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“Dos presidentes latinos, só Evo é revolucionário”

Para Miguel Ángel Bastenier, jornalista especializado em América Latina, demais líderes da região não querem “acabar com o capitalismo”

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Por Ricardo Viel, de Madri

 

O único presidente latino revolucionário é Evo Morales. Rafael Correa é um reformista à europeia. Hugo Chávez é caótico e seu governo, incompetente. A Argentina jamais aceitaria estar subordinada ao Brasil como potência; por isso as duas nações deveriam se unir ao México para buscar um equilíbrio na liderança regional. As opiniões são do jornalista e professor espanhol especializado em América Latina Miguel Ángel Bastenier, definido por Gabriel García Márquez o “bruto inteligente”. Dá para perceber.

A brutalidade a qual se refere o amigo colombiano está, sobretudo, em sua maneira de falar e defender posições. Costuma dizer que diferentemente dos latino-americanos, os espanhóis não dão mil voltas para dizer as coisas. Para ele, isso também se reflete no jornalismo feito na América Latina, muito mais barroco do que o europeu.

Em um restaurante na capital espanhola, Bastenier recebeu a CartaCapital para uma conversa sobre a Espanha, a América Latina e a crise na Europa. Não poupou “brutalidade” ao analisar o seu país, para ele um “fracasso como nação”, e as fissuras do continente europeu. “Seremos menos, mas faremos mais sem o Reino Unido da União Europeia”, diz, sem rodeios, sobre a possibilidade do país deixar o bloco europeu. “Se não quer jogar o jogo, melhor que vá embora.”

Aos 70 anos e quase meio século dedicado ao jornalismo, Bastenier é uma espécie de renascentista contemporâneo. Sua formação é em história e direito, com pós-graduação em literatura e jornalismo, mas seus interesses vão do ciclismo à culinária. Costuma dizer que exerce a única profissão em que qualquer coisa que se aprende pode ser útil. Domina como poucos o cenário político internacional e formou (ou deformou, como gosta de dizer) mais de mil alunos durante as três últimas décadas – entre eles este repórter. É professor de oficinas de jornalismo impresso da fundação criado por García Márquez na Colômbia e da escola do El País, em Madri. No prestigiado jornal espanhol, trabalhou como repórter, exerceu cargos de chefia e atualmente mantêm uma coluna semanal. Em 2012 recebeu o prêmio Maria Moors Cabot da universidade de Columbia, Estados Unidos, por seu trabalho como jornalista.


Vive metade do ano na Espanha e a outra metade em Cartagena, onde tem casa. E talvez esse contato com o Caribe tenha, além de escurecido um pouco sua pele, adoçado um pouco sua maneira de ser. “Passo uns meses em Cartagena e quando volto acho os taxistas de Madri muito rudes”, diz.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

 

CartaCapital: Aposta-se muito no Brasil como a potência que deveria tomar a dianteira na América Latina. Compartilha essa opinião?


Miguel Ángel Bastenier: O Brasil não poderia se converter na potência hegemônica por um simples motivo: os que falam espanhol são muito mais do que os que falam português na região. Uma coordenação adequada entre os atores conduziria a uma situação de equilíbrio na qual poderia existir uma trindade que cantaria em conjunto: Brasil, México e Argentina. Algo como o que tentam fazer França e Alemanha por aqui. Isso seria o melhor para todos, porque a Argentina, por exemplo, jamais aceitaria estar subordinada ao Brasil. E Espanha o que tem de fazer é ficar atenta quando chamada para ajudar, mas nunca tentar impor-se ou ter ideias que não sejam consensuais.

CC: Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa caminham na mesma direção?


MAB: Não são tão parecidos como se acredita. O único revolucionário é Morales, que pretende nada menos do que “des-hispanizar” a Bolívia, o que desejo fervorosamente que fracasse, mas o futuro não está escrito. Chávez é muito mais caótico e seu governo é mais incompetente que revolucionário. Não pretende acabar com nada, nem com o capitalismo, senão unicamente colocá-lo a seu serviço. Não busca uma nova Cuba, senão um regime social que domestique seu capitalismo. Mas o problema é que ele não sabe como. E Correa ainda tem menos a ver com os outros dois. É um reformista à europeia, a quem a oposição da oligarquia equatoriana lançou, ou pelo menos assim pensa ele, a posições extremas impregnadas de autoritarismo. É grave como reduziu a importância do poder judicial, e com maioria na Câmara não haverá quem o pare. Mas não é nem indigenista como Morales nem quer colocar o capital de joelhos. Outra história é onde leva sua visceralidade.

CC: O sr. escreveu, dias atrás, que Chávez em Havana ou em Caracas é a mesma coisa até que não apareça. Caso não se recupere, a “revolução” fracassa?


MAB: De momento não, porque a lembrança ou o fantasma do líder pode dar vitória eleitoral a [Nicolás] Maduro. Mas o regime já não terá o caráter místico que o comandante lhe dava. Se o Exército não tomar o poder para manter os privilégios concedidos por Chávez, a evolução seria uma dissolução lenta do chavismo em um partido vagamente socialista, que dificilmente se sustentaria mais de um mandato no poder.

CC: Falando em Chávez, o sr. estava na Colômbia quando o El País publicou a falsa foto dele. Mesmo assim, no Twitter, pediu perdão. Que lição se tira do episódio?


MAB: De todas as maneiras eu não participaria disso porque estou aposentado. Não participo mais do dia a dia da redação, vou uma, duas vezes por semana para escrever minha coluna ou um ou outro editorial. Mas sim, pedi perdão porque considero um erro coletivo, e que vai demorar muito para ser apagado. Se você quebra a perna, sempre terá uma perna quebrada, ainda que a conserte, e provavelmente não será escalado para bater o pênalti decisivo. A lição que se tira é a última e também a primeira: não se pode publicar nada que não esteja devidamente confirmado.

CC: O sr. me disse recentemente que o fracasso da Espanha não é o País Basco, mas sim a Catalunha. Por que pensa assim?


MAB: O País Basco é inteiramente diferente da Catalunha. Pelo menos 50%, e é bem possível que mais, dos bascos se sentem espanhóis, o que não é incompatível com ser também basco. Ou seja, convivem comodamente essas identidades: só espanhóis ou basco-espanhóis. Duvido que haja 50% dos que estão ali que se sintam apenas bascos, que só aceitem uma identidade nacional. Ainda assim, a outra metade seria suficiente para bloquear qualquer caminho até a independência. O caso Catalão é muito diferente. O catalão é basicamente “acidentalista”. Quero dizer com isso que tem um conceito plástico ou flexível das realidades nacionais ou identitárias. De modo que a grande maioria da população pode aceitar a dupla identidade se acredita ser conveniente. Só catalães irredutíveis não podem passar de 20%, mas espanhóis irredutíveis são muito menos. Isso faz com que mais de 70% entrem no que chamo de “acidentalistas”. Hoje estamos numa conjuntura em que cresce o número dos que estão a favor da independência. Talvez já seja a maioria. Atualmente há uma parte muito importante dos espanhóis que não se sentem espanhóis, o que, para mim, configura o “fracasso da Espanha como nação”.

CC: A Espanha vive um momento de crise econômica e política, com escândalos envolvendo o governo e a Casa Real. Quase todo dia há um protesto em Madri…


MAB: A Espanha vive um momento de descrédito em tudo que, se não é justificado, pelo menos é compreensível. A democracia, como a monarquia, que não é imprescindível para que haja democracia, resiste. Não vejo perigo de regredir para um golpe porque Europa e Espanha passaram por esse estágio histórico, mas é claro que temos uma democracia de densidade menor do que o desejado e diria até do necessário.

CC: O que pode acontecer?


MAB: O Partido Popular vai se aguentar no poder porque sua queda não solucionaria nada, mas, se ficar demonstrado que o rei tinha alguma coisa a ver com os negócios ilegais do seu genro, e, ainda pior, se o príncipe Felipe não estiver livre das suspeitas, o povo espanhol, que nesse sentido é “acidentalista” entre monarquia e república, abandonaria em massa essa instituição. A monarquia poderia estar condenada.

CC: A crise econômica e a posição do Reino Unido, que já fala abertamente em fazer um referendo para sair da União Europeia, pode ruir os planos do bloco?


MAB: Todo o contrário. É verdade que a União Europeia sem a Grã-Bretanha é menos Europa, mas o que se deve pensar é no prejuízo que a permanência britânica representa, que é enorme. Se não quer jogar o jogo, melhor que vá embora. E eu penso que isso pode sim acontecer com o Reino Unido. Seremos menos, mas faremos mais, e também não descartamos que um dia Londres queira voltar. O que não faz sentido é ceder às exceções que o Reino Unido exige para permanecer. Isso destrói muito do que foi criado.

CC: Em um de seus livros, você compara o repórter ao caçador, e diz que ambos passam a vida procurando a caça perfeita. Já encontrou a sua?

MAB: Não encontrei, ou pelo menos não a encontrei plenamente, e talvez isso seja o que me mantém ainda em atividade.

CC: Você é um “bruto inteligente”?


MAB: Eu gosto desse apelido. Gosto que achem que sou inteligente e não desejo ser um moço refinado. Bruto, como os espanhóis.

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