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“Resultado do referendo refletiu emoções alimentadas por mentiras”

Especialista em migração Christian Dustmann explica o que levou mais de 17 milhões de britânicos a votarem pelo Brexit

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Por Volker Wagener 

Christian Dustmann é pesquisador de migração e professor de economia na University College London (UCL). Em entrevista à DW, o especialista afirma que uma série de dificuldades econômicas pelas quais os britânicos passaram nos últimos anos, aliadas a uma ideia distorcida do papel da mão de obra estrangeira no país, levaram ao voto de protesto. “Foi uma decisão emocional. Se a racionalidade estivesse presente, o Reino Unido teria permanecido na UE”.

DW: O referendo britânico teria tido um resultado diferente se não fosse pela política de portas abertas para refugiados de Merkel em 2015?

Christian Dustmann: Não acredito. A migração certamente desempenhou um papel importante. Mas o mais importante para o eleitorado britânico é a mobilidade intraeuropeia. Ou seja, a livre circulação de trabalhadores na UE.

A chegada de refugiados não tem muito importância para o Reino Unido, de qualquer forma. Cameron se comprometeu a acolher 20 mil sírios ao longo dos próximos cinco anos. Este é um número extremamente reduzido em comparação com o resto da Europa. Pelo fato de o Reino Unido ser uma ilha, é extremamente difícil para os refugiados entrarem. Por isso, esse não foi assunto do referendo.

O tema principal foi a falta de controle sobre a imigração quando ela acontece dentro da UE. Este foi o principal argumento da campanha pelo Brexit.

DW: Um levantamento de outubro 2015 já fala por si. Segundo ele, 52% dos britânicos disseram que a imigração era sua principal preocupação. Apenas 14% estavam preocupados com a questão da criminalidade e apenas 12% com os salários.

CD: O tema do referendo foi, especialmente nos últimos meses, a questão da falta de possibilidades para o governo britânico gerir a migração dos países da UE. Mais uma vez: este foi o ponto mais importante, em que cenários extremos e totalmente implausíveis foram sugeridos.

DW: Por exemplo?

CD: Por exemplo, foi simulado o volume da imigração caso, no futuro, a Turquia se torne um membro da EU, o que, certamente, não vai acontecer nas próximas décadas. Mas fortaleceu o sentimento do povo de que eles não terão controle sobre a imigração, enquanto o Reino Unido for parte da UE.

DW: O governo Cameron anunciou uma meta de imigração líquida de 100 mil pessoas por ano – istó é, descontada a emigração. Na verdade, o número atual é de cerca de 330 mil pessoas. É mais que o triplo. Mas seria isso tão assustador em comparação com fatos econômicos?

CD: Os migrantes que vêm para o Reino Unido têm melhor formação do que aqueles que vão para a Alemanha. Mas isso não teve importância alguma no debate. É preciso olhar para o clima do país.

A crise econômica afetou severamente o Reino Unido. O déficit subiu de forma extrema. Ele ainda está em cerca de 4%, acima da média da UE. O governo conservador Cameron também vem praticando há anos uma política de austeridade extrema. Uma consequência é que muitos serviços públicos têm sofrido fortes cortes, que chegam a 30% em alguns casos.

Ao mesmo tempo, a população cresceu, de um lado por causa da imigração, e de outro por uma taxa de natalidade mais elevada – diferente da Alemanha. Isso fez com que os serviços de saúde ficassem mais pobres. O tempo de espera nos consultórios médicos e hospitais aumentou. As verbas estatais foram muito reduzidas. E o transporte público local e regional foi afetado. Além disso, os ganhos reais do salário em todas as faixas de renda caíram muito durante muitos anos após a recessão. Foram – e ainda são – anos muito difíceis para as pessoas. Especialmente para aqueles que estão no patamar inferior da escala de renda, e que são especialmente numerosos no norte do Reino Unido.

O governo Cameron culpou parcialmente a UE por isso, no que foi fortemente apoiado pela imprensa britânica, 70% dela estava a favor do Brexit. Quando se é confrontado com algo assim por cinco ou seis anos – e o noticiário sobre a Europa já não era lá muito positivo antes da grande recessão – então se constrói uma imagem fortemente antieuropeia.

E isso foi extremamente explorado pelos partidários do Brexit, que também não pouparam mentiras. E certamente não foi convincente que os mesmos David Cameron e seu ministro das Finanças, George Osborne, que por tantos anos falaram mal da UE, viessem pedir votos pela permanência.

DW: Psicologicamente, tudo isso é compreensível. Mas falando de fatos econômicos, o Reino Unido, desde a virada do milênio, teve mais vantagens ou desvantagens com a imigração?

CD: A racionalidade econômica não influenciou este referendo. Se assim fosse, o Reino Unido permaneceria na UE. Foi uma decisão muito emocional. Isso tem a ver com o fato de que uma grande parte da população tem se visto nos últimos sete, oito anos como perdedora. Muitos votaram pelo Brexit para protestar contra o governo.

DW: O fator psicológico, a emoção, venceram a racionalidade?

CD: Exatamente! Você pode tentar explicar às pessoas que a imigração da UE é positiva no caso do Reino Unido. Nós também tentamos isso ao longo dos anos. Mas isso não interessa, as pessoas não querem ouvir. Para dar um exemplo: os migrantes que vieram depois de 2000, e especialmente migrantes da UE, pagaram muito mais impostos do que receberam benefícios sociais. Foi um ganho para a receita britânica.

DW: Essa ideia fixa de manter controle total sobre as fronteiras não seria um fetiche para os britânicos?

CD: Imigração sempre provoca emoções fortes nas pessoas. Além disso, o debate nos últimos anos foi muito influenciado pela imprensa sensacionalista e pelos populistas de direita do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip). As pessoas prestam atenção nas estatísticas. Recentemente, entraram mais 300 mil pessoas do que saíram do país. A meta é de 100 mil. Isso provoca medo nas pessoas – especialmente naqueles em regiões menos desenvolvidas, onde há anos os salários estagnaram e até diminuíram. Então a culpa é colocada toda sobre a imigração.

DW: Os movimentos dos refugiados não sofrem influência do Brexit. Será que os britânicos deixaram este tema agora completamente com a Europa ou, como eles dizem, com o continente?

CD: Eu diria que sim.

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