Economia

Vantagens e riscos da reforma do ICMS no Mato Grosso

A unificação da alíquota do imposto no estado deve torná-lo mais simples, mas a mudança pode levar a injustiças, como o aumento da cesta básica

Apoie Siga-nos no

O Estado do Mato Grosso está em vias de realizar uma importante reforma do ICMS que pode servir de exemplo para outros estados e ser o início de uma reforma tributária do consumo até se chegar a um Imposto sobre o Valor Agregado (IVA).

A intenção dela, orientada por professores da Fundação Getúlio Vargas (FGV), é simplificar o ICMS, deixá-lo com menos exceções (mais neutro) e mais transparente. Tudo positivo e até elementar.

Uma reforma mais completa vem sendo proposta por este autor em diversos textos e foi genericamente suscitada em outubro de 2015 numa das reuniões do Brasil Central, bloco de estados da região centro-oeste com o reforço de Rondônia, criado por sugestão e entusiasmo de Roberto Mangabeira Unger tendo como um dos objetivos uma reforma tributária.

Membros da extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos, da qual Unger foi ministro e este autor foi assessor, participavam das reuniões do bloco que estava em formação. É gratificante ver que algo vá se tornar realidade.

Uma das várias dificuldades de se reformar tributos sobre o consumo com o objetivo de torná-los mais simples e neutros é o trade-off entre eficiência e equidade. A reforma divulgada pelo Mato Grosso busca melhorar a eficiência econômica do ICMS. Nada mais louvável.

Ao se fazer isso, contudo, haverá ganhadores e perdedores de curto, médio e longo prazos, como quase sempre acontece em reformas. Com todo o respeito ao slogan do Mato Grosso, que diz “todos pagarão menos tributos”, isso é uma inverdade.

Alguns sairão perdendo. É por isso que reformas assim normalmente vêm acompanhadas de medidas acessórias para amenizar ou desfazer os seus efeitos negativos, buscando resultados positivos no agregado do todo complexo de medidas.

É preciso entrelaçar a reforma do ICMS com outras políticas públicas para minimizar os seus efeitos negativos e maximizar os positivos.

Considerando que o Brasil é o Brasil, e não a Nova Zelândia, modelo utilizado como base pelo estado da região Centro-Oeste, é preciso levar em conta que se está em um dos países mais desiguais de todo o planeta e no meio de uma imensa crise de demanda.

Ao se unificar a alíquota do ICMS em uma só, eliminando exceções, termina-se aumentando alíquotas que eram minoradas e reduzindo outras que eram majoradas em relação à alíquota base. Serão extintos incentivos fiscais e regimes especiais, e assim por diante. Essas mudanças provocam efeitos incontáveis em espiral ao longo da economia, que precisam ser muito bem avaliados.

Algumas dessas mudanças deveriam ser pensadas em termos de phase in e phase out, ou seja, talvez precisassem ser graduais. É preciso pensar o impacto delas especialmente sobre aqueles que têm menos renda, que são a imensa maioria e dos quais a economia depende muito para voltar a crescer.

Presume-se que estão sendo feitas todas as análises e cálculos econométricos para mensurar os impactos da reforma em cada setor e em cada classe social, e a definição da alíquota, que ainda não ocorreu, deve ser um resultado dessas análises.

Utilizar o modelo neozelandês é interessante em princípio. Como em todo uso de modelo, todavia, é necessária uma cuidadosa adaptação à realidade específica. A alíquota da tributação total do consumo na Nova Zelândia é de 15%, enquanto que a alíquota base hoje do ICMS do Mato Grosso é de 17%.

No entanto, ainda são cobrados no Brasil, mas não nos demais países, PIS e COFINS em todos os setores (indústria, comércio e serviços), além do IPI no caso das indústrias e de muitas empresas comerciais, que o pagam como equiparadas a industriais.

A tributação das indústrias no Brasil chega a mais de 40% em muitos casos, enquanto que a média na OECD era 19,1% em 2015. É preciso um movimento urgente não somente de simplificação, aumento de neutralidade e transparência, mas de aumento da igualdade vertical por meio da progressividade.

É preocupante que, nos diversos textos publicados pelos professores da FGV e nos papéis de trabalho da reforma, não se observe a colocação do princípio da equidade como diretriz máxima. É assim hoje em qualquer reforma tributária decente que aconteça no mundo.

A reforma do ICMS do Mato Grosso está ao que parece preocupada somente com a igualdade horizontal, em fazer todos pagarem os mesmos tributos, mas não com a igualdade vertical, o dever de tributar de forma diferente aqueles com habilidades diferentes, o que se apreende por meio da sua riqueza e sua renda.

Ainda que a tributação do consumo venha sendo utilizada no mundo, de fato, com uma ótica mais voltada para a eficiência, é essencial se preocupar com questões de igualdade vertical, sobretudo neste momento em que as pessoas estão consumindo pouco.  

A própria Nova Zelândia teve a sua desigualdade muito aumentada desde a década de 80, tema sobre o qual já há vasta literatura, como um bom texto de Anthony Atkinson, mentor de Thomas Piketty. A OECD também já publicou trabalhos criticando os efeitos da tributação neozelandesa sobre a desigualdade.

A Nova Zelândia vem se preocupando nas suas últimas revisões de tributação com uma boa associação entre mudanças na tributação e o sistema de transferência de renda para os mais necessitados. O Brasil precisa fazer o mesmo.

Num texto breve como este, não é possível aprofundar, o que será feito no futuro, mas valem aqui algumas considerações a serem pensadas não somente pelo Mato Grosso, mas também pelos demais estados do país.

No caso do estado da região Centro-Oeste, o trabalho é um pouco menos complexo do que em outras unidades da federação nas quais o ICMS é ainda mais confuso, porém há exceções a serem analisadas com cuidado. Tome-se como exemplo o caso de alimentos da cesta básica, como arroz, feijão, farinha, aves, carnes etc., que são hoje tributados com alíquota de 12%.

A tributação minorada dos alimentos é muito discutida no mundo, apesar de haver hoje uma tendência a crer que vale a pena, por questões de eficiência, manter uma alíquota única mesmo no caso de cesta básica. Isso, contudo, deve acontecer contanto que haja medidas para garantir uma renda adequada aos cidadãos que lhes permita ter uma boa alimentação, assim como assumir todos os demais gastos necessários a uma vida digna.

Esse não é obviamente o caso do Brasil, onde em torno de 25% da população depende do Bolsa Família, que mal serve para garantir 3 refeições, e outros 25% pelo menos recebe o salário mínimo que, mesmo com todos os direitos trabalhistas, não garante, segundo o Dieese, uma renda mínima para cobrir as necessidades básicas de um cidadão brasileiro que tenha esposa sem trabalho e dois filhos.

Uma coisa é pensar a tributação do consumo em teoria e afirmar que vale a pena tributar de modo uniforme. Outra coisa é ir à prática e elevar a alíquota do ICMS sobre a cesta básica em 3%, 4% ou 5%. Pessoas já necessitadas poderão sofrer. É preciso ter segurança de que esse aumento será compensado por outras mudanças da reforma.

Como no âmbito dos estados não é possível mudar o Imposto de Renda, seria interessante que eles – e o Brasil Central tem força, por ser um bloco – pressionassem o Senado a modificar a alíquota máxima do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, um imposto que não traz grande arrecadação, mas que, se bem progressivo, poderia ser um aliado na unificação da alíquota do ICMS com uma boa redução. 

Talvez seja o caso de fazer uma reforma que proporcione um leve aumento de arrecadação e, assim, os estados poderiam criar um programa acessório ao Bolsa Família de inserção das pessoas no mercado de trabalho e em trabalhos sociais, com alguma distribuição de renda que garantisse a cobertura em eventuais aumentos do ICMS sobre a cesta básica e outros bens que afetassem aqueles com menos renda.

Tornar os tributos mais simples, neutros, transparentes e previsíveis é tarefa essencial, mas que tende a causar menos efeitos positivos do que a reversão do sistema de regressivo para progressivo. Não se consegue perceber no Brasil que, sem graus de desigualdade adequados, a eficiência econômica fica extremamente prejudicada.

A reforma do ICMS deve acontecer e urgentemente, porém deve ser mais bem analisada e debatida. 

*Marcos de Aguiar Villas-Bôas, doutor pela PUC-SP, mestre pela UFBA, é conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda e pesquisador independente na Harvard Law School e no Massachusetts Institute of Technology

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo