Economia

Na França, chefe do FMI enfrenta o banco dos réus

Christine Lagarde vai a julgamento acusada de negligência ao aprovar acordo de 400 milhões de euros com empresário quando era ministra das Finanças

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Por Kim Willsher

Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional, foi julgada por negligência em um pagamento de 400 milhões de euros (cerca de 1,4 bilhão de reais) feito a um magnata francês quando ela era ministra das Finanças da França. Lagarde aprovou o pagamento com fundos públicos ao empresário Bernard Tapie, que era amigo do então presidente, Nicolas Sarkozy.

Essa “negligência de uma pessoa em posição de autoridade pública” constituiu um desvio de dinheiro público, segundo a promotoria. Lagarde, que chegou para a audiência pouco antes das 14h, enfrenta uma pena de dois anos de prisão e multa de 15 mil euros (53 mil reais), caso seja condenada.

A presidente do tribunal perguntou a Lagarde como ela pretendia se defender e se desejava exercer seu direito de permanecer calada. “Não tenho a intenção de permanecer em silêncio, madame la presidente”, respondeu Lagarde.

Em depoimento ao tribunal, a ex-ministra disse que “finalmente espero mostrar que não sou de modo algum culpada de negligência, mas que agi com consciência… e meu único objetivo foi o interesse público”. “Fui negligente?”, disse ela. “Não, e me esforçarei para mostrar, alegação por alegação, para convencê-los disso.” Lagarde disse que estava “profundamente chocada” com a “agressão” dos investigadores.

Falando mais cedo na segunda-feira 12, Lagarde, 60 anos, disse que estava confiante em que não tinha feito nada errado. Ela negou que tivesse dado a Tapie um tratamento favorável ou concedido o pagamento polêmico sob ordens de Sarkozy.

“Negligência é uma ofensa não intencional. Acho que todos somos um pouco negligentes em algum momento da vida. Eu fiz meu trabalho o melhor que pude, dentro dos limites do que eu sabia”, disse Lagarde ao canal de TV France 2.

A comissão de inquérito do tribunal afirma que Lagarde entrou em uma “decisão mal preparada, mal enquadrada e indesejável de ir à arbitragem” no antigo caso Tapie, desafiando o conselho oficial.

Ela também lamenta que Lagarde não tenha apelado contra o pagamento vultoso e a criticou por agir de maneira “descuidada e apressada”. A conclusão do inquérito foi condenatória, acusando Lagarde de uma “conjunção de erros que, por sua natureza, número e seriedade, vão além do nível de simples negligência”.

Em defesa de Lagarde, ele comentou que certos elementos do caso precediam sua nomeação para o Ministério das Finanças, e que ela não tinha “relação pessoal” com a figura chave do caso, Tapie.

Doze testemunhas darão depoimentos – oito pela promotoria e quatro pela defesa.

Lagarde vai afirmar que não recebeu toda a informação de seu chefe de gabinete ministerial, Stéphane Richard, hoje presidente da empresa de telecomunicações Orange. Richard, que está sob investigação por “fraude organizada e mau uso de fundos públicos”, foi acusado de não mostrar a Lagarde documentos “essenciais” de uma comissão de Estado que aconselhava contra enviar o caso à arbitragem privada.

Richard nega ter agido mal.

Lagarde disse: “Eu não li todas as notas, e meu gabinete estava lá exatamente para filtrá-las”. Ela acrescentou: “Terei sido abusada, e nesse caso por quem? Talvez saibamos um dia”. Ela lembrou ao tribunal que tinha pedido ao conselho de diretores do FMI para suspender sua imunidade judicial.

Lagarde, que foi ministra das Finanças de 2007 a 2011, quando se tornou diretora-gerente do FMI, negou repetidamente que tenha agido mal.

Tapie, que foi dono do time de futebol Olympique, de Marselha, e um ex-astro pop e de televisão, recebeu o dinheiro em uma disputa legal de duas décadas com o banco público francês Crédit Lyonnais (CL). Ele acusou o banco de desvalorizar sua posição majoritária na Adidas em um momento em que o CL era parcialmente estatal.

Lagarde deu o passo incomum de enviar o caso à arbitragem privada e fazer um acordo fora do tribunal, o que causou revolta pública. Detetives têm inspecionado se Tapie recebeu a oferta de acordo em troca de apoiar Sarkozy em sua bem-sucedida candidatura presidencial em 2007.

Um tribunal de apelação em Paris ordenou que Tapie reembolse o dinheiro, mas ele apelou contra a decisão e o caso continua. Tapie, seu advogado, o juiz de arbitragem que aprovou a concessão e Richard estão entre seis pessoas sob investigação por suposta fraude em grupo e mal uso de verbas públicas.

Os advogados de Lagarde pediram que sua audiência seja suspensa até que a investigação de Tapie e dos outros termine. O advogado de Richard disse que as acusações contra ele são “difamatórias, grotescas… e não se baseiam em qualquer evidência séria”.

Em setembro de 2015, o governo francês recomendou que o caso contra Lagarde fosse arquivado, mas juízes insistiram no julgamento.

O caso está sendo julgado na Corte de Justiça da República, um tribunal especial montado para julgar ministros e autoridades públicas por crimes supostamente cometidos enquanto estavam no cargo. É formado por três juízes e 12 políticos das duas câmaras do Parlamento francês.

É apenas a quinta vez que esse tribunal é reunido. O caso deverá durar até 20 de dezembro. Lagarde tirou uma folga oficial do FMI durante o julgamento, mas sua equipe nos Estados Unidos disse que ela continua em contato e trabalhando.

O elenco da trama

Christine Lagarde, 60, indicada ministra das Finanças por Nicolas Sarkozy em 2007. A ex-campeã de nado sincronizado foi a Washington como estagiária política no Capitólio após se formar no colégio, depois voltou à França, estudou direito e entrou para uma firma de advogados sediada em Chicago. Foi indicada diretora-gerente do FMI em 2011. Lagarde foi descrita por um importante economista americano como “estrela do rock” do mundo das finanças. Ela diz que as mulheres em altos cargos são essenciais: “Nunca deve haver testosterona demais em uma sala”.

Nicolas Sarkozy, 61, ex-presidente da França, esperava vencer um segundo mandato antes de sua humilhante derrota na disputa primária do partido Os Republicanos, de centro-direita, no mês passado. Sarkozy nomeou Lagarde para o Ministério das Finanças depois de ser eleito presidente em 2007 e a elogiou dizendo que tinha “muitas qualidades… e uma personalidade previsível”. Sarkozy é amigo do magnata Bernard Tapie desde os anos 1980.

Bernard Tapie, 73, é um empresário, ex-ministro, ex-ator, cantor, apresentador de TV e dono de time de futebol, que passou oito meses preso por fraudar resultados de jogos e por fraude fiscal. Descrito como a resposta da França a Donald Trump, ele fez fortuna adquirindo e reformando empresas falidas como a Adidas, que reanimou. Mas foi obrigado a vender as ações de sua empresa depois de ser nomeado ministro do governo francês em 1992.

Stéphane Richard, 55, é presidente da companhia multinacional de telecomunicações Orange, da qual o Estado francês é acionista majoritário. Ele foi chefe de gabinete de Lagarde no Ministério das Finanças. Em 2013 ele foi oficialmente investigado por “fraude organizada” em relação à arbitragem privada que concedeu a Tapie 403 milhões de euros. Ele nega as acusações.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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