de “mulheres ricas” e papa hóstia. Em nome delas os milicos dizem ter agido, por isso chamam o golpe de revolução. Ou seja, mutilaram todas as liberdades civis, instauraram a tortura como política de Estado para defender os interesses da cafona e minoritária “massa cheirosa” e nem vergonha de admitir têm.

Ainda na Martim Francisco aconteceu uma homenagem ao Marquito, lendário fundador da ALN, organização da resistência armada liderada pelo comunista Carlos Marighella. Ele tombou dentro de casa, com vários tiros nas costas. “Jamais admitiria cair nas mãos da repressão”, comentou um de seus companheiros de armas enquanto depositava flores sob uma placa com seu nome e história.

Por falar em placa, uns caras cobriram o nome de algumas ruas com os nomes de assassinados e desaparecidos. Nada de vandalismo gratuito. São Paulo é uma cidade bizarra e as pessoas precisam saber. Por exemplo, anda-se sobre elevados com nome de chefe de Estado terrorista e avenida com nome de senhor de engenho procurado pela Interpol.

Passado o elevado, parada na sede da Folha de S. Paulo. Ápice da manifestação: duas garotas vestidas de gorila dialogaram em uma espécie de ato teatral sobre recente editorial do jornal referente à Lei da Anistia e a possibilidade de sua revisão. Entendo o pessoal do Otavinho e suas posições, afinal, vai ser difícil explicar ao povo brasileiro, por exemplo, sobre as encomendas entregues pelos motoristas da empresa aos porões da ditadura. Enfim, palavras de ordem não faltaram. A velha guarda – animadíssima com a situação – gritava praticamente a mesma coisa, apesar da variação enorme de palavrões e adjetivos: Otavinho vendido! Lacaio dos milicos!

O primeiro Cordão da Mentira da história completou seu trajeto e dispersou no final da tarde na antiga sede do DOPS, atual Estação Pinacoteca, abrigo do Memorial da Resistência. Nas dependências daquele prédio, milhares de militantes – quase todos jovens estudantes – foram barbaramente torturados, algumas estupradas, alguns assassinados sob tortura, entre eles o saudoso (mestre) jornalista Vladmir Herzog. Devemos a eles nossa liberdade, no mínimo nosso respeito.

Gonzaguinha, em sua clássica “Pequena memória para um tempo sem memória”, perguntava: quando o sol nascer é que eu quero ver: quem se lembrará? Quando amanhecer é que eu quero ver: quem recordará?

A resposta está aí e a mensagem foi clara: não vamos deixar quieto. É só o começo…

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar