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O fim da guerra às drogas?

Para cineasta, abordagem penal levou a um desastre social e o maior legado das eleições americanas é a mudança na lei sobre os narcóticos ilegais

Ativista durante evento no Colorado, estado que aprovou medida para liberar o consumo da maconha. FREDERIC J. BROWN / AFP
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por Eugene Jarecki

A semana passada foi extremamente importante, talvez o começo do fim de uma degeneração nacional — a “guerra às drogas”. Os eleitores de Colorado e Washington aprovaram medidas para legalizar a maconha que representam mudanças locais, por enquanto. Por isso não devemos nos iludir de que o país será transformado da noite para o dia, mas o pensamento público, o espírito público está sendo transformado. Finalmente existe uma crescente percepção de que esta “guerra” não produziu nada além de um legado de fracasso. E quem quer ser associado ao fracasso?

Sejamos claros sobre o que estamos discutindo aqui. Não está em questão o impacto devastador que as drogas podem ter sobre os indivíduos — muitos de nós conhecemos pessoas que sofreram dessa maneira. Mas precisamos ver a dependência pelo que ela é — não uma questão criminal, mas sim de saúde pública, e uma enorme questão social, especialmente para os jovens. Na verdade, em vez de “guerra às drogas”, é melhor chamá-la de guerra às crianças.

Em muitas áreas de nosso país uma criança se desvia um pouco aos 14 anos; experimenta uma droga, não consegue encontrar uma maneira de pagar por ela e então mergulha na economia subterrânea. Em pouco tempo tem um registro em sua ficha, que permanecerá com ele para o resto de sua vida. Então tem um ciclo de degradação, que começa aos 13 ou 14, e nunca sai dele. Hoje sabemos tanto sobre desenvolvimento infantil, a importância dos primeiros anos, como as comunidades se desenvolvem. Em vez disso, evisceramos os bairros, destripamos a infraestrutura que antes fornecia recursos às cidades.

E com essa “guerra” estamos falando sobre a eliminação de uma população — que um dia foi a América negra, hoje apenas América pobre. São pessoas removidas da história oficial dos EUA — somente na semana passada os milhões delas que estão trancadas, muitas vezes por crimes não violentos relacionados a drogas, não participaram de nossa democracia. Por isso, no mínimo, estamos retirando dos pobres as alavancas de poder.

Existe um novo consenso de que a visão econômica está se tornando mais influente na mudança de atitude sobre as drogas do que a quantia de dinheiro economizada com o policiamento e a quantia obtida através da taxação de drogas legalizadas estão influenciando a opinião pública. Obviamente, todos estremeceríamos ao pensar que vivemos em um país onde somente o colapso econômico de uma degeneração como esta poderia provocar seu fim. Mas eu acho que também é verdade que o que está acontecendo é mais complexo — cálculos econômicos encontrando-se com preocupações humanitárias. Assim, você tem pessoas como Grover Norquist, o cofundador conservador da Americanos pela Reforma Fiscal, e Chris Christie, o governador republicano de Nova Jersey, encontrando companheiros improváveis em Russell Simmons e Danny Glover, produtores do meu filme. Todos veem uma abordagem fracassada.

Quando eu comecei a fazer o filme, queria falar para pessoas afetadas pelas drogas em todo o país. Os usuários, traficantes e parentes; mas também os juízes, policiais e carcereiros. Eu esperava ser uma espécie de repórter de tribunal, captando uma discussão entre esses dois lados.

Na verdade, todo mundo parecia uma vítima. As pessoas que trabalham no sistema penal querem esses empregos tanto quanto querem um buraco na cabeça; elas fazem um trabalho do qual não se orgulham. Em última instância, muito poucas pessoas querem trabalhar em um sistema cujo sucesso depende de um bando de seres humanos para ser trancados. E, é claro — em termos de classe –, existe muito mais em comum. Os guardas de prisão me diziam que tinham parentes presos, amigos de colégio. E, assustadoramente, todo mundo tinha uma história sobre como o sistema estava quebrado.

Mas há um fatalismo chocante em jogo. O que eu descobri foram muitas pessoas dizendo: “Eugene, eu sei que o sistema está quebrado e lhe desejo sorte. Mas continue sonhando, a coisa é tão vasta e há tanta força burocrática que você está se enganando se pensa que pode ser consertada”. Mas depois os carcereiros diziam: “Mas até que você faça isso eu tenho de fazer meu trabalho e, por Deus, sou um americano e vou fazê-lo melhor que os outros”.

Admirável em certo sentido, mas engraxa as engrenagens para que a máquina continue em operação. Assim, um juiz lhe dirá muito sinceramente que não tem alternativa senão prender uma pessoa não violenta durante 20 anos porque é a pena mínima — e ele tem razão –, mas então durante o almoço ele lhe diz que lamenta ter de fazer isso. Para um país fundado na revolução, tornamo-nos espetacularmente desligados da noção de comportamento revolucionário. Em vez disso, mantemos os corpos em movimento pelo sistema.

Não vou fingir que o colapso da “guerra às drogas” transformaria as chances de vida da noite para o dia para os que nasceram pobres nos EUA. Mas se parássemos de mutilar muitas comunidades as libertaríamos para pelo menos pôr os pés no chão das maneiras normais. Também poderíamos poupar uma enorme quantidade de dinheiro e nos perguntar: o que poderíamos fazer que plantaria uma árvore? O que eu poderia fazer nos bairros que realmente promovesse os valores que construíram a civilização e ajudasse os jovens a encontrar caminhos além dos que terminam na dependência de drogas?

O progresso não vai ocorrer imediatamente no cenário nacional. Tenho certeza de que Obama reconheceria a lógica do filme e então faria o que fez nos últimos quatro anos — ele acorda com a máquina de Washington. Quatro anos atrás eu me reuni com sua equipe; todos disseram as coisas certas. Não fale sobre uma guerra às drogas, eles diziam. Você não faz uma guerra contra sua própria gente. Mas eles continuaram a guerra do mesmo modo.

O que provocará a mudança é a exigência do público. O público tem de vaiar os políticos que manipulam dessa maneira — dizem que estão sendo duros com o crime, mas estão destruindo comunidades. Precisamos dizer a eles que não vamos deixá-los difamar nosso bairro para manter o sistema penal em movimento. Faremos isso se reconhecermos que a venda de drogas não é mais substancial que a venda de armas de destruição em massa. E sabemos a que isso levou. Nós americanos temos sido muito impressionáveis, mas estamos ficando menos. Pouco a pouco estamos percebendo que a “guerra às drogas” não tem sentido. E se fizermos os políticos saberem disso eles não terão opção além de se tornar mais inteligentes e responder às nossas demandas.

por Eugene Jarecki

A semana passada foi extremamente importante, talvez o começo do fim de uma degeneração nacional — a “guerra às drogas”. Os eleitores de Colorado e Washington aprovaram medidas para legalizar a maconha que representam mudanças locais, por enquanto. Por isso não devemos nos iludir de que o país será transformado da noite para o dia, mas o pensamento público, o espírito público está sendo transformado. Finalmente existe uma crescente percepção de que esta “guerra” não produziu nada além de um legado de fracasso. E quem quer ser associado ao fracasso?

Sejamos claros sobre o que estamos discutindo aqui. Não está em questão o impacto devastador que as drogas podem ter sobre os indivíduos — muitos de nós conhecemos pessoas que sofreram dessa maneira. Mas precisamos ver a dependência pelo que ela é — não uma questão criminal, mas sim de saúde pública, e uma enorme questão social, especialmente para os jovens. Na verdade, em vez de “guerra às drogas”, é melhor chamá-la de guerra às crianças.

Em muitas áreas de nosso país uma criança se desvia um pouco aos 14 anos; experimenta uma droga, não consegue encontrar uma maneira de pagar por ela e então mergulha na economia subterrânea. Em pouco tempo tem um registro em sua ficha, que permanecerá com ele para o resto de sua vida. Então tem um ciclo de degradação, que começa aos 13 ou 14, e nunca sai dele. Hoje sabemos tanto sobre desenvolvimento infantil, a importância dos primeiros anos, como as comunidades se desenvolvem. Em vez disso, evisceramos os bairros, destripamos a infraestrutura que antes fornecia recursos às cidades.

E com essa “guerra” estamos falando sobre a eliminação de uma população — que um dia foi a América negra, hoje apenas América pobre. São pessoas removidas da história oficial dos EUA — somente na semana passada os milhões delas que estão trancadas, muitas vezes por crimes não violentos relacionados a drogas, não participaram de nossa democracia. Por isso, no mínimo, estamos retirando dos pobres as alavancas de poder.

Existe um novo consenso de que a visão econômica está se tornando mais influente na mudança de atitude sobre as drogas do que a quantia de dinheiro economizada com o policiamento e a quantia obtida através da taxação de drogas legalizadas estão influenciando a opinião pública. Obviamente, todos estremeceríamos ao pensar que vivemos em um país onde somente o colapso econômico de uma degeneração como esta poderia provocar seu fim. Mas eu acho que também é verdade que o que está acontecendo é mais complexo — cálculos econômicos encontrando-se com preocupações humanitárias. Assim, você tem pessoas como Grover Norquist, o cofundador conservador da Americanos pela Reforma Fiscal, e Chris Christie, o governador republicano de Nova Jersey, encontrando companheiros improváveis em Russell Simmons e Danny Glover, produtores do meu filme. Todos veem uma abordagem fracassada.

Quando eu comecei a fazer o filme, queria falar para pessoas afetadas pelas drogas em todo o país. Os usuários, traficantes e parentes; mas também os juízes, policiais e carcereiros. Eu esperava ser uma espécie de repórter de tribunal, captando uma discussão entre esses dois lados.

Na verdade, todo mundo parecia uma vítima. As pessoas que trabalham no sistema penal querem esses empregos tanto quanto querem um buraco na cabeça; elas fazem um trabalho do qual não se orgulham. Em última instância, muito poucas pessoas querem trabalhar em um sistema cujo sucesso depende de um bando de seres humanos para ser trancados. E, é claro — em termos de classe –, existe muito mais em comum. Os guardas de prisão me diziam que tinham parentes presos, amigos de colégio. E, assustadoramente, todo mundo tinha uma história sobre como o sistema estava quebrado.

Mas há um fatalismo chocante em jogo. O que eu descobri foram muitas pessoas dizendo: “Eugene, eu sei que o sistema está quebrado e lhe desejo sorte. Mas continue sonhando, a coisa é tão vasta e há tanta força burocrática que você está se enganando se pensa que pode ser consertada”. Mas depois os carcereiros diziam: “Mas até que você faça isso eu tenho de fazer meu trabalho e, por Deus, sou um americano e vou fazê-lo melhor que os outros”.

Admirável em certo sentido, mas engraxa as engrenagens para que a máquina continue em operação. Assim, um juiz lhe dirá muito sinceramente que não tem alternativa senão prender uma pessoa não violenta durante 20 anos porque é a pena mínima — e ele tem razão –, mas então durante o almoço ele lhe diz que lamenta ter de fazer isso. Para um país fundado na revolução, tornamo-nos espetacularmente desligados da noção de comportamento revolucionário. Em vez disso, mantemos os corpos em movimento pelo sistema.

Não vou fingir que o colapso da “guerra às drogas” transformaria as chances de vida da noite para o dia para os que nasceram pobres nos EUA. Mas se parássemos de mutilar muitas comunidades as libertaríamos para pelo menos pôr os pés no chão das maneiras normais. Também poderíamos poupar uma enorme quantidade de dinheiro e nos perguntar: o que poderíamos fazer que plantaria uma árvore? O que eu poderia fazer nos bairros que realmente promovesse os valores que construíram a civilização e ajudasse os jovens a encontrar caminhos além dos que terminam na dependência de drogas?

O progresso não vai ocorrer imediatamente no cenário nacional. Tenho certeza de que Obama reconheceria a lógica do filme e então faria o que fez nos últimos quatro anos — ele acorda com a máquina de Washington. Quatro anos atrás eu me reuni com sua equipe; todos disseram as coisas certas. Não fale sobre uma guerra às drogas, eles diziam. Você não faz uma guerra contra sua própria gente. Mas eles continuaram a guerra do mesmo modo.

O que provocará a mudança é a exigência do público. O público tem de vaiar os políticos que manipulam dessa maneira — dizem que estão sendo duros com o crime, mas estão destruindo comunidades. Precisamos dizer a eles que não vamos deixá-los difamar nosso bairro para manter o sistema penal em movimento. Faremos isso se reconhecermos que a venda de drogas não é mais substancial que a venda de armas de destruição em massa. E sabemos a que isso levou. Nós americanos temos sido muito impressionáveis, mas estamos ficando menos. Pouco a pouco estamos percebendo que a “guerra às drogas” não tem sentido. E se fizermos os políticos saberem disso eles não terão opção além de se tornar mais inteligentes e responder às nossas demandas.

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