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Por que a Grã-Bretanha está em tal desordem hoje?

As alegações sobre o poder transformador da “Dama de Ferro” são extremamente exageradas

Manifestante faz protesto durante o funeral de Thatcher em Londres, na quarta-feira 17. "O resto de nós na pobreza", diz o cartaz. Foto: Justin Tallis / AFP
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Por Will Hutton

A imperatriz está nua ou, pelo menos, não usa as roupas com que muitos querem vesti-la. Apesar de todos os elogios, Margaret Thatcher não conteve o declínio econômico britânico, lançou uma transformação econômica ou salvou a Grã-Bretanha. É verdade, ela restabeleceu a capacidade de governar do Estado britânico. Mas, embora quisesse desencadear uma segunda revolução industrial e um surto de novos produtores britânicos, usou a recém-conquistada autoridade estatal para acentuar as próprias fraquezas que nos haviam afligido durante décadas. A conversa nacional dos últimos seis dias se baseou em uma fraude. Se a revolução Thatcher tivesse sido tão transformadora, nossa situação hoje não seria tão aguda.

Nos 20 anos que levaram a 1979, o índice médio de crescimento da Grã-Bretanha foi de 2,75%, embora estivesse enfraquecendo durante as dificuldades de meados dos anos 1970. Nos anos que antecederam a crise bancária, houve um debate intenso sobre se as reformas de Thatcher, essencialmente incontestadas por Blair e Brown, haviam conseguido restabelecer o índice de crescimento em longo prazo aos níveis anteriores. Certamente, a diferença entre as rendas per capita de Grã-Bretanha, França e Alemanha havia diminuído, assim como, aparentemente, a diferença de produtividade.

A questão é se tudo isso era sustentável. Hoje existe uma crescente e desanimadora admissão de que grande parte do crescimento dos últimos 30 anos foi construída sobre uma bolha insustentável de crédito, bancos e propriedades, e que o verdadeiro índice de crescimento britânico em longo prazo caiu para cerca de 2%. A diferença de produtividade está aumentando. Toda aquela desigualdade realçada, a incrível remuneração dos executivos, a privatização no atacado, a remoção das “algemas das empresas” e flexibilização do mercado de trabalho não conquistaram nada duradouro.

Essa amarga percepção vem se acentuando em círculos não conservadores há alguns meses. A libra caiu 20% em termos reais desde 2008, mas a reação do nosso setor de exportações à vantagem competitiva mais constante desde que deixamos o padrão ouro foi desastrosamente fraca. O déficit comercial da Grã-Bretanha em bens subiu para 6,9% do PIB em 2012 — o mais alto desde 1948 — e os números de fevereiro foram um desastre. A Grã-Bretanha simplesmente não tem empresas suficientes criando produtos e mesmo serviços que o resto do mundo queira comprar, apesar da desvalorização.

A legião dos apologistas de Thatcher afirma que ela não pode ser culpada pelo que está acontecendo 23 anos depois de ter deixado o cargo. Mas as transformações econômicas devem ser duradouras, não? O thatcherismo não cumpriu sua promessa porque o capitalismo dinâmico é alcançado através de uma interação muito mais sutil. Thatcher nunca compreendeu que é necessário um ecossistema complexo de instituições públicas e privadas para apoiar a aceitação de riscos, a criação de redes abertas de inovação, o investimento sustentado em longo prazo e capital humano sofisticado. Por acreditar na magia dos mercados e na inevitável destrutividade do Estado, ela nunca abordou essas questões centrais. Pelo contrário, a exigência de altos retornos financeiros aumentou constantemente durante seu mandato, assim como a remuneração dos executivos, mesmo enquanto o investimento e a inovação afundavam. E as tendências continuaram porque nenhum de seus sucessores ousou contestar o que ela havia iniciado.

Em vez disso, seus alvos foram os sindicatos e as empresas estatais, no projeto ideológico de afirmar brutalmente a primazia dos mercados e do setor privado, e portanto uma hegemonia conservadora, em nome de um patriotismo feroz. Isso foi bastante real: ela realmente quis colocar a Grã-Bretanha de volta no mapa, econômica e politicamente, e a força-tarefa que rumou para as Falklands encarnou a intensidade desse impulso. Mas ela não conseguiu isso, como ela própria reconheceu, em seus mais sinceros momentos fora do cargo.

Os sindicatos certamente precisavam do tratamento de Thatcher em termos de aceitar o Estado de direito e a necessidade de responsabilidades juntamente com seus direitos. Mas as empresas, os acionistas, bancos e finanças em geral também precisavam desse tratamento. Mas, como “seu pessoal” e parte da aliança hegemônica que ela pretendia criar, eles nunca tomariam o mesmo remédio. Em vez disso, seu Big Bang em 1986, que permitiu que bancos do mundo inteiro combinassem investimentos e serviços comerciais em Londres, foi um acordo monstruoso para agradar a seu próprio eleitorado. A Grã-Bretanha tornou-se o centro de um boom financeiro global, mas internamente isso significou uma intensificação da disfuncionalidade do sistema financeiro, ajudada por pouca regulamentação e um boom de crédito prejudicial, agravando o anti-investimento e o curto-prazismo que precisavam ser reformados. Hoje isso é evidente para todos. Mas durante quase 30 anos o aparente sucesso do thatcherismo escondeu essa necessidade.

Entretanto, em um aspecto sério, os sindicatos foram um alvo adequado. No final dos anos 1970, um punhado de líderes sindicais efetivamente codirigiam o país, os beneficiários do fracasso de sucessivos governos em trazer a livre negociação coletiva para um quadro legal. Isso apesar do fato de eles não poderem dar a seus integrantes as políticas acordadas, e de o terceiro ano de uma política de rendas ter desmoronado. Sobre essa questão, o Partido Trabalhista estava intelectualmente exausto e politicamente falido; o governo conservador de Heath também havia sido derrotado. Havia-se tornado uma crise de governabilidade de primeira ordem, e até de democracia.

Essa foi a oportunidade de Thatcher, e ela a aproveitou. As primeiras leis de emprego e a vitória sobre a União Nacional dos Mineiros de Arthur Scargill decididamente confirmaram que a fonte do poder político no país é o Parlamento, uma intervenção crucial na época. Mas ela exagerou terrivelmente. Os sindicatos dentro de um esquema adequado são um meio vital de expressar a voz dos empregados e proteger os interesses dos trabalhadores. A flexibilidade do mercado de trabalho — código para dessindicalização e cancelamento dos direitos dos trabalhadores — tornou-se mais um mantra thatcherista, que novamente esconde a complexidade do que é necessário no mercado de trabalho: voz e envolvimento, capacidade e adaptabilidade dos empregados. Quando ela deixou o cargo, 64% dos trabalhadores britânicos não tinham qualificações vocacionais.

A melhor coisa que se pode dizer sobre o thatcherismo é que ele pode ter sido uma etapa necessária, embora enganosa, no caminho para nossa reinvenção econômica. Thatcher resolveu a crise de governança, mas então demonstrou que simples soluções antiestatismo e pró-mercado não funcionam. Precisamos fazer coisas mais sofisticadas que controlar a inflação, reduzir a dívida pública, reduzir o Estado e apoiar as “forças do mercado”.

O governo de coalizão está desenvolvendo estratégias industriais de aspecto novo, reformando o sistema bancário e reintroduzindo o Estado — como um parceiro vital — em áreas como energia. O novo pensamento está emergindo em toda parte. Por exemplo, no nordeste da Inglaterra uma comissão econômica presidida por lorde Adonis, da qual participei, recomendou recentemente a readoção de fato da autoridade metropolitana em Newcastle, abolida por Thatcher. Ela coordenaria uma reduplicação do investimento em todo o nordeste em técnicas e transporte, juntamente com captação de investimentos. E ela quer que a parceria econômica local funcione no mesmo edifício que a nova autoridade combinada proposta, promovendo uma revolução em inovação e investimento. Essa complexa interação de privado e público que a comissão tenta desenvolver está a um mundo de distância de Thatcher — e é amplamente bem-vinda.

A imperatriz realmente está nua. O funeral na quarta-feira é um tributo ao mito e à hegemonia conservadora que ela criou. Se a família real está preocupada, como se noticiou, de que tudo isso seja um exagero, ela está certa. Thatcher capitalizou um momento de ingovernabilidade temporária que, para seu crédito, ela resolveu, então vendeu a seu partido e ao país uma perspectiva excessivamente simples e falsa. A avalanche com que Blair venceu em 1997 foi para desafiá-la, mas ele não compreendeu na época, nem compreende hoje, o significado de seu mandato. A força dos fatos está finalmente nos fazendo avançar. Mas a Grã-Bretanha foi enfraquecida, e não reforçada, pela revolução que ela causou.

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