Diversidade

‘A Justiça pensa a responsabilização de corpos negros a partir de um olhar branco’

A advogada e pesquisadora Poliana Ferreira expõe os mecanismos que impedem a responsabilização do Estado por mortes em abordagens policiais

No Rio, 30% dos homicídios são causados por agentes do Estado. Foto: Fernando Frazão/ABR
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No recém-lançado Justiça e Letalidade Policial – Responsabilização jurídica e imunização da polícia que mata (Editora Jandaíra), a advogada e pesquisadora Poliana Ferreira mostra como o Direito é usado para blindar policiais de possíveis punições por mortes produzidas em operações policiais.

A partir da análise de um caso real, em que um PM é absolvido pelo Tribunal do Júri do crime de homicídio doloso, mesmo tendo confessado o assassinato de um jovem de 22 anos – desarmado e rendido – Poliana identifica os mecanismos institucionais e legais que acabam contribuindo para a não responsabilização de agentes do Estado, e da polícia enquanto instituição.

“A gente não consegue, enquanto sociedade civil, colocar a polícia sentada no banco dos réus”, critica. “E colocar a polícia sentada no banco dos réus é pensar a responsabilização, não só do policial que está lá na ponta e atira, mas, também, do comandante, do secretário de Segurança Pública e dos próprios governadores, que são os chefes das polícias.”

Em entrevista a CartaCapital, Poliana também fala sobre a chacina do Jacarezinho, ocorrida em maio deste ano, que resultou na morte de 29 pessoas, incluindo um agente da Polícia Civil. A ação policial – a mais letal da história da cidade do Rio de Janeiro – é exemplo de como a blindagem da polícia em processos de responsabilização gera episódios de violência dessa magnitude. “Estamos falando de um país que não cria protocolos públicos de atuação da polícia, não parametriza o uso da força e não lida bem com investigação da Polícia Militar pela Polícia Civil”, ressalta. “É só nesse contexto que a gente consegue entender como outros ‘Jacarezinhos’ podem surgir.”

O evento de lançamento será nessa quarta-feira, 18, às 19h no canal do Youtube da editora e contará com as presenças de Vilma Reis, soci[ologa e ativista do movimento negro, Felipe Freitas doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília e Joel Luiz Costa, advogado e co-fundador do Instituto de Defesa da População Negra. A mediação será do editor de Justiça de CartaCapital Brenno Tardelli.

Confira a seguir.

CartaCapital: Poderia explicar o que é lógica imunitária e sua relação com a letalidade policial?

Poliana Ferreira: A lógica imunitária é pensada para refletirmos sobre a responsabilização da polícia que mata. A lógica imunitária opera a partir de mecanismos de proteção, inscritos na legislação, observados em práticas processuais e também em atos que evocam uma cultura de autoimunização da corporação. A ausência de protocolo público sobre os limites da atuação da Polícia Militar é um exemplo.

No estado de São Paulo, o protocolo de atuação da PM, desde 2013, está classificado como de ‘sigilo secreto’. Ou seja, uma norma básica, que é dar publicidade ao modo de atuação da polícia nas ruas, é alterada ainda em nível administrativo, tirando o direito de toda a sociedade civil intervir na produção desse protocolo.

CC: Que outros exemplos desse fenômeno você destacaria?

PF: Ouso do argumento da legítima defesa e a previsão do julgamento de PMs por um tribunal leigo. Na década de 1990, essa medida foi considerada um importante avanço pelo movimento negro e por organizações da sociedade civil – o contexto era de forte corporativismo da Justiça Militar. Mas o que temos hoje é um tribunal leigo julgando e tratando de temas que são praticamente o núcleo técnico do direito penal. A discussão da legítima defesa que cai no colo do Tribunal do Júri é uma discussão técnica.

E aí eu diria que a gente caiu na armadilha do próprio sistema. Perdeu-se, de certa forma, o controle social sobre as decisões judiciais. Há pouco controle sobre quem são os jurados, suas justificativas, suas escolhas. E as absolvições estão acontecendo justamente nos Tribunais do Júri.

Temos ainda a ausência de tutela coletiva de direitos em relação à tutela policial. Ou seja, a interação polícia-cidadão não é pensada como algo que mereça controle. No Brasil, as organizações da sociedade civil não podem ingressar na Justiça pleiteando algum tipo de indenização por dano coletivo contra a PM.

E, por fim, a impossibilidade de responsabilização criminal da Polícia Militar como instituição. A gente não consegue, enquanto sociedade civil, colocar a polícia sentada no banco dos réus. E colocar a polícia sentada no banco dos réus é pensar a responsabilização, não só do policial que está lá na ponta e atira, mas, também, do comandante, do secretário de Segurança Pública e dos próprios governadores, que são os chefes das polícias. Então, a gente não consegue projetar uma responsabilidade em cadeia desses distintos atores. A ideia de lógica imunitária, portanto, resgata, de certa forma, um olhar amplo para a responsabilização da polícia que mata, e não necessariamente sobre um único ator.

E tudo o que falei até aqui é basicamente uma crítica aos dispositivos legais, à maneira como esse problema está disposto na legislação. Essas lacunas estão nos códigos, nas leis. Só que do ponto de vista das práticas, também temos problemas significativos quanto à responsabilização.

CC: No livro, você traz a informação de que há mais pessoas brancas do que pessoas negras nos Júris. Existe uma questão aí também?

PF: Existe uma super questão! Questão racial e responsabilização da polícia que mata é um fio inseparável. No Brasil, são as pessoas negras as que mais morrem assassinadas, fardadas ou não – aqui é importante dizer que a vitimização policial é outro traço importante que não pode ser desassociado da letalidade policial. São dois fenômenos que caminham juntos.

Basicamente, no Brasil, temos uma Justiça que é pautada a partir do olhar branco. Temos um quadro de juízes e juízas, em sua imensa maioria, brancos. Há dados da plataforma Justa que mostram isso em São Paulo. Então, temos uma Justiça que pensa a responsabilização de corpos negros a partir de um olhar branco. E quando esse fio é puxado, vemos como o racismo incide desde o momento do processo da produção das mortes até a produção do olhar branco que julga.

Mas há outro ponto interessante sobre esse problema, que é a desracialização das informações. O que significa isso? Que a gente não consegue produzir pesquisa sobre raça no Judiciário, porque há uma dinâmica de invisibilização da questão racial no processo criminal. Apesar de haver a identificação das vítimas e dos réus no início do processo; ou seja, apesar de o inquérito caracterizar a vítima – dizer se é uma pessoa negra, indicar características -, quando o processo começa efetivamente, com o recebimento da denúncia, essas informações relativas à raça já se perderam, criando um problema de invisibilização. Como se não existisse racismo. Como se o Judiciário pudesse julgar de maneira isenta e neutra. Como se a Justiça brasileira não tivesse raça e não fosse, eminentemente, branca.

As absolvições estão acontecendo justamente nos Tribunais do Júri

Além da perda de informações sobre as vítimas ao longo do processo e de um julgamento feito por juízes e juízas, em sua maioria, brancos, existe a impossibilidade de controlar as decisões do Júri, no sentido de saber também o que se passa na cabeça dessas pessoas quando estão julgando. Será que elas fazem o exercício de racializar essa experiência, de racializar o processo. Em outras palavras, sem acesso ao Júri, é impossível saber se uma pessoa branca, quando senta no Júri, é capaz de mobilizar a raça para julgar. Ou seja: “eu vou condenar ou absolver o policial por que ele é branco ou negro?”. Não é possível acessar o Júri; não é possível realizar entrevistas com os jurados. Então, na prática, cai o mito de que o tribunal do Júri é democrático. A escolha  é previamente delimitada. Não é, necessariamente, qualquer pessoa do povo. E, conforme um advogado sinaliza na minha pesquisa, a maior preocupação é que, no Júri, as pessoas não sejam formadas em direito. A grande preocupação é essa. Nenhuma outra além dessa. Então, o racismo opera nesse processo de responsabilização, desde a ponta até o momento final da sentença.

CC: Você sugere que as pessoas do Júri tenham uma formação prévia. Poderia falar um pouco sobre isso?

PF: Uma formação prévia para que a pessoa tenha minimamente a consciência do que está fazendo, do ponto de vista formal, a partir do entendimento das regras do jogo, do entendimento do que significa estar ali, naquele momento. Mas também uma dimensão substancial, não só de entendimento dos termos técnicos, que são recorrentemente utilizados pelo Ministério Público, juízes e juízas, e advogados. Há uma perda de informação constante no momento do julgamento. E esse desenho institucional é uma escolha do Estado.

Tivemos avanços significativos, sim, mas entendo que é preciso rever a maneira como a polícia é responsabilizada. Entregar a um tribunal leigo, que muitas vezes é mobilizado por questões morais e religiosas, sem que isso seja justificado ao final. Ou seja, a gente não consegue saber o que as pessoas mobilizaram para tomar suas decisões. Não temos esse controle. E, não raro, falas do MP e de juízes reforçam concepções preconceituosas em relação às vítimas. Isso vem, muitas vezes, pautado por um discurso que também está normalizado na mídia, no cotidiano, de que ‘bandido bom é bandido morto’. Do ponto de vista das instâncias democráticas e do papel dos três Poderes na responsabilização, isso nos leva à perda do controle.

E com isso a gente tem um conjunto de regras que acaba sendo meramente formal, a gente tem a previsão de responsabilização da polícia que acaba ficando apenas no papel, porque do ponto de vista prático o que acontece é a blindagem dessas instituições. A gente não tem responsabilização. E, pensando também enquanto sociedade civil, quando a gente fala desse tema, nossa ira se volta rapidamente à não condenação dos policiais, mas tem uma cadeia de atores que precisa ser responsabilizada pela letalidade policial. Não apenas os policiais.

CC: A não-responsabilização impede o amadurecimento das instituições?

PF: Sim. E contribui para a manutenção e aprofundamento do problema. Dentro do tema da transparência, importante ressaltar que a Polícia Militar não divulga de maneira sistemática os desfechos dos inquéritos policiais e dos processos regulares de responsabilização. Estamos falando aqui da violência policial letal, mas em todos os outros contextos em que policiais humilham as pessoas, xingam as pessoas, agridem as pessoas, física e verbalmente, quais são os desfechos dos processos de investigação? A sociedade civil acaba não sabendo. Então, também essa é uma forma de blindar a instituição. A gente não sabe os desfechos, a gente não sabe o que acontece, e nem se acontece algo.

CC: Você ressaltou a ausência de um protocolo público para os Procedimentos Operacionais Padrão, em São Paulo. Poderia falar um pouco mais dos prejuízos à democracia que isso causa?

PF: É importante esse ponto dos Procedimentos Operacionais Padrão. Eu encontrei os procedimentos do Chile na internet, com a maior facilidade. Aqui no Brasil a gente ainda tem que lidar com as distintas polícias estaduais. Ou seja, a parametrização da atividade policial é de atribuição dos estados, e o estado de São Paulo, que é um dos maiores responsáveis pelas altas taxas de letalidade, atribuiu, a partir de 2013, ‘sigilo secreto’ em seus Procedimentos Operacionais Padrão. E isso a partir de uma lacuna da Lei de Acesso à Informação. Portanto, uma lei que foi criada para dar maior transparência às informações dos órgãos públicos, acaba sendo usada para o oposto. Então, a gente não sabe, por exemplo, quais são os limites da atuação de um policial quando aborda um cidadão na rua.

CC: Esses seriam os Procedimentos Operacionais Padrão (POP)?

PF: Exato. Como a polícia deve lidar com questões como abordagens a pedestres, abordagens a carros, abordagens com cão ou sem cão, abordagens em contexto de manifestações públicas em locais abertos. Tudo isso a gente perde o controle, porque não sabe a previsão de como eles devem atuar. Como a gente faz o controle disso se não tem acesso?

CC: Como você chegou ao caso de violência policial analisado no livro?

PF: Eu já tinha interesse em pesquisar a responsabilização da polícia. Sou de Salvador, e aqui a gente vivenciou a chacina do Cabula, no carnaval de 2015, quando um grupo de policiais matou 11 jovens da periferia de Salvador, no bairro do Cabula, após uma denúncia anônima. O que vale destacar é que em pouquíssimo tempo os policiais haviam sido absolvidos sumariamente. E, a exemplo do que ocorreu no caso analisado no meu livro, o processo só ganhou fôlego novamente por conta da mobilização da sociedade civil, com a campanha “Reaja”, que foi fundamental, e com a própria mídia contribuindo. Então, eu estava disposta a estudar a chacina do Cabula. Só que fui aprovada para o mestrado em São Paulo, na Fundação Getúlio Vargas, e tive que mudar a pesquisa.

No processo de mudança, levei praticamente um ano para escolher o caso. Fiz um extenso levantamento de dados, pela internet. Mas também frequentei os Júris, num período em que praticamente dormia no fórum para acompanhar os julgamentos de policiais. E comecei a lidar com esse caso depois que um funcionário do fórum me avisou que teria o julgamento desse caso que analiso no livro, mas preservando o anonimato. Na ocasião, o funcionário falou com muita naturalidade sobre o crime. Como eu não sou de São Paulo, pensei: “deve ter sido um caso que ficou muito conhecido”. E, a partir disso, fui me apropriando, tentando entender, recuperando documentos públicos, Diário Oficial, buscando informações no próprio fórum. Tudo isso com a intenção de reconstituir o caso. Então, foi um pouco isso. Eu já tinha o interesse de estudar ‘responsabilização da polícia’, e esse caso é chocante. A excepcionalidade do caso é que, mesmo diante de um policial que confessa um crime, o sistema de Justiça diz: “opa! Vamos nos organizar para não responsabilizar”.

Claro que não é uma coisa necessariamente pensada. O que é interessante também. Como, de maneira não pré-concebida, não pré-formulada, não pré-idealizada, o sistema se organiza para blindar a instituição, para imunizar a polícia que mata, para não responsabilizar os policiais.

Também pesou na escolha do tema e do caso o fato de eu ser moradora da periferia de Salvador, e de ter que lidar no cotidiano com a violência do Estado, não só pela ausência do Estado do ponto de vista das políticas sociais, mas também pela presença do Estado do ponto de vista da polícia. Foi importante para que eu pudesse ter um olhar mais sensibilizado em relação ao tema.

Parto desse lugar de moradora da periferia de Salvador e tenho um percurso acadêmico que está relacionado ao investimento do Estado brasileiro em educação e em pesquisa. Eu ingressei na universidade via sistema de cotas, ingressei na FGV através de bolsa, fiz minha pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo. Então, esse livro também é produto desse investimento público em pesquisa, em educação.

Atuar do ponto de vista político para o enfrentamento das desigualdades raciais e de gênero, e colocar isso na minha pesquisa, foi muito gratificante. Sem que essas questões também me impedissem de olhar para outros pontos. No fundo, o livro é sobre o poder. O esforço que eu fiz foi de estudar o poder, mas sem necessariamente me prender a grandes jargões ou a me limitar.

Busco marcar esse lugar de uma pesquisa que tem uma responsabilidade acadêmica e política, porque não me fechei do ponto de vista acadêmico. É um livro para enfrentar essas pragas que persistem no Brasil. É um esforço de qualificação do debate público; de aprofundamento de algumas questões que, às vezes, passam sem ser aprofundadas. A pesquisa traz um pouco isso: a densificação, a complexificação do problema, fugindo dos binarismos dos quais o debate às vezes é refém.

CC: No livro, você mostra que a questão da letalidade da polícia é uma herança também da ditadura. Poderia falar mais sobre esse contexto histórico?

PF: Há dois elementos, a título de resgate histórico, que eu acho importante destacar. Primeiro, a escravidão. Somos um País que naturalizou a dor, a morte, o castigo e a punição das pessoas negras. Então, tem essa fatia da História que não podemos esquecer. O segundo elemento é o processo de atualização dessas formas de controle, que acontece no período da ditadura militar brasileira e que tem resquícios até hoje. Estamos falando de autoritarismo, estamos falando de um País que tem resistência a lidar, a incorporar Estado de direito. É um processo que o País não conseguiu fazer de maneira completa.

Eu olho para o Brasil e só me dá vontade de chorar. É desesperança total. Um país mergulhado em autoritarismo, que até hoje tem auto de resistência. Os processos de autoritarismo estão a todo tempo sendo atualizados. Não nos livramos dos males da ditadura militar.

CC: Você coloca também que a manutenção de altos índices de violência leva à ausência do Estado de direito…

PF: Ausência completa do Estado de direito. Esse é um diagnóstico que vem desde a década de 1990. Guillermo O’Donnell já sinalizava isso e o que vemos, atualmente, é o aprofundamento do processo. Como se a gente não conseguisse incorporar o Estado de direito, o império das leis. Estamos falando de um país extremamente desigual, e São Paulo está nesse contexto. Estamos falando de um país que tem altas taxas de letalidade policial, mas, junto com a letalidade policial, temos desemprego e desigualdade racial profunda. Do ponto de vista da saúde, temos um país que não investe no SUS. Um país que deixou de investir em educação. Então, como pensar em Estado de direito num país tão desigual como o Brasil? Por isso coloquei o título de uma das seções do livro de “Polícia e Estado de direito. Uma semente que não brota”.

CC: Poderia falar da importância da atuação de entidades da sociedade civil, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Sou da Paz?

PF: É a sociedade civil tentando se organizar para lidar com a ausência de transparência do Estado. Enquanto os próprios estados da federação, e o Estado brasileiro, não investem na produção de dados públicos, de dados oficiais sobre a atuação da polícia, sobre homicídios em geral, a sociedade civil se organiza. Por isso é importante destacar a atuação de organizações como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Sou da Paz e também o IDDD, Instituto de Defesa do Direito de Defesa. São organizações que tentam lidar com a falta de transparência do Estado brasileiro, produzindo os dados por outros meios. Ou seja, sem ficar a reboque da atuação estatal. É importante destacar isso. A sociedade civil não está inerte, não está paralisada.

CC: Recentemente, ocorreu mais uma chacina, desta vez na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. O seu livro também aborda mais esse triste episódio?

PF: No livro, eu menciono a chacina do Jacarezinho para localizar como a blindagem da polícia no processo de responsabilização gera episódios de violência policial como aquele. É só nesse contexto que a gente consegue entender como outros “Jacarezinhos” podem surgir. Porque estamos falando de um país que não cria protocolos públicos de atuação da polícia, não parametriza o uso da força e não lida bem com investigação da Polícia Militar pela Polícia Civil. Ou seja, estamos falando de um País que não pensa o processo de responsabilização de maneira mais ampla. É como se a gente garantisse novos “Jacarezinhos”.

A chacina do Jacarezinho choca pelo número elevado de mortes. Mas quando olhamos para trás, temos uma sequência de chacinas no País: Borel, favela Naval, favela Nova Brasília, a própria chacina do Cabula. Então, é um país que naturaliza esse tipo de crime. Todo ano a gente lida com chacinas produzidas pela polícia. E como esse contexto não instiga o poder público a redesenhar as estratégias de enfrentamento do problema? Essa é a grande questão.

CC: O que seriam a ‘hipersancionalização’ e a ‘dessancionalização’?

PF: Há uma ‘hipersancionalização’ porque existe previsão de responsabilização na esfera administrativa, previsão de indenização de familiares de vítimas, previsão de responsabilização criminal. Mas tudo isso no plano abstrato. Do ponto de vista prático, quando a gente vai ver, não existe responsabilização. É como se tivéssemos processos sistemáticos de esvaziamento, que, no final das contas, geram a ‘dessancionalização’, isto é, a falta de sanção. A gente tem processos que, no fundo, investem na não responsabilização e na não sancionalização. Então, não é um Estado que não previu processo ou sanção para esses casos. Ao contrário. A gente tem previsão. Portanto, do ponto de vista legal, o Brasil vai dizer: “Não. Estamos super adequados. Temos legislação específica”. Mas, na prática, nada disso acontece.

Inclusive, no caso analisado no livro, esse ponto aparece com a exoneração do policial. A previsão de responsabilização no nível administrativo leva ao afastamento do policial que confessou à Corregedoria o homicídio doloso. Mas esse afastamento permite que ele continue trabalhando administrativamente. No meio do processo, o policial ‘resolve’ pedir demissão, e quando isso acontece, por alguma razão, o alto comando não toma conhecimento e segue o processo administrativo. No final, quando chega a condenação, que seria a exoneração, o policial já está fora há muito tempo. É uma exoneração completamente sem efeito, uma sanção administrativa esvaziada, porque, estrategicamente, o policial se retirou da corporação. E aí ele pode construir a própria narrativa. Do ponto de vista formal, é um policial que simplesmente cansou da corporação, cansou do trabalho, e saiu. No histórico dele, o que consta? Um policial que pediu para sair da corporação. Então, mesmo quando a polícia resolve responsabilizar seus membros na esfera administrativa, tem ainda essa saída: o policial pode se demitir, esvaziando a sanção.

CC: Isso se relaciona ao que você identifica como uma falta de diálogo entre as esferas administrativa, civil e criminal?

PF: No comecinho do processo do caso abordado no livro é possível observar que os movimentos institucionais da esfera criminal são alimentados pela esfera administrativa. Ou seja, o fato de o próprio inquérito policial militar ter sido anexado ao processo mostra que, inicialmente, existia um diálogo entre as esferas. Mas, num dado momento, elas se separam e passam a ser incomunicáveis. E obviamente que o policial na condição de réu vai se beneficiar disso.

A gente precisa de criatividade jurídica para lidar com esse desenho institucional, que tem, no mínimo, três esferas de responsabilização, e que não necessariamente dialogam entre si. No fundo, quem sai ganhando é o policial réu, porque ele pode, basicamente, participar de três processos distintos de responsabilização, sabendo que há muito pouco diálogo entre as três esferas, e que no final ele pode sair isento de responsabilização em todas: é a ‘dessancionalização’.

É como se tivéssemos falando de uma rede pensada, programada, desenhada para não dar certo. Enquanto a letalidade policial não for vista como um problema de Estado, estaremos fadados ao fracasso no que diz respeito ao controle do uso da força, aos processos de democratização da Justiça e de responsabilização da polícia.

Quando teve o massacre do Carandiru, um tempo depois o governador disse: “é coisa do passado”. Na chacina do Cabula, onze jovens negros foram mortos pela polícia. Um dia depois, o governador Rui Costa foi a público, parabenizar os policiais, dizendo que eles são, na verdade, artilheiros.

O fato de os governadores, que são chefes das polícias, falarem uma coisa dessas, autoriza que a cadeia de responsabilização se comporte da maneira que se comporta. Autoriza a reprodução dos casos de chacinas no Brasil.

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