Mundo

A crise humanitária que ninguém vê

Dividido entre grupos extremistas no norte e um governo golpista ao sul, país exporta refugiados para a África e levanta temor do terrorismo na Europa

Foto: Hugo Reichenberger
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Após trabalhar na Argélia e no Níger, o brasileiro Hugo Reichenberger está há seis meses em Burkina Faso como funcionário do ACNUR, a agência da ONU para refugiados. No país africano, ele acompanha uma das grandes crises humanitárias da atualidade, que transcorre às sombras de conflitos mais midiáticos, como os da Síria e Afeganistão. Apenas em Burkina Faso, 36 mil pessoas chegaram nos últimos meses. São parte de um contingente de pelo menos 200 mil refugiados que se espalham pela região graças a um conflito no Mali, país conturbado por um golpe militar e uma tentativa de dominação por parte de radicais islâmicos.

Em Burkina Faso, Reichenberger ajuda a receber os refugiados em seis campos oficiais e outros “espontâneos”. Os refugiados chegam com sintomas de desnutrição e desidratação, após uma caminhada que pode levar até duas semanas pelo deserto. Estão também mais sujeitos a doenças como malária e infecções respiratórias agudas. “A maioria deles vem do norte do Mali e são tuaregues, um povo nômade. Alguns dos refugiados trazem inclusive seus animais. Temos campos muito exóticos, com camelos, cabras, vacas, etc”, diz.

Devido à pouca atenção do mundo a essa crise, os recursos são escassos e há pouco acesso a água, comida e educação. “A maioria deles foge antecipadamente, lembrando os conflitos dos anos 90. Não querem enfrentar o mesmo terror.” A maioria dos campos fica na região do deserto do Saara. A situação é de caos, conta Reichenberger. “Há muitas desigualdades. Muitos deles são pobres, doentes e vulneráveis. Outros são crianças que chegam sem os pais que os enviam com outras pessoas para fugirem enquanto tentam manter suas terras e animais”, afirma. Outras crianças chegam com líderes religiosos e depois acabam mendigando. Mas há também muitas famílias que recebem a proteção de pessoas mais abastadas.”

O drama dos refugiados é completado pela precária situação do país que os recebe. Burkina Faso é o quinto país mais pobre do mundo e tem 2 milhões de pessoas em risco de segurança alimentar, segundo dados da ONU. A região norte, por onde chegam os refugiados, é ainda mais pobre que a média e enfrenta seus próprios problemas de fome e miséria. Por isso, além de cuidar dos refugiados, o ACNUR presta auxílio aos nativos. Os postos de saúde dos campos também atendem a população local. Quando há escolas a uma distância de menos de dois quilômetros dos campos, o ACNUR e a ONU investem nela para que refugiados e burquinenses se beneficiem.

O início da crise

Até o início de 2012, o Mali era um dos poucos países africanos considerados um exemplo de experiência democrática. Eleito por voto popular, o então presidente Amadou Toumani Touré tentava manter o país estável. No final de março, no entanto, uma crise política desencadeou o colapso quase total do país.

A junta militar do Mali derrubou Touré, sob a alegação de “incompetência”. O mandatário não teria tido o desempenho necessário para administrar uma rebelião da etnia separatista tuaregue, que passou a controlar todo o norte do país, expulsando as tropas do governo central de Bamaco, capital ao Sul. Os militares não previam, porém, que sua ação seria um dos gatilhos para impulsionar grupos islamitas ligados à Al-Qaeda naquela parte do país, uma ameaça ainda maior que os separatistas.

Os tuaregues mantêm rebeliões contra o Sul, por quem consideram ser ignorados, desde os anos 60. Nos anos 1990, a causa provocou até mesmo uma guerra civil contra o governo central. Quase 20 anos depois, as tensões voltaram a se acumular, levando a uma nova rebelião do Movimento Nacional de Liberação de Azawad (MNLA), que causou dezenas de mortes e forçou a retirada de 200 mil civis da região. A revolta levou ao golpe, que por sua vez foi responsável pelo vácuo de poder vital à ascensão dos grupos extremistas islâmicos.

Sem conseguir manter o controle, os militares entregaram o poder a um governo de transição formado desde agosto e que ainda não teve condições de estabilizar o país para uma nova eleição popular. Assim, o Mali se divide atualmente entre um norte controlado por extremistas e um sul com um governo golpista.

 

A tomada islâmica

Com essa fratura evidente, os rebeldes chegaram a anunciar a independência em abril, não aceita pela comunidade internacional. Mas eles tiveram a adesão dos islamitas do Ansar Dine, dos radicais do Mujão e de membros da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), o mais temido grupo extremista da região. Após “a união”, os grupos implementaram no norte do país a versão mais draconiana da sharia, lei islâmica, semelhante à adotada pelo Talibã no Afeganistão entre 1996 e 2001. As punições incluem apedrejamentos e amputações e não têm o apoio nem mesmo dos muçulmanos da área (cerca de 90% da população do país é muçulmana, e de maioria sunita).

Unidos, esses grupos controlam um território equivalente aos da França e Espanha juntas, que se transformou em um polo de grupos extremistas próximo ao Mediterrâneo, ligação marítima direta com a Europa. Algo que atraiu a atenção das potências para a ex-colônia francesa. O temor é de que o conflito desestabilize o norte da África e se reflita em território europeu.

 

Em outubro, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução para controlar o problema e deu aos países do Oeste da África um prazo de 45 dias para apresentarem detalhes de um plano de intervenção militar internacional de retomada do território. “Há terroristas no norte do Mali que são extremamente perigosos. Eles têm armas pesadas e dinheiro, que ganham com tráfico de drogas e sequestro. São uma ameaça extrema. Não só para a população local, mas para todo o mundo”, afirmou há cerca de um mês o ministro francês do Exterior, Laurent Fabius. França, Alemanha e Reino Unido passaram a se empenhar no caso.

A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) aprovou o envio de 3,3 mil soldados ao local, com tropas da Nigéria, Senegal, Burkina Faso, Gana, Togo e do próprio Mali. A Europa vai contribuir apenas com apoio técnico e treinamento da operação, que pode não sair esse ano. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, liberou um relatório ao CS alegando serem grandes os riscos de uma intervenção militar no norte do Mali. Ele também criticou o plano, que precisaria ser mais “bem desenvolvido”. Segundo um oficial de norte-americano de contraterrorismo ouvido pelo Huffington Post, o plano seria “amador e cheio de falhas”.

O CEDEAO protestou e o presidente da União Africana, Yayi Boni (também presidente do Benin) enviou uma carta aberta a Ban Ki-moon pedindo que ONU tomasse imediata ação militar e que qualquer reticência seria interpretada “como sinal de fraqueza pelos terroristas”. Uma medida que não conta com o apoio de um dos vizinhos mais afetados pela crise no Mali: a Argélia.

A Argélia, que divide uma fronteira de mais de mil quilômetros de extensão com o Mali, chamou a possível intervenção de uma “aventura” que nunca ia ser bem sucedida e pediu uma saída que criasse meios para isolar os rebeldes ligados à Al-Qaeda e redes de crime organizado. Por trás da posição cautelosa está o medo de que a ofensiva empurre militantes terroristas para o sul de seu território e crie uma crise de refugiados. A prioridade é trazer os tuaregues e a Ansar Dine para a mesa de negociações.

Refugiados provocam instabilidade

Em meio a esse cenário, agrava-se uma crise humanitária que passa quase despercebida internacionalmente. Dados de novembro do ACNUR mostram o aumento dos deslocados internos no Mali. As pessoas que precisaram deixar as casas sem cruzar as fronteiras do país já chegam a quase 204 mil, além dos 200 mil que foram para outros países.

Essa migração forçada produz problemas na África. A situação que ocorre em Burkina Faso é semelhante ao que ocorre em outros países. Mesmo assim, o apoio internacional fica abaixo do esperado. O ACNUR pediu em agosto uma ajuda de 153 milhões de dólares para auxiliar todos os refugiados no Mali, Níger, Mauritânia e Burkina Faso, mas só arrecadou 40,6% do valor. “Com esse dinheiro, podemos alimentar essas pessoas, mas algumas vezes faltam alimentos na cesta básica. Também temos dificuldades de oferecer educação”, explica o brasileiro Reichenberger. “Não há assistência o suficiente nos campos e não temos como atender todos os refugiados, especialmente se houver uma nova onda de migração para Burkina Faso devido a uma eventual intervenção militar”, completa Angela Christine, da ONG IEDA Relief, que também ajuda os refugiados em Burkina Faso.

Após trabalhar na Argélia e no Níger, o brasileiro Hugo Reichenberger está há seis meses em Burkina Faso como funcionário do ACNUR, a agência da ONU para refugiados. No país africano, ele acompanha uma das grandes crises humanitárias da atualidade, que transcorre às sombras de conflitos mais midiáticos, como os da Síria e Afeganistão. Apenas em Burkina Faso, 36 mil pessoas chegaram nos últimos meses. São parte de um contingente de pelo menos 200 mil refugiados que se espalham pela região graças a um conflito no Mali, país conturbado por um golpe militar e uma tentativa de dominação por parte de radicais islâmicos.

Em Burkina Faso, Reichenberger ajuda a receber os refugiados em seis campos oficiais e outros “espontâneos”. Os refugiados chegam com sintomas de desnutrição e desidratação, após uma caminhada que pode levar até duas semanas pelo deserto. Estão também mais sujeitos a doenças como malária e infecções respiratórias agudas. “A maioria deles vem do norte do Mali e são tuaregues, um povo nômade. Alguns dos refugiados trazem inclusive seus animais. Temos campos muito exóticos, com camelos, cabras, vacas, etc”, diz.

Devido à pouca atenção do mundo a essa crise, os recursos são escassos e há pouco acesso a água, comida e educação. “A maioria deles foge antecipadamente, lembrando os conflitos dos anos 90. Não querem enfrentar o mesmo terror.” A maioria dos campos fica na região do deserto do Saara. A situação é de caos, conta Reichenberger. “Há muitas desigualdades. Muitos deles são pobres, doentes e vulneráveis. Outros são crianças que chegam sem os pais que os enviam com outras pessoas para fugirem enquanto tentam manter suas terras e animais”, afirma. Outras crianças chegam com líderes religiosos e depois acabam mendigando. Mas há também muitas famílias que recebem a proteção de pessoas mais abastadas.”

O drama dos refugiados é completado pela precária situação do país que os recebe. Burkina Faso é o quinto país mais pobre do mundo e tem 2 milhões de pessoas em risco de segurança alimentar, segundo dados da ONU. A região norte, por onde chegam os refugiados, é ainda mais pobre que a média e enfrenta seus próprios problemas de fome e miséria. Por isso, além de cuidar dos refugiados, o ACNUR presta auxílio aos nativos. Os postos de saúde dos campos também atendem a população local. Quando há escolas a uma distância de menos de dois quilômetros dos campos, o ACNUR e a ONU investem nela para que refugiados e burquinenses se beneficiem.

O início da crise

Até o início de 2012, o Mali era um dos poucos países africanos considerados um exemplo de experiência democrática. Eleito por voto popular, o então presidente Amadou Toumani Touré tentava manter o país estável. No final de março, no entanto, uma crise política desencadeou o colapso quase total do país.

A junta militar do Mali derrubou Touré, sob a alegação de “incompetência”. O mandatário não teria tido o desempenho necessário para administrar uma rebelião da etnia separatista tuaregue, que passou a controlar todo o norte do país, expulsando as tropas do governo central de Bamaco, capital ao Sul. Os militares não previam, porém, que sua ação seria um dos gatilhos para impulsionar grupos islamitas ligados à Al-Qaeda naquela parte do país, uma ameaça ainda maior que os separatistas.

Os tuaregues mantêm rebeliões contra o Sul, por quem consideram ser ignorados, desde os anos 60. Nos anos 1990, a causa provocou até mesmo uma guerra civil contra o governo central. Quase 20 anos depois, as tensões voltaram a se acumular, levando a uma nova rebelião do Movimento Nacional de Liberação de Azawad (MNLA), que causou dezenas de mortes e forçou a retirada de 200 mil civis da região. A revolta levou ao golpe, que por sua vez foi responsável pelo vácuo de poder vital à ascensão dos grupos extremistas islâmicos.

Sem conseguir manter o controle, os militares entregaram o poder a um governo de transição formado desde agosto e que ainda não teve condições de estabilizar o país para uma nova eleição popular. Assim, o Mali se divide atualmente entre um norte controlado por extremistas e um sul com um governo golpista.

 

A tomada islâmica

Com essa fratura evidente, os rebeldes chegaram a anunciar a independência em abril, não aceita pela comunidade internacional. Mas eles tiveram a adesão dos islamitas do Ansar Dine, dos radicais do Mujão e de membros da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), o mais temido grupo extremista da região. Após “a união”, os grupos implementaram no norte do país a versão mais draconiana da sharia, lei islâmica, semelhante à adotada pelo Talibã no Afeganistão entre 1996 e 2001. As punições incluem apedrejamentos e amputações e não têm o apoio nem mesmo dos muçulmanos da área (cerca de 90% da população do país é muçulmana, e de maioria sunita).

Unidos, esses grupos controlam um território equivalente aos da França e Espanha juntas, que se transformou em um polo de grupos extremistas próximo ao Mediterrâneo, ligação marítima direta com a Europa. Algo que atraiu a atenção das potências para a ex-colônia francesa. O temor é de que o conflito desestabilize o norte da África e se reflita em território europeu.

 

Em outubro, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução para controlar o problema e deu aos países do Oeste da África um prazo de 45 dias para apresentarem detalhes de um plano de intervenção militar internacional de retomada do território. “Há terroristas no norte do Mali que são extremamente perigosos. Eles têm armas pesadas e dinheiro, que ganham com tráfico de drogas e sequestro. São uma ameaça extrema. Não só para a população local, mas para todo o mundo”, afirmou há cerca de um mês o ministro francês do Exterior, Laurent Fabius. França, Alemanha e Reino Unido passaram a se empenhar no caso.

A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) aprovou o envio de 3,3 mil soldados ao local, com tropas da Nigéria, Senegal, Burkina Faso, Gana, Togo e do próprio Mali. A Europa vai contribuir apenas com apoio técnico e treinamento da operação, que pode não sair esse ano. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, liberou um relatório ao CS alegando serem grandes os riscos de uma intervenção militar no norte do Mali. Ele também criticou o plano, que precisaria ser mais “bem desenvolvido”. Segundo um oficial de norte-americano de contraterrorismo ouvido pelo Huffington Post, o plano seria “amador e cheio de falhas”.

O CEDEAO protestou e o presidente da União Africana, Yayi Boni (também presidente do Benin) enviou uma carta aberta a Ban Ki-moon pedindo que ONU tomasse imediata ação militar e que qualquer reticência seria interpretada “como sinal de fraqueza pelos terroristas”. Uma medida que não conta com o apoio de um dos vizinhos mais afetados pela crise no Mali: a Argélia.

A Argélia, que divide uma fronteira de mais de mil quilômetros de extensão com o Mali, chamou a possível intervenção de uma “aventura” que nunca ia ser bem sucedida e pediu uma saída que criasse meios para isolar os rebeldes ligados à Al-Qaeda e redes de crime organizado. Por trás da posição cautelosa está o medo de que a ofensiva empurre militantes terroristas para o sul de seu território e crie uma crise de refugiados. A prioridade é trazer os tuaregues e a Ansar Dine para a mesa de negociações.

Refugiados provocam instabilidade

Em meio a esse cenário, agrava-se uma crise humanitária que passa quase despercebida internacionalmente. Dados de novembro do ACNUR mostram o aumento dos deslocados internos no Mali. As pessoas que precisaram deixar as casas sem cruzar as fronteiras do país já chegam a quase 204 mil, além dos 200 mil que foram para outros países.

Essa migração forçada produz problemas na África. A situação que ocorre em Burkina Faso é semelhante ao que ocorre em outros países. Mesmo assim, o apoio internacional fica abaixo do esperado. O ACNUR pediu em agosto uma ajuda de 153 milhões de dólares para auxiliar todos os refugiados no Mali, Níger, Mauritânia e Burkina Faso, mas só arrecadou 40,6% do valor. “Com esse dinheiro, podemos alimentar essas pessoas, mas algumas vezes faltam alimentos na cesta básica. Também temos dificuldades de oferecer educação”, explica o brasileiro Reichenberger. “Não há assistência o suficiente nos campos e não temos como atender todos os refugiados, especialmente se houver uma nova onda de migração para Burkina Faso devido a uma eventual intervenção militar”, completa Angela Christine, da ONG IEDA Relief, que também ajuda os refugiados em Burkina Faso.

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